https://doi.org/10.5209/RIBE.99941; Recibido: 07/01/2025; Revisado:24/07/2025; Aceptado: 30/07/2025
Renata Oliveira-da-Silva; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; renataosilva@edu.unirio.br; https://orcid.org/0000-0002-2127-6597
Daniele Achilles; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro; daniele.achilles@unirio.br; https://orcid.org/0000-0002-3648-7282
Artículos; Revista de Investigación sobre Bibliotecas, Educación y Sociedad; e-ISSN: 3045-5685; Ediciones Complutense; Creative Commons CC BY 4.0
Resumo: Repensa o papel da biblioteca pública brasileira e questiona sobre como esta instituição pode se mostrar relevante no século XXI, de que forma pode alcançar maior efetividade na vida social das comunidades e se as funções tradicionalmente atribuídas a ela ainda permanecem pertinentes. Alinha a biblioteca pública brasileira à importância como instituição social, cultural e de memória, o pertencimento e o empoderamento comunitário. Destaca novas formas de percepção e uso do espaço, abrindo possibilidades e funcionalidades, despontando na busca por maior aderência e ressonância social. Apresenta a biblioteca pública como terceiro lugar, de acordo com Ray Oldenburg e reconhece a biblioteca pública brasileira como geradora de capital social. Fruto de uma pesquisa de mestrado, trata-se de uma investigação social, qualitativa e exploratória. Utiliza a pesquisa bibliográfica para compor a discussão teórica. Conclui que a proximidade com a comunidade, considerando as necessidades socioinformacionais, conduzem o exercício da cidadania. A biblioteca pública brasileira como terceiro lugar sugere um novo olhar frente às percepções limitantes, tornando-as um espaço possível para a construção do capital social, fomentando o pertencimento identitário. A perspectiva abre caminhos para o fortalecimento das bibliotecas públicas brasileiras, alinhadas à premissa de bibliotecas como geradoras de comunidades que contribuem para a melhoria da qualidade de vida, potencializando o ethos comunitário, conforme o discurso da IFLA.
Palavras-Chave: Biblioteca pública; Terceiro lugar; Capital social; Informação; Sociedade.
Abstract: It rethinks the role of the Brazilian public library, examining how this institution can demonstrate relevance in the 21st century and how it can achieve greater effectiveness in the social life of communities. It aligns the Brazilian public library, its importance as a social, cultural and memory institution, belonging and community empowerment. It highlights new ways of perceiving and using the space, opening up possibilities and functionalities, emerging in the search for greater adherence and social resonance. It presents the public library as a third place, according to Ray Oldenburg, and recognises the Brazilian public library as a generator of social capital. The result of a master's research programme, this is a social, qualitative and exploratory investigation. It uses bibliographical research to compose theoretical discussion. It concludes that proximity to the community, considering socio-informational needs, leads to the exercise of citizenship. The Brazilian public library as a third place suggests a new way of looking at limiting perceptions, making it a possible space for building social capital and fostering identity belonging. This perspective opens ways of strengthening Brazilian public libraries, in line with the premise of libraries as generators of communities that contribute to improving the quality of life, enhancing the community ethos, in line with the IFLA discourse.
Keywords: Public Library; Third Place; Social Capital; Information; Society.
Sumário: 1. Introdução. 2. Biblioteca pública e comunidade. 3. Biblioteca pública como terceiro lugar. 4. Caminhos metodológicos. 5. Capital social e biblioteca pública. 6. Considerações possíveis. 7. Agradecimentos. 8. Contribuição de Autoria. 9. Referências.
Como citar: Oliveira-da-Silva, Renata; Achilles, Daniele. (2025). Biblioteca pública como terceiro lugar e a construção do capital social. Revista de Investigación sobre Bibliotecas, Educación y Sociedad, 2, e99941. https://doi.org/10.5209/RIBE.99941
A biblioteca pública na contemporaneidade tem se reconfigurado para atender às demandas informacionais, culturais e sociais da comunidade, como sempre foi sua essência. No entanto, diante das novas dinâmicas de acesso à informação e dos modos de interação entre as pessoas, torna-se imprescindível refletir sobre o papel que essa instituição desempenha no cenário atual, levando em consideração o contexto brasileiro.
Diante disso, surgem questionamentos fundamentais, tais como: de que forma a biblioteca pública brasileira (BPB) pode se manter relevante no século XXI? Como pode, de maneira mais efetiva, alcançar e impactar positivamente a comunidade à qual serve? As funções tradicionalmente atribuídas a essa instituição ainda são pertinentes frente às transformações contemporâneas?
Esses questionamentos norteiam a presente reflexão, que propõe discutir o papel da BPB e a continuidade de sua importância enquanto espaço social, cultural e de preservação da memória. Tal debate se pauta, sobretudo, na valorização do sentimento de pertencimento e no fortalecimento do empoderamento comunitário.
Nesse contexto, torna-se necessário repensar as formas de uso desse espaço, bem como os serviços e experiências que ele pode proporcionar, considerando os vínculos simbólicos e afetivos que as pessoas estabelecem com a biblioteca. Esse exercício é fundamental para ampliar a adesão e o reconhecimento da instituição, especialmente no Brasil, onde se observa, nos últimos anos, uma preocupante redução no número de bibliotecas públicas (Jornal da USP, 2022).
Refletir sobre a BPB na contemporaneidade, implica, portanto, compreender que:
A biblioteca pública deixa de ser focada apenas no acervo, para focar em indivíduos e comunidades, no intuito de, por meio de suas atividades e serviços, oferecer uma experiência positiva e um impacto real, não só nas pessoas, mas também na sociedade como um todo (Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, 2023, p. 19).
A emergência do mundo digital pode sugerir uma suposta perda de relevância das bibliotecas públicas, especialmente quando não é evidente – para o governo e para a população – a razão de se investir nesses espaços. Alonso-Arévalo (2022), pesquisador espanhol que tem se dedicado ao estudo de práticas antigas e contemporâneas relacionadas ao uso das bibliotecas diante dos desafios tecnológicos, destaca a capacidade de adaptação dessas instituições de se adaptarem para atender às múltiplas necessidades das comunidades. Para ele, a biblioteca do século XXI vai para além do livro (Alonso-Arévalo, 2022).
Essa afirmação encontra eco no contexto brasileiro, não apenas pelos impactos do avanço das tecnologias da informação e comunicação, mas também pelos aspectos, elementos e conformações sociais do país. O Brasil, com sua vasta extensão territorial e diversidade cultural, apresenta elevados índices de desigualdade social, mesmo que o país esteja experimentando mudanças significativas após os anos 2000 com programas de transferência de renda e políticas de cota para o acesso ao ensino superior, por exemplo. Na última Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios Contínua (PNAD – Contínua) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) com dados de 2024, o índice de Gini no Brasil foi de 0,506 - considerado o menor da série histórica (Amorim, 2025). Este índice mede a desigualdade de uma região em relação à concentração de renda. A escala é apresentada entre 0 (máxima igualdade) e 1 (máxima desigualdade). Assim, é possível observar que a concentração de renda no Brasil é um problema ainda a ser enfrentado. Além disso, o Brasil tem o maior índice de Gini da América Latina, sendo o país mais desigual da região. Tal situação é condicionada pela concentração de renda e os níveis de pobreza. Diante do exposto, infere-se que as BPB exigem uma reconfiguração tanto teórica quanto prática, como aponta Achilles (2018). Tal perspectiva sugere as bibliotecas como espaços plurais – que vão além da simples oferta de livros – ao abrigar uma gama diversificada de funções, usos e serviços, alinhando-se, em certa medida, às colocações de Alonso-Arévalo (2022).
Nesse mesmo sentido, Anglada (2012), ao discutir a importância de se defender as bibliotecas em tempos de crise econômica, enfatiza o valor social dessas instituições e apresenta 3 razões fundamentais para justificar investimentos nelas:
São instalações que permitem e reforçam o crescimento de cada pessoa e o apoio à autoaprendizagem, à aprendizagem ao longo da vida e à alfabetização tecnológica.
São ambientes públicos que não são baseados no consumo, que permitem a satisfação de hobbies individuais e reforçam os hábitos culturais na base de todos os setores da cultura.
São instituições que ajudam pessoas em situação de vulnerabilidade e facilitam a inclusão social e a criação de laços comunitários; em tempos de crise econômica, as bibliotecas representam para muitas pessoas o refúgio que não encontram em outro lugar.
Com o objetivo de contribuir para a reconfiguração teórica da biblioteca pública no contexto brasileiro, este estudo propõe a análise de 2 elementos centrais: 1) a biblioteca pública como terceiro lugar, conceito desenvolvido pelo sociólogo americano Ray Oldenburg; 2) a biblioteca pública como geradora de capital social.
Este artigo foi pensado como uma das associações entre conceitos refletidos na pesquisa de mestrado defendida no início do segundo semestre de 2024, cuja primeira versão desse texto foi apresentada no XIII Seminário Hispano-Brasileño de Investigación en Información, Documentación y Sociedad, realizado em setembro de 2024, sob a organização da Universidad Complutense de Madrid e da Universidad de Málaga, ocorrido na Espanha. A ideia aqui não é apresentar a pesquisa desenvolvida no mestrado em sua totalidade, mas apenas a associação entre os conceitos terceiro lugar e capital social, a partir de um viés essencialmente teórico.
Dessa forma, o artigo apresenta, a seguir, uma reflexão sobre as relações entre biblioteca pública, comunidade; a definição de biblioteca como terceiro lugar; e os possíveis vínculos entre biblioteca pública e capital social, considerando os atravessamentos e implicações possíveis.
O Manifesto da Biblioteca Pública IFLA-UNESCO 2022 (Krass et al., 2022), destaca o valor da comunidade para a existência e relevância das bibliotecas públicas, assim como o que estas instituições devem representar para as comunidades que atendem. A partir dessa perspectiva, torna-se evidente que a compreensão do conceito de comunidade é fundamental para o entendimento da construção de capital social.
No contexto brasileiro, a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (Instituto Pró Livro, 2024) — realizada com incentivo fiscal da Lei Rouanet e patrocinada pelo Itaú Unibanco e pela Rede CAR — tem como objetivo identificar o impacto das bibliotecas, associando-o a aspectos relacionados à educação. O estudo conta ainda com o apoio de entidades do mercado editorial, como a Associação Brasileira de Livros e Conteúdos Educacionais (Abrelivros), a Câmara Brasileira de Livros (CBL) e o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL). Trata-se de um dos poucos instrumentos no país capazes de revelar os hábitos de leitura da população brasileira com mais de cinco anos de idade, incluindo pessoas leitoras digitais.
Os resultados da sexta edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil são fruto da análise de dados coletados por meio de entrevistas realizadas em domicílios, com 5.504 pessoas brasileiras, alfabetizadas ou não, abrangendo 208 municípios do país. O estudo tem como objetivo “conhecer o comportamento do leitor medindo intensidade, forma, limitações, motivação, representações e as condições de leitura e de acesso ao livro – impresso e digital – pela população brasileira na atualidade” (Instituto Pró Livro, 2024). Para atingir esse propósito, a coleta de dados possibilitou análises sobre os seguintes tipos de informação, a saber:
Hábitos e motivações para a leitura.
Representações e valorização da leitura.
Leitura de literatura.
Preferências sobre livros, gêneros e autores.
A leitura em diferentes suportes.
O acesso a livros – em papel ou digital, envolvendo bibliotecas e os diferentes canais de distribuição e venda.
O papel das escolas, das famílias e das bibliotecas na formação de leitores e no desenvolvimento de leitura no Brasil.
Práticas leitoras e acesso em meio digital e fragmentada, em diferentes materiais (livros, jornais, revistas e hipertextos), suportes (impressos ou digitais) e ambientes.
A formação de leitores e a influência para o consumo ou acesso aos livros, via mídias digitais (blogs, clubes, sites, etc.) ou outros meios (Instituto Pró Livro, 2024, p. 7).
Esse estudo denota a associação da biblioteca pública apenas uma de suas faces: o incentivo à leitura, e, por ser patrocinado por instituições do mercado editorial, o objetivo da pesquisa se torna claro: o fomento da necessidade de compra de livros para bibliotecas. No entanto, alguns dados interessantes podem ser arrolados.
Assim, a partir da leitura dos dados fornecidos pela pesquisa Retratos da Leitura (Instituto Pró Livro, 2024) pode-se compreender a situação brasileira na relação que envolve livros, leitoras e leitores, e bibliotecas, usuárias e usuários. Inicialmente, o percentual de de pessoas entrevistadas consideradas leitoras e leitores não corresponde, em significativa parte do território brasileiro, à metade das pessoas entrevistadas (Figura 1); ainda que para a pesquisa a definição de pessoa leitora seja aquela que leu por inteiro ou em partes pelo menos um livro nos 3 meses antecedentes à pesquisa.
Figura 1. Percentual de pessoas leitoras por região. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Quanto ao percentual de livros lidos (Figura 2), nota-se um decréscimo considerável no ano de 2024, no entanto, os índices de motivação (Figura 3) indicam: gosto, distração e conhecimento, percebe-se uma incoerência no registro das respostas.
Figura 2. Número de livros lidos por ano. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Figura 3. Principal motivação para ler um livro. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Percebe-se que a relação das pessoas leitoras e leitores com o livro é dissociada da presença da biblioteca: esta não se destaca entre os principais locais para a prática da leitura (Figura 4).
Figura 4. Lugar em que costuma ler livros. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Isso fica marcado nos indicadores sobre a razão de ter procurado a leitura (Figura 5), que demonstram a busca por obtenção de conhecimento, corroborando com os índices de tipologias de bibliotecas que os entrevistados mais frequentam (Figura 6), ou seja: bibliotecas escolares e universitárias, que compõem obrigatoriedade formalizada pelas instituições de ensino.
Figura 5. Razão para não ter lido mais: entre os leitores. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Figura 6. Frequência em bibliotecas: tipo de biblioteca. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Outra informação apresentada pela pesquisa é a baixa frequência das pessoas entrevistadas em bibliotecas (Figura 7) que pode ser relacionada aos dados apresentados na Figura 8 que indicam o desconhecimento, por parte das mesmas, da existência de bibliotecas na sua localidade.
Figura 7. Frequência em bibliotecas. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Figura 8. Existência de biblioteca. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Outro aspecto que desperta a atenção é apresentado na Figura 9: o que a biblioteca pública representa. Neste item da pesquisa tem-se a perspectiva do entrevistado sobre o uso da biblioteca. Dentre as respostas elencadas, um lugar para pesquisar ou estudar destaca-se das demais, limitando a biblioteca para as pessoas brasileiras como apenas um espaço para os estudos.
Figura 9. O que a biblioteca representa. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Assim, indica que a percepção da biblioteca como espaço de trocas, vivências, um terceiro lugar (Oldenburg, 1999), torna-se um desafio a ser reconhecido e enfrentado.
Na Figura 10, por fim, a pesquisa alerta para um dado que traduz a pouca aderência da instituição biblioteca quando a maioria das pessoas respondentes afirma que nada as faria frequentar uma biblioteca.
Figura 10. O que o faria frequentar mais a biblioteca. Fonte: Instituto Pró Livro (2024)
Sinalizando, assim, a necessidade de romper com a representação da biblioteca como um lugar apenas para ter contato com livros e delineando para a população que é um lugar para além dos livros.
Com a finalidade de ampliar a compreensão sobre a realidade das BPB cabe também apontar alguns dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), que atualmente está subordinado a Diretoria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB), na Secretaria de Formação, Livro e Leitura (SEFLI) do Ministério da Cultura do Brasil (MinC). O SNBP tem como objetivo apoiar o desenvolvimento das políticas culturais nacionais voltadas para bibliotecas públicas municipais e estaduais, o SNBP realiza periodicamente a atualização da base de dados desses equipamentos culturais (Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, 2025).
A seguir são apresentados os dados do censo realizado pelo SNBP que ocorreu em 2021, que são comparados com dados do censo que ocorreu em 2015, quanto ao número total de bibliotecas públicas no país e à sua distribuição por região (ver Tabela 1 e Tabela 2).
Tabela 1. Número de bibliotecas
| Ano | Nº de bibliotecas no Brasil |
|---|---|
| 2015 | 6.120 |
| 2021 | 5.293 |
Fonte: As autoras adaptado (Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, 2023)
Tabela 2. Comparativo do número de bibliotecas por região
| Região do Brasil | Nº de bibliotecas 2010 | Nº de bibliotecas 2020 |
|---|---|---|
| Norte | 310 | 423 |
| Nordeste | 1.200 | 1.807 |
| Centro-oeste | 408 | 498 |
| Sudeste | 1.718 | 1.274 |
| Sul | 1.127 | 1.291 |
Fonte: As autoras adaptado (Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, 2023)
Esses dados revelam a redução do número de BPB, mostrando o contexto de redução de investimentos nas áreas cultural e educacional afetando diretamente a população e as comunidades mais vulneráveis que têm o acesso reduzido ou impossibilitado a espaços de leitura, de informação e de atividades culturais. Destaca-se o período de grande atribulação política que resultou, inclusive, na extinção do Ministério da Cultura em 2019, órgão ao qual o SNBP é vinculado. Fatos que refletem na fragilidade dos números e na manutenção de políticas públicas direcionadas a esses equipamentos culturais.
Com base no exposto, a intenção de relacionar novos aportes teóricos é uma tentativa de ampliar as compreensões sobre os diferentes sentidos que uma biblioteca pública pode ter, principalmente no Brasil. Mesmo que essa comunicação não apresente um caso específico sobre um sistema de bibliotecas, ou sobre uma biblioteca pública, a associação conceitual nos auxilia a desenvolver novas aberturas de pensamento e desenvolvimento de aporte teórico que poderão ser utilizados em futuros estudos.
Por se tratar de uma elaboração textual teórica, a revisão de literatura que se apresenta a seguir não se debruça no estado da arte sobre as ideias associadas aqui, mas destaca, em certa medida, a incipiência de investigações sobre o tema, conforme constatada nos levantamentos feitos e expostos na metodologia.
Entretanto, em uma perspectiva neoliberal, Maciel-Filho et al. (2010) indicam que o conceito de capital social tem sido empregado por instituições financeiras como o Banco Mundial, reforçando a biblioteca pública como parte constituinte no desenvolvimento de comunidades onde as atividades oferecidas pelas bibliotecas públicas se relacionam com a criação de capital social. Medeiros e Olinto (2016) apontam que ações capazes de ampliar e diversificar a interação promovem capital social e têm o potencial de aproximar ainda mais a biblioteca pública da comunidade, fortalecendo os vínculos e a relevância desse espaço na vida coletiva.
Nesse sentido, o aporte teórico de campos como a Sociologia e a Filosofia pode contribuir de forma significativa para a análise das relações entre biblioteca pública e comunidade, a partir de uma abordagem interdisciplinar, uma vez que os estudos na área de Biblioteconomia e Ciência da Informação não aprofundam tanto o tema no Brasil.
No Dicionário de Sociologia, Johnson (1995), apresenta o verbete “comunidade”, apontando que o termo abrange múltiplos significados, entre os quais: um grupo de sujeitos/as que compartilham algo em comum; um senso de vínculo, integração e identificação entre pessoas; ou ainda a união de indivíduos engajados em uma atividade comum. Em uma acepção mais simples, o conceito também pode se relacionar ao aspecto geográfico, referindo-se à proximidade entre pessoas que habitam uma mesma área.
O sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, foi uma das pessoas a sistematizar o conceito de comunidade, definindo-o a partir de características que destacam experiências compartilhadas em um espaço delimitado, originadas em vínculos de parentesco, vizinhança e amizade. Como explica Mocellim (2010, p. 109):
Grupos considerados comunitários contam com elevado grau de integração afetiva e também com alto grau de coesão – e mesmo de homogeneização – entre seus membros, e isso inclui conhecimentos, objetivos, práticas cotidianas e formas de agir e pensar.
Segundo Mocellim (2010), o sociólogo Émile Durkheim entende que a vida em sociedade se fundamenta nos conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica. A solidariedade mecânica é marcada pelo compartilhamento dos valores, crenças, tradições e normas morais, que promovem a coesão social. Já a solidariedade orgânica, típica em sociedades mais complexas e diferenciadas, as pessoas não necessariamente compartilham os mesmos valores, sendo a coesão garantida pela interdependência gerada pela divisão social do trabalho que age diretamente nas dinâmicas de coesão social.
Para Durkheim, o equivalente da comunidade é designado por solidariedade mecânica, e o equivalente à sociedade moderna é a solidariedade orgânica. Para ele, ambas as formas de solidariedade são naturais: a primeira é mecânica, pois cada membro faz parte de um todo, como se fosse peça de uma engrenagem; e a segunda é orgânica, pois os indivíduos são relativamente autônomos, agindo com elevados graus de espontaneidade e integrando-se no corpo da sociedade (Mocellim, 2010, p. 125).
Na contemporaneidade, o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman destaca-se por sua abordagem do conceito de comunidade, especialmente ao considerar os impactos das transformações decorrentes dos avanços tecnológicos. Para o autor, tais mudanças intensificam o fluxo de informações e de pessoas, ao mesmo tempo que encurtam distâncias – físicas e simbólicas - que, paradoxalmente, podem dificultar a consolidação da vida comunitária.
Bauman (2022, p. 7) afirma que “existem palavras que guardam sensações e comunidade é uma delas”. Para ele, a ideia de comunidade carrega um sentido afetivo e positivo: é bom ter, fazer parte ou estar em uma comunidade. O teórico associa esse conceito a experiências prazerosas, pois é no seio da comunidade que o indivíduo encontra segurança, apoio, confiança e força – elementos que podem ser vinculados à noção de pertencimento identitário.
Contudo, Bauman (2022) também alerta para a complexidade dessa realidade: ao mesmo tempo em que a comunidade oferece proteção, ela exige a renúncia a certas liberdades individuais. Assim, a vida em comunidade implica uma tensão constante entre segurança e liberdade, entre pertencimento coletivo e autonomia pessoal. A comunidade, nesse contexto, pressupõe coesão social – conforme delineado na teoria durkheimiana -, mas também estabelece normas que operam mecanismos de inclusão e exclusão.
Como adverte o próprio Bauman (2022, p. 13) “a tensão entre segurança e a liberdade e, portanto, entre comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim continuará por muito tempo”. Tal tensão nos coloca diante de um dilema fundamental: o que significa, afinal, estar em comunidade? Trata-se de um refúgio diante das incertezas do mundo contemporâneo ou de um espaço fértil para o fortalecimento da alteridade e da construção da identidade?
Nesse contexto, Mocellim (2010) destaca a centralidade do conceito de identidade como elemento-chave dessa dinâmica:
A identidade é a substituta contemporânea da comunidade. Ela incorpora a individualidade ao pertencimento a grupos ou filiações a estilos de vida, mas, de forma nenhuma, esse pertencimento pode ser similar ao pertencimento comunitário – é sempre um pertencimento temporário, revogável e precário e também incapaz de trazer a segurança trazida pela comunidade (Mocellim, 2010, p. 119).
Bauman (2022) nos ensina que a busca pela identidade se assemelha a uma tentativa de alcançar o inatingível. O autor chama atenção para o poder simbólico dessa “expressão genérica”, que, embora amplamente utilizada, revela-se insuficiente para dar conta, em tempo real, da complexidade e fluidez que envolvem a construção identitária. Além disso, Bauman enfatiza...
É comum afirmar que as “comunidades” (às quais as identidades se referem como sendo as entidades que as definem) são de dois tipos. Existem comunidades de vida e de destino, cujos membros (segundo a fórmula de Siegfried Kracauer) “vivem juntos numa ligação absoluta”, e outras que são “fundidas unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios” (Bauman, 2022, p. 17).
Dito isso, os questionamentos sobre identidade só adquirem pleno significado quando articulados à noção de comunidade, e, consequentemente, ao ethos comunitário. É por meio de um princípio orientador – ainda que simbólico – que se torna possível evocar esse ethos, promovendo a convivência entre diversidades, singularidades e pluriculturalidades. O sentido comunitário contribui para o fortalecimento da identidade à medida que as pessoas reconhecem a importância das escolhas e dos posicionamentos que assumem no espaço coletivo.
Tornamo-nos conscientes de que o “pertencimento” e a “identidade” não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o “pertencimento” quanto para a “identidade”. Em outras palavras, a ideia de ter uma “identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Só começarão a ter essa ideia na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem conta, e não de uma só tacada (Bauman, 2022, pp. 17-18).
A identidade também se revela como uma construção em movimento, antecipando aquilo que está por vir por meio das associações de pertencimento. A autora norte-americana Gloria-Jean Watkins, conhecida pelo pseudônimo (em minúsculas) bell hooks, abordou de forma profunda os conceitos de comunidade e pertencimento em duas de suas obras: Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança (2021) e Pertencimento: uma cultura do lugar (2022). Nessas obras a autora propôs novas formas de articular esses conceitos, ativando e dando foco a um elemento fundamental: o amor (hooks, 2021; hooks, 2022).
No prefácio da obra Ensinando comunidade, escrito por Ednéia Gonçalves, a seguinte citação sintetiza o sentido da proposta da autora:
Começar por sempre pensar no amor como uma ação, em vez de sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer uma que use a palavra dessa maneira automaticamente, assume responsabilidade e comprometimento (hooks, 2021, p. 55).
Gonçalvez destaca o protagonismo e a formação ativista de bell hooks, ressaltando que ela é uma autora contemporânea que rompe com sentidos acadêmicos cristalizados ao promover, em seus escritos, um enfrentamento direto às estruturas de poder. Essa resistência se dá por meio da valorização do saber comum, convidando as leitoras e os leitores a abordarem os temas tratados com responsabilidade, consciência crítica e comprometimento ético. Além disso, bell hooks nos conduz por caminhos decoloniais, tensionando paradigmas tradicionais e propondo alternativas epistemológicas enraizadas na experiência e na afetividade.
A obra Ensinando comunidade é alicerçada no conceito “esperançar”, que, inspirado na pedagogia freiriana, busca ressignificar a prática educativa. Nesse contexto, bell hooks propõe uma nova compreensão do conceito comunidade, articulando-o a uma perspectiva progressista e emancipadora. A esperança, nesse processo, atua como um marcador essencial para a construção da confiança e do cultivo de valores comuns, fundamentais para fortalecer os vínculos coletivos e os compromissos éticos com a comunidade.
Já na obra Pertencimento: uma cultura do lugar (2022), bell hooks desenvolve a noção de “lugar” como dimensão afetiva e política do pertencimento, ao revisar seu estado natal, Kentucky. A obra convida leitoras e leitores a refletirem sobre o valor da vida em sua diversidade, reconhecendo “o pertencer” como uma prática que só se sustenta quando fundada no respeito às diferenças. A autora articula também questões raciais, de gênero e de classe para construir uma narrativa de libertação frente à lógica do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista – estrutura que ela denuncia com contundência e clareza.
Essas interlocuções teóricas contribuem para ampliar a compreensão do conceito de comunidade, articulando-o à identidade, à segurança e ao pertencimento. A partir desse viés, torna-se possível afirmar que as pessoas que se reconhecem em uma comunidade por meio de vínculos identitários constroem laços mais sólidos, capazes de impulsionar movimentos coletivos transformadores. Um desses efeitos é o fortalecimento do sentimento de empoderamento de grupos sociais historicamente marginalizados. Nesse sentido, a biblioteca pública pode ser compreendida como um espaço privilegiado de acolhimento e mediação, capaz de responder a demandas ao prover capital social e favorecer processos de construção subjetiva e intersubjetiva.
O conceito de “terceiro lugar”, desenvolvido pelo sociólogo norte-americano Oldenburg (1999), parte da análise das transformações na organização territorial dos subúrbios dos Estados Unidos para fundamentar sua proposta. De acordo com o autor, a crescente suburbanização das cidades norte-americanas provocou mudanças significativas nos modos de vida da população, restringindo as interações sociais basicamente à esfera doméstica (o “primeiro lugar”) e à esfera profissional (o “segundo lugar”). Essa configuração resultou em uma vida comunitária esvaziada, marcada pela dependência excessiva do automóvel, pela pouca circulação a pé nos bairros e pela centralidade de espaços privados voltados ao consumo.
Nesse contexto, Oldenburg (1999) introduz o conceito de “terceiro lugar” para se referir aos espaços destinados à convivência comunitária, que ele considera essenciais para o bem-estar social e emocional das pessoas. Enquanto o primeiro lugar corresponde ao lar, e o segundo ao local de trabalho, o terceiro lugar é aquele que promove encontros informais, trocas espontâneas e senso de pertencimento coletivo. Esses espaços, que o autor também denomina de great good places, têm como principal função revitalizar os vínculos sociais em contextos em que as conexões interpessoais estão em declínio.
Oldenburg ressalta que, em um mundo cada vez mais acelerado e mediado por tecnologias que promovem o isolamento, os terceiros lugares exercem um papel fundamental na manutenção da vida comunitária. Entre suas principais características, destacam-se a acessibilidade, a neutralidade, o caráter inclusivo, a frequência de pessoas habituais, o clima descontraído e a possibilidade de conversas significativas.
Para o sociólogo, a principal função do terceiro lugar é promover a coesão do bairro, funcionando como um ponto de encontro que favorece a construção de laços, mesmo que a partir de interações breves. Tais conexões, ainda que efêmeras, podem tornar-se fundamentais em movimentos de crise que exijam respostas coletivas e ações solidárias da comunidade. Oldenburg (1999) explica que lugares como estes, que servem praticamente toda a gente, criam rapidamente um ambiente em que as pessoas conhecem quase todas as outras. Geralmente, não se pode dizer que todas, ou mesmo a maioria, goste de todas. No entanto, é importante conhecer todas as pessoas, saber como cada uma contribui e subtrai para o bem-estar geral.
Ao se configurar como espaço de convivência social, o terceiro lugar se estabelece como um ambiente que favorece a integração de pessoas recém-chegadas à comunidade, servindo como uma verdadeira “porta de entrada” (Oldenburg, 1999). Uma de suas características fundamentais é a de se apresentar como “terreno neutro” (Oldenburg, 1999), ou seja, um espaço onde as hierarquias sociais são atenuadas e todas as pessoas que frequentam se encontram em condições de igualdade. Essa neutralidade torna o ambiente acolhedor e acessível, facilitando a livre circulação das pessoas, que se sentem confortáveis tanto para chegar quanto para partir.
Como resultado, os terceiros lugares tornam-se espaços propícios ao estabelecimento de vínculos baseados em interesses comuns. Oldenburg (1999) denomina esses ambientes de “zonas de triagem”, pois é nesses contextos que se formam e se desenvolvem relações sociais mediadas por diferentes tipos de afinidades, contribuindo para o fortalecimento dos laços comunitários e para o senso de pertencimento. Nesses espaços, encontram-se pessoas com interesses semelhantes e pessoas cujos interesses não são semelhantes, mas que são, no entanto, interessantes. Os terceiros lugares servem muitas vezes para reunir, pela primeira vez, pessoas que criarão mais tarde outras formas de associação.
Assim, o terceiro lugar possibilita o compartilhamento de interesses em comum, habilidades e competências que podem ser úteis na comunidade estimulando práticas colaborativas e fortalecendo o senso de coletividade. A partir dessas interações, constrói-se uma relação que permite à própria comunidade reconhecer seus pontos fortes e fracos – um conhecimento que se revela especialmente valioso em situações de crise. Por essa razão, Oldenburg (1999) caracteriza o terceiro lugar como uma “área de preparação”1, ou seja, um espaço em que os membros das comunidades podem se reunir para discutir os problemas e questões coletivas, visando buscar soluções conjuntas.
Outra observação relevante sobre o terceiro lugar é que ele fornece o que Jane Jacobs2 chamou de “personagens públicos” (Oldenburg, 1999). Esses personagens públicos são pessoas conhecidas e reconhecidas pela comunidade, que atuam como figuras-chave na mediação das relações sociais. Seu papel é fundamental, pois servem de elo entre os diversos membros do grupo, promovendo conexões e facilitando a integração social.
O terceiro lugar também se destaca por fomentar a convivência entre diferentes grupos sociais. Oldenburg (1999) ressalta, por exemplo, a importância do convívio intergeracional – como entre pessoas aposentadas e pessoas ainda na ativa no mercado de trabalho – destacando os benefícios mútuos que emergem dessa troca de experiências. Segundo o autor, o sentimento de proximidade e pertença cultivado nesses espaços desperta nos frequentadores e frequentadoras um interesse genuíno pelas outras pessoas e, como consequência, um cuidado coletivo mais sensível e empático.
Ademais, para acolher encontros e diálogos, os terceiros lugares podem ser compreendidos como fóruns políticos de grande importância (Oldenburg, 1999), no qual circulam informações, se realizam debates e, por vezes, são tomadas decisões de forma coletiva. Nesse processo, Oldenburg (1999) marca o potencial intelectual desses espaços, capazes de reunir diferentes perspectivas e promover o intercâmbio de ideias entre diversas pessoas, através de interações que possibilitam a produção de saberes e a troca de experiências e vivências.
Outro aspecto relevante abordado por Oldenburg (1999) tem relação com o potencial dos terceiros lugares no desenvolvimento da vida profissional. Esses espaços podem oferecer suporte significativo aos profissionais, seja por meio de recursos técnicos e informacionais, seja através do apoio interpessoal e das redes de colaboração que ali se formam. Para Oldenburg (1999), os terceiros lugares não apenas fortalecem a vida comunitária e os laços sociais, mas também contribuem ativamente para a formação da cidadania e para a consolidação das práticas democráticas.
Assim, compreender a BPB como um terceiro lugar significa reconhecer seu potencial de ampliar o escopo dos seus serviços, posicionando-se como uma alternativa de espaço público que acolhe, integra e promove o pertencimento. A biblioteca pública, nesse contexto, destaca-se como uma instituição capaz de oferecer encontros presenciais em uma era marcada pelo predomínio das interações digitais, tornando-se, assim, um verdadeiro “território de experiências e vivências” (Achilles, 2018, p. 250).
As características que definem o terceiro lugar, quando associadas às demandas contemporâneas dirigidas à BPB, traduzem-se na sua capacidade de impactar a vida das pessoas para além dos limites físicos e tradicionais da instituição. Em publicação recente de Barrios-Martínez, Cuevas-Cerveró e Gómez-Hernández (2024), as pessoas autoras analisam a teoria do terceiro lugar associada ao conceito de capital social relacionado ao espaço da biblioteca pública. Também indicam que, ao assumir características de terceiro lugar, a biblioteca passa a gerar capital social, especialmente por meio de interações de baixa intensidade – aquelas que, embora breves ou informais, contribuem para a construção de vínculos e redes sociais significativas (como será visto adiante).
Essa comunicação é fruto de uma pesquisa social, de cunho teórico, com delineamento descritivo e exploratório, visando construir um viés qualitativo baseado em proposições de alinhamentos entre conceitos. Utiliza como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica. Quanto ao protocolo metodológico utilizado, destaca-se o levantamento bibliográfico a respeito do tema tratado na base de dados escolhida, bem como outros materiais informacionais utilizados na pesquisa de mestrado.
Com a finalidade de obter conhecimento a respeito da produção brasileira sobre as temáticas aqui apresentadas, foi utilizada a Base de Dados em Ciência da Informação (BRAPCI), plataforma digital do Brasil que tem como objetivo coletar, preservar e prover acesso à literatura científica na área de Biblioteconomia e Ciência da Informação, reunindo principalmente fontes brasileiras e demais países da América Latina. Foi escolhida para constatar a incipiência da temática, e, até mesmo do cruzamento de dados sobre os conceitos tratados nessa comunicação.
Para o reconhecimento das publicações recentes que envolvessem a temática, todas as buscas foram limitadas a 10 anos. Assim, foram feitas utilizando a combinação dos termos <biblioteca pública> e <capital social> limitados ao campo resumo. Nesta opção 6 artigos foram recuperados. Destes artigos, somente 2 foram relevantes (Quadro 1):
Quadro 1. Artigo Recuperados – BRAPCI
| Referências |
|---|
| Lessa, Bruna-Bomfim; Gomes, Henriette-Ferreira. (2016). Bibliotecas públicas brasileiras e o Facebook: estratégias de interlocução e participação dos usuários. XVII Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciência da Informação - XVII ENANCIB. https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/189779 |
| Medeiros, Ana-Ligia-Silva; Olinto, Gilda. (2016). A biblioteca pública brasileira na visão de atores políticos e pesquisadores. Pesquisa Brasileira em Ciência da Informação e Biblioteconomia, 9(2). https://revistas.ancib.org/tpbci/article/view/386 |
Sobre o tema terceiro lugar, a exemplo da busca anterior, a combinação dos termos <biblioteca pública> e <terceiro lugar> limitados ao campo resumo e com resultados dos últimos 10 anos. Não foram encontrados resultados.
Para conhecer a produção publicada que envolva a comunidade, a busca na BRAPCI combinou <biblioteca pública> e <comunidade>, com o retorno de 18 registros e 10 publicações (Quadro 2) que convergiam com o propósito deste texto:
Quadro 2. Artigo Recuperados – BRAPCI
| Referências |
|---|
| Achilles, Daniele. (2023). Memórias comunitárias fragmentadas em bibliotecas públicas. Revista EDICIC, 3(2). https://doi.org/10.62758/re.v3i2.270 |
| Achilles, Daniele; Kornalewski, Alex-Medeiros. (2021). Comunidade de práticas: revisão sistemática em prol das bibliotecas públicas. Biblioteca Escolar em Revista, 7(2). https://doi.org/10.11606/issn.2238-5894.berev.2021.184383 |
| Almeida, Arthur-Henrique-Feijó-de. (2022). Políticas públicas para formação e desenvolvimento de coleções, comunidade LGBTQIA+ e representatividade: um estudo do acervo da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, 18, pp. 1-22. https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/229152 |
| Calheiros, Amanda-Gomes-Bezerra; Prado, Marcos. (2023). Comunidade e biblioteca pública: aproximações sociológicas para se pensar a emergência contemporânea. Logeion: Filosofia da informação, 9(2), pp. 199-222. https://doi.org/10.21728/logeion.2023v9n2.p199-222 |
| Crippa, Giulia. (2015). Pensando o espaço público do presente: a biblioteca pública em sua função social. DataGramaZero, 16(2). https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/8404 |
| Gonçalves, Alina-da-Silva; Olinto, Gilda. (2015). Tecnologías de la información y comunicación, competencia en información e inclusión social en la biblioteca pública: un estudio en la Biblioteca Parque de Manguinhos. Revista Interamericana de Bibliotecología, 38(3), pp. 201-212. https://doi.org/10.17533/udea.rib.v38n3a05 |
| Medeiros, Ana-Ligia-Silva; Olinto, Gilda. (2021). A biblioteca pública e a mangueira dores. XXI Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - XXI ENANCIB. https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/193337 |
| Rocha, Bruna-da-Silva; Barradas, Jaqueline Santos. (2022). Bibliotecas públicas cariocas em tempos de pandemia: desafios para alcançar a comunidade. Informação@Profissões, 11(1), pp. 102-124. https://doi.org/10.5433/2317-4390.2022v11n1p102 |
| Silva, Iara-Maria-Felix. (2018). Bibliotecas públicas: proposta para um serviço de informação à comunidade. Ciência da Informação em Revista, 5(3), pp. 71-82. https://www.seer.ufal.br/index.php/cir/article/view/5603 |
| Silva, Rafaela-Carolina-da; Caldas, Rosângela; Formentini; Burnett, Simon-Matthew; Oppenheim, Charles. (2017). Gestão em bibliotecas públicas no contexto híbrido: um estudo comparativo de bibliotecas híbridas do Reino Unido e do Brasil em prol do desenvolvimento de comunidades. XVIII Encontro Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciência da Informação - XVIII ENANCIB. https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/104040 |
Com base na busca booleana utilizando os termos (descritores) “biblioteca pública” + “comunidade” foram recuperados 100 registros que versam sobre temas diversos, sendo apenas 12 textos voltados à relação biblioteca pública e comunidade, efetivamente, como podemos observar no quadro a seguir (Quadro 3):
Quadro 3. Artigo Recuperados – BRAPCI
| Referências |
|---|
| Almeida, Arthur-Henrique-Feijó-de. (2022). Políticas públicas para formação e desenvolvimento de coleções, comunidade LGBTQIA+ e representatividade: um estudo do acervo da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco. Revista Brasileira de Biblioteconomia e Documentação, 18, pp. 1-22. https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/229152 |
| Araújo, Ana-Rafaela-Sales-de; Martins-Lima, Iara-Bárbara; da-Silva-Pereira, Amanda; Costa-Ferreira, Kauane-Lysien; Oliveira-Costa, Maria-de-Fátima. (2013). Biblioteca pública como centro de informação utilitária. Múltiplos Olhares em Ciência da Informação, 3(2). https://periodicos.ufmg.br/index.php/moci/article/view/17467 |
| Bernardino, Maria-Cleide-Rodrigues. (2017). Territorialidade e empoderamento da biblioteca pública. Revista Conhecimento em Ação, 2(2), pp. 108-124. https://doi.org/10.47681/rca.v2i2.14011 |
| Bernardino, Maria-Cleide-Rodrigues. (2019). Biblioteca pública e empoderamento: análise da política de atuação local. XX Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - XX ENANCIB. https://brapci.inf.br/v/124088 |
| Calheiros, Amanda-Gomes-Bezerra; Prado, Marcos. (2023). Comunidade e biblioteca pública: aproximações sociológicas para se pensar a emergência contemporânea. Logeion: Filosofia da informação, 9(2), pp. 199-222. https://doi.org/10.21728/logeion.2023v9n2.p199-222 |
| Gomes, Sonia-de-Conti. (1978). Informações para a comunidade estudantil de 1.º e 2.º graus na biblioteca pública. Revista da Escola de Biblioteconomia da UFMG, 7(2), pp. 242-262. https://periodicos.ufmg.br/index.php/reb/article/view/36240 |
| Medeiros, Ana-Ligia-Silva; Olinto, Gilda. (2021). A biblioteca pública e a mangueira dores. XXI Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - XXI ENANCIB. https://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/193337 |
| Rego, Janaina; Carlos, Mario; Sena, Valeska. (2016). Biblioteca pública: a relevância sociocultural da biblioteca pública Câmara Cascudo para a cidade de Natal/RN. Biblionline, 12(1), pp 96-104. https://periodicos.ufpb.br/index.php/biblio/article/view/28185 |
| Severiano, Luana-Aparecida-Neves. (2012). Serviço de informação à comunidade: a biblioteca pública como instrumento de cidadania e ação social. CRB8 Digital, 5(2), pp. 63-68. https://brapci.inf.br/v/10165 |
| Silva, Iara-Maria-Felix. (2018). Bibliotecas públicas: proposta para um serviço de informação à comunidade. Ciência da Informação em Revista, 5(3), pp. 71-82 https://www.seer.ufal.br/index.php/cir/article/view/5603 |
| Suaiden, Emir. (1987). Biblioteca pública e comunidade. Revista Interamericana de Blbliotecologia, 10(1), pp. 33-46. https://revistas.udea.edu.co/index.php/RIB/article/view/329305 |
| Suaiden, Emir. (1997). Interação biblioteca pública com a comunidade baseada em estudos de segmentação de mercado. III Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação - III ENANCIB. https://brapci.inf.br/v/178348 |
Dessa forma, os dados levantados por meio do protocolo metodológico adotado evidenciam a escassez de pesquisas que articulam de forma direta os conceitos de “biblioteca pública”, “capital social”, “terceiro lugar” e “comunidade” no campo da Biblioteconomia e Ciência da Informação no Brasil. A partir do recorte temporal e das combinações de descritores aplicadas nas buscas na base BRAPCI, constatou-se não apenas a incipiência das publicações sobre os temas de interesse, mas também a necessidade de aprofundamento teórico-conceitual que subsidie futuras investigações e a formulação de políticas públicas mais sensíveis às dinâmicas sociais promovidas pelas bibliotecas. Os resultados reforçam a pertinência desta pesquisa ao lançar luz sobre lacunas ainda pouco exploradas, além de apontarem caminhos para novas abordagens que reconheçam o papel estratégico das bibliotecas públicas como espaços de fortalecimento comunitário e desenvolvimento social.
Os pesquisadores e pesquisadoras noruegueses Aabø, Audunson e Vårheim (2010) destacam o crescente uso das bibliotecas públicas como um espaço de encontro e convivência. Em um cenário marcado por transformações nas formas de comunicação e pela ampliação dos direitos das minorias sociais – que têm promovido ativamente a construção de comunidades mais inclusivas -, torna-se essencial a existência de lugares que proporcionem a interação entre diferentes grupos e pessoas. Esses espaços cumprem um papel importante no enfrentamento da exclusão social e do preconceito. A biblioteca pública, neste sentido, assume uma função estratégica ao disponibilizar o seu espaço físico à comunidade e ao promover atividades que incentivem a troca, a escuta e o convívio entre pessoas diferentes.
Dessa maneira, a biblioteca pública emerge como um espaço de geração de capital social, pois “fornece um espaço de acesso público para a produção de conhecimento, compartilhamento e troca de informações e cultura, como também a promoção de engajamento cívico” (Krass et al., 2022, pp. 1-2). A afirmação reforça o papel da biblioteca não apenas como depositária de acervos, mas, sobretudo como mediadora de relações sociais e fomentadora de práticas cidadãs.
Olinto e Medeiros (2013, p. 236) também sublinham essa perspectiva ao afirmarem que “a promoção do capital social como o novo, e, talvez, principal papel das bibliotecas públicas contemporâneas” tem sido amplamente discutida em diversas pesquisas. Entre os fatores que impulsionam essa mudança de foco, destaca-se o fortalecimento defendido no mais recente Manifesto da IFLA sobre bibliotecas públicas (Krass et al., 2022). Nessa mesma direção, Barrios-Martínez, Cuevas-Cerveró e Gómez-Hernández (2024) apontam a capacidade das bibliotecas públicas de gerar capital social desponta como um valor agregado às suas funções tradicionais, tornando-se, nas palavras dos autores, um dos valores mais relevantes da instituição bibliotecária (Barrios-Martínez; Cuevas-Cerveró e Gómez-Hernández, 2024).
Para compreender melhor o conceito de capital social, é importante retomar sua formulação nos trabalhos dos sociólogos Pierre Bourdieu, James Coleman e Robert Putnam. Segundo Albagli e Maciel (2002), foi Pierre Bourdieu quem introduziu o termo no contexto das relações entre classes sociais, associando-o às vantagens e oportunidades decorrentes da pertença a determinados grupos ou redes sociais. Para Bourdieu, o capital social refere-se: “às vantagens e oportunidades de se pertencer a certas comunidades” (Albagli e Maciel, 2002, p. 5). Assim, o autor o define como uma rede durável de relações, mais ou menos institucionalizadas, de reconhecimento mútuo ou, em outros termos, à vinculação a um grupo, entendido como um conjunto de pessoas que não somente compartilham propriedades comuns, mas também estão unidas por ligações permanentes úteis (Monteiro, 2022).
James Coleman aprofunda o conceito de capital social, que de acordo com Albagli e Maciel (2002), é considerado um facilitador para aqueles que fazem parte de uma estrutura. Os autores destacam que, para Coleman, o capital social é definido por sua função e não corresponde a uma entidade única, mas sim a um conjunto de formas diversas que compartilham dois elementos em comum: relacionam-se com aspectos das estruturas sociais e permitem determinadas ações de pessoas ou organizações dentro delas.
As autoras explicam que, para James Coleman, o capital social pode ser compreendido a partir de 3 dimensões principais: nível de confiança entre as pessoas, os canais de trocas de informações e ideias, e os mecanismos de cooperação voltados para ações coletivas em prol de um bem comum (Albagli e Maciel, 2002). Essas dimensões evidenciam que o capital social não reside apenas em estruturas formais, mas também nas relações interpessoais que sustentam a vida em comunidade.
Já Putnam (2006, p. 177) define capital social como o conjunto de “características da organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuam para aumentar a eficiência da sociedade, facilitando as ações coordenadas”. Para Putnam, a confiança mútua é um elemento central na constituição de capital social. Ele argumenta que a cooperação se torna mais viável em comunidades com capital social bem estruturado, o que não apenas fortalece os vínculos locais, mas pode beneficiar, em escala ampliada, a própria nação, ao promover práticas de engajamento cívico e participação democrática – com também observam Barrios-Martínez, Cuevas-Cerveró e Gómez-Hernández (2024).
Sobre as ideias de Bourdieu e Coleman, Barrios-Martínez, Cuevas-Cerveró e Gómez-Hernández (2024,) enfatizam que se pode deduzir da tese de Bourdieu que a categoria conceito – capital social – apresenta vínculos com a tese de Coleman sobre o mesmo assunto. Além disso, há uma série de entidades e atores que participam dessa estrutura social seguindo um caminho comum. Isso decorre da tese de Bourdieu, que associa o capital social à ideia de categoria social e de laços fortes dentro das redes, e da tese de Coleman, para quem o capital social é uma variedade de entidades unidas por algum tipo de estrutura social e que permite a realização de certos objetivos aos seus componentes ou atores (Coleman, 1988).
Um aspecto apontado por Putnam refere-se às características das interações sociais que levam à formação de grupos (Aabø, Audunson e Vårheim, 2010; Olinto e Medeiros, 2013). Essas interações podem assumir duas formas: bonding, que estreita laços entre pessoas com interesses semelhantes, e bridging, que estendem pontes entre as pessoas com características e visões distintas. A formação de grupos com base em afinidades é classificada como do tipo bonding, ou laços estreitos, sendo composta por pessoas que compartilham espaços e interesses comuns, geralmente com ideias em sintonia – o que também remete à noção de laços fortes (Olinto e Medeiros, 2013).
Por outro lado, os grupos do tipo bridging reúnem indivíduos de perfis distintos, expostos a valores e ideias divergentes dos seus. Esses grupos são entendidos como constituídos por laços fracos e se formam a partir de pontos de encontro compartilhados — como, por exemplo, a biblioteca (Olinto e Medeiros, 2013).
Nesse sentido, os espaços como as bibliotecas públicas exercem um papel fundamental na promoção dessas interações, especialmente das relações bridging, por serem ambientes voltados à inclusão e valorizados por fomentar a prática da alteridade — elemento essencial para a construção e a manutenção da democracia. Ao mesmo tempo, contribuem para a preservação dos aspectos identitários dos grupos que os frequentam.
Granovetter destaca que os encontros de baixa intensidade, característicos dos laços fracos, são relevantes justamente por ampliarem as redes de relações sociais, permitindo ao indivíduo estabelecer conexões com pessoas e grupos com os quais dificilmente teria contato em sua rotina habitual (Barrios-Martínez; Cuevas-Cerveró e Gómez-Hernández, 2024).
A geração de capital social, portanto, está intrinsecamente ligada às dinâmicas relacionais proporcionadas pela reunião de pessoas no contexto da biblioteca pública. É a partir dessas interações que se constroem ativos sociais que beneficiam tanto a comunidade quanto seus integrantes. Segundo Luloff e Bridger, a confiança figura como elemento central na criação do capital social, ao lado da reciprocidade e do compromisso (Grzeslo, 2019). Essa lógica também se manifesta na relação entre comunidade, pertencimento, identidade e lugar — neste caso, representado pela biblioteca pública.
Para o constante processo de construção e fortalecimento da biblioteca pública no século XXI, torna-se necessário entendê-la sob novas perspectivas, especialmente no contexto brasileiro. A compreensão que se tem das bibliotecas públicas no Brasil restringe-se a sua função educativa e de lazer. Nesse sentido, esse artigo traz contribuições teóricas, alinhando conceitos, visando a ampliação das possibilidades de pensamento sobre o termo. A título de curiosidade, não utilizamos “considerações finais”, porque entendemos que a pesquisa, assim, como os conceitos são caminhos abertos, em devir, tal como nos ensina o filósofo Deleuze (2010).
Dito isso, a proximidade com a comunidade, embora sempre tenha sido uma premissa dessa instituição, exige hoje uma compreensão mais profunda das transformações sociais que moldam o comportamento das pessoas e, consequentemente, suas necessidades informacionais e sociais. Além das marcações históricas constituídas ao longo do tempo no Brasil.
A relevância da biblioteca pública na sociedade brasileira permanece associada aos seus serviços tradicionais, como o incentivo à leitura e o empréstimo de livros, por exemplo. No entanto, as demandas oriundas da incorporação das tecnologias digitais e do uso massivo da internet tornam urgente a reinvenção dos usos e funções desse espaço, conforme destaca Alonso-Arévalo (2022). As bibliotecas têm se reorganizado para oferecer serviços que não se limitam ao empréstimo e à leitura, disponibilizando uma gama crescente de atividades focadas na comunidade (Alonso-Arévalo, 2022).
No Brasil, ao considerarmos a pouca aderência das bibliotecas públicas na sociedade, o desenvolvimento da ideia da instituição como terceiro lugar se relaciona diretamente com redefinir entre a população (e entre os profissionais de todos os gêneros?) a representação da função da biblioteca. O que a biblioteca pública pode ser para uma comunidade?
Nesse cenário, pensar a BPB como terceiro lugar representa um novo olhar para esta instituição, que se encontra distante da maioria da população brasileira (Instituto Pró Livro, 2024) e carrega uma imagem limitada de seus serviços e usos. Isso reflete o que Achilles (2018) caracteriza como falta de aderência e ressonância social, reforçada por uma percepção ancorada no senso comum, que ainda associa a biblioteca quase exclusivamente ao estudo e à leitura
Compreendê-la como terceiro lugar — um espaço acessível, acolhedor e informal, que favorece o convívio e o fortalecimento de vínculos — amplia significativamente suas possibilidades de atuação, fortalecendo sua missão e relevância no cotidiano da população. Nesse contexto, a biblioteca pública pode se consolidar como um espaço de construção de capital social, promovendo o encontro, a troca e a colaboração entre os membros da comunidade. Essa realidade pode ser presenciada nos exemplos de boas práticas, que se constituem como exceções no Brasil. Comumente, bibliotecas como as do Município de Niterói no Estado do Rio de Janeiro; as bibliotecas escolares vinculadas a Secretaria Municipal de Educação em Vitória, no Estado do Espírito Santo, as bibliotecas públicas do Estado de São Paulo e as Bibliotecas do COMPAZ, têm se transformado em exemplos de terceiro lugar.
Bibliotecas públicas que se tornaram espaços significativos na vida das pessoas, podem ser vistas como um espaço público estratégico, capaz de atuar tanto com quanto para a comunidade, contribuindo para o desenvolvimento individual e coletivo, e ampliando as redes de relações em seu entorno por meio de serviços voltados à promoção do bem-estar social. É importante enfatizar que repensar o espaço físico da biblioteca também contribui para agregar a mudança de perspectiva nas pessoas que a utilizam. Espaços que proporcionam trocas, convívio e a permanência na biblioteca tornam-se receptivos e uma alternativa de destino para a comunidade. No caso das bibliotecas populares do Município de Niterói (RJ-Brasil) isso se materializa através das atividades de artesanato, que modulam leitura, trabalhos manuais, produção de subjetividade em ações de biblioterapia.
Os conceitos de terceiro lugar e de capital social constituem, portanto, caminhos essenciais para o fortalecimento dos espaços públicos, especialmente nos grandes centros urbanos, resultando no fortalecimento das comunidades, estabelecendo redes de confiança e pertencimento. Nesse sentido, as bibliotecas públicas podem cumprir plenamente seu papel como “geradoras de comunidades [...] e [como espaços que] contribuam para a melhoria da qualidade de vida” (Krass et al., 2022, p. 2). No caso brasileiro, tais reflexões são ainda mais urgentes, diante do crônico baixo investimento público no setor e da consequente pouca inserção dessas instituições na vida cotidiana do cidadão.
Mais recentemente, observa-se que a construção do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL) apresenta diretrizes que desconsideram o papel estratégico das bibliotecas, evidenciando sua crescente invisibilidade nas políticas públicas voltadas à leitura. Tal omissão revela uma proposta fragmentada, que compromete a formação leitora e enfraquece a construção de um projeto de país pautado no acesso democrático ao livro, à literatura e às bibliotecas. Essa invisibilidade também expressa a desconexão desses equipamentos das estruturas administrativas em diferentes níveis de governo, resultando na formulação de políticas sem garantias concretas de expansão, formação bibliotecária, investimentos em infraestrutura e recursos adequados.
Diante desse cenário, torna-se ainda mais urgente e necessário associar teoricamente as bibliotecas públicas aos conceitos de terceiro lugar e capital social, reconhecendo sua função como espaços de convivência, pertencimento e fortalecimento comunitário. Ao ignorar essas dimensões, o PNLL, que esteve até agosto de 2025 em consulta pública, perdeu a oportunidade de consolidar as bibliotecas como agentes fundamentais de transformação social, inclusão e desenvolvimento humano, restringindo a leitura a uma dimensão instrumental e desvinculada das práticas culturais e sociais que a sustentavam, por exemplo.
O engajamento social e profissional na ampliação dos aportes teóricos que associam as bibliotecas públicas como terceiro lugar e geradoras de capital social é fundamental para fortalecer sua legitimidade como espaços democráticos de convivência, participação cidadã e construção coletiva de saberes. Ao reconhecer essas instituições para além de seus serviços tradicionais, enfatiza-se seu potencial como ambientes que promovem vínculos sociais, confiança mútua e redes de solidariedade – elementos essenciais para o desenvolvimento de comunidades mais coesas. Tal ampliação teórica permite que profissionais da informação, pesquisadoras e pesquisadores, assim como gestores e gestoras compreendam e reivindiquem o papel estratégico das bibliotecas públicas nas políticas culturais, educacionais e sociais. Além disso, esse engajamento contribui para o desenho de práticas mais contextualizadas, inclusivas e comprometidas com a transformação social, garantindo que as bibliotecas sejam reconhecidas como espaços vivos, relevantes e essenciais para a cidadania.
Programa Jovem Cientista do Nosso Estado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
Renata Oliveira-da-Silva: Conceitualização; Curadoria de dados; Análise formal; Investigação; Administração do projeto; Redação – rascunho inicial e Redação – revisão e edição.
Daniele Achilles: Conceitualização; Curadoria de dados; Análise formal; Aquisição de financiamento; Investigação; Metodologia; Supervisão; Redação – rascunho inicial e Redação – revisão e edição.
Aabø, Svanhild; Audunson, Ragnar; Vårheim, Andreas. (2010). How do public libraries function as meeting places? Library &Information Science Research, 32(1), pp. 16-26. https://doi.org/10.1016/j.lisr.2009.07.008
Achilles, Daniele. (2018). Bibliotecas públicas brasileiras sob a perspectiva da memória e experiencia [Tese, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro]. http://www.repositorio-bc.unirio.br:8080/xmlui/handle/unirio/11576
Albagli, Sarita; Maciel, Maria-Lúcia. (2002). Capital social e empreendedorismo local. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Redesist. http://www.redesist.ie.ufrj.br/nts/nt33/F223_SaritaMLucia.PDF
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Amorim, Daniela. (2025). Renda per capita soma recorde em 2024 e desigualdade cai, mostra IBGE | CNN Brasil. CNN Brasil. https://revistaribes.es/short/99941e1
Anglada, Luís. (2012). ¿Podemos hablar de crisis desde las bibliotecas? Anuario ThinkEPI, 6, pp. 68-72. https://thinkepi.scimagoepi.com/index.php/ThinkEPI/article/view/30388
Barrios-Martínez, Cristina; Cuevas-Cerveró, Aurora; Gómez-Hernández, José-Antonio. (2024). Creación de capital social en la biblioteca pública. Revista Española de Documentación Científica, 47(1), e380. https://doi.org/10.3989/redc.2024.1.1453
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Jane Butzner Jacobs (1916 – 2006). Urbanista e ativista; voltar ao texto