https://doi.org/10.5209/RIBE.101820; Recibido: 25/03/2025; Revisado: 07/04/2025; Aceptado: 03/05/2025
Fernanda Cordeiro-de-Carvalho; Universidade de Brasília; fecarvalho@unb.br; https://orcid.org/0009-0001-4927-5991
Rogério-Henrique de-Araújo-Júnior; Universidade de Brasília; araujojr@unb.br; https://orcid.org/0000-0002-6125-822X
Artículos; Revista de Investigación sobre Bibliotecas, Educación y Sociedad; e-ISSN: 3045-5685; Ediciones Complutense; Creative Commons CC BY 4.0
Resumen: Este artigo analisa a presença de escritoras brasileiras de ficção nas bibliotecas universitárias do Brasil. Foram selecionadas 27 bibliotecas de universidades públicas federais, uma por estado. A escolha das autoras considerou sua presença em seleções críticas e comerciais sobre literatura brasileira e em publicações que destacam mulheres na produção literária. O estudo abrange obras do século XIX à contemporaneidade, totalizando 57 escritoras. A busca nos catálogos foi realizada pelos nomes das autoras, em ordem direta e inversa, com filtro de autoria. Os dados indicam uma presença ainda limitada dessas escritoras. Apenas duas autoras do século XIX foram encontradas, e a maioria publicou na segunda metade do século XX. Muitas das autoras estão representadas por poucos títulos, com algumas limitadas a um único livro. As escritoras negras são ainda mais invisibilizadas, com menor presença e número de títulos. Não parece haver correlação direta entre região e representatividade, mas autoras locais podem apresentar mais prestígio nas bibliotecas de seus estados. Conclui-se que a exclusão dessas autoras reflete padrões sociais mais amplos, exigindo que bibliotecas repensem a representatividade de seus acervos.
Palavras-Chave: Literatura brasileira; Escritoras brasileiras; Representatividade; Bibliotecas universitárias.
Abstract: This article examines the presence of Brazilian women fiction writers in university libraries across Brazil. Twenty-seven federal public university libraries were selected, one per state. The selection of authors was based on their inclusion in critical and commercial selections on Brazilian literature, as well as in publications that highlight women’s literary production. The study covers works from the 19th century to the present, analyzing a total of 57 writers. Catalog searches were conducted using the authors’ names in both direct and inverted order, applying an authorship filter. The data indicate that these writers remain underrepresented. Only two 19th-century authors were found, while most of the identified writers published in the second half of the 20th century. Many authors are represented by only a few titles, with some limited to a single book. Black women writers are even more marginalized, with lower representation and fewer available titles. There does not appear to be a direct correlation between region and representation, though local authors may receive greater recognition in their respective states’ libraries. The findings suggest that the exclusion of these authors reflects broader social patterns, underscoring the need for libraries to reconsider the diversity of their collections.
Keywords: Brazilian Literature; Brazilian Women Writers; Representativity; University Libraries.
Sumário: 1. Introdução. 2. Definição do corpus. 3. Literatura, sociedade e biblioteca. 4. Panorama das autoras. 5. Panorama das obras. 6. Conclusão. 7. Contribuição de autoria. 8. Referências
Como citar: Cordeiro-de-Carvalho, Fernanda; de-Araújo-Júnior, Rogério-Henrique. (2025). A mulher na biblioteca: produtoras literárias nas bibliotecas universitárias brasileiras. Revista de Investigación sobre Bibliotecas, Educación y Sociedad, 2, e101820. https://doi.org/10.5209/RIBE.101820
A busca por uma sociedade igualitária perpassa muitas áreas. No contexto da Ciência da Informação para além da universalização do acesso a informação, a biblioteca se insere cada vez mais na busca pela transformação social. Nesta toada, a Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas da Informação e Instituições (FEBAB) apresentou compilado de ações desenvolvidas dentro de bibliotecas comprometidas com uma sociedade mais justa e solidária. Nesta publicação a Federação alinha alguns projetos desenvolvidos aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 (FEBAB, 2018).
Do mesmo modo, pesquisar literatura ficcional é “reconhecer que aquilo que consideramos indispensável para nós é também indispensável para o próximo” (Candido, 2023, p. 187). Candido usou essas palavras para se referir aos direitos humanos no ensaio O direito à literatura em 1988. Neste texto, o autor defende a literatura como direito fundamental e discorre sobre ela como ferramenta indispensável para o desenvolvimento social, ao que podemos acrescentar ferramenta de consolidação da identidade cultural de um povo e uma nação.
Neste sentido, ressalta-se, além da importância da presença de obras ficcionais nos acervos de bibliotecas, a urgência de uma formação e desenvolvimento de acervos que reconheça sua importância tanto como instrumento de educação e instrução quanto como parte do processo de legitimação das mais diversas identidades do ser humano. Assim, a escolha das obras que compõem o acervo de uma biblioteca deve marcar, desde o planejamento de sua política, o reconhecimento do papel social da biblioteca, principalmente da biblioteca universitária, na formação de cidadãs e cidadãos críticos.
Os dados discutidos neste artigo são provenientes de uma pesquisa de mapeamento realizada nos 26 estados brasileiros além do Distrito Federal. O projeto foi motivado pela percepção de ausência de escritoras nas mais variadas listas de autores e autoras que compunham o cânone literário brasileiro. A partir da ausência destas mulheres, foram-se constando outras, tal como o número reduzido de mulheres negras em listas que se propunham a reunir escritoras brasileiras.
Para a realização deste mapeamento, deixou-se de lado a pretensão de composição de um cânone para investigar a presença feminina nas bibliotecas universitárias brasileiras. A pergunta que surge é: se a invisibilidade das mulheres escritoras e das mulheres escritoras negras nas listas tradicionais é um fato, como estas mulheres estão representadas nos catálogos das bibliotecas universitárias brasileiras?
Este mapeamento contemplou, como mencionado, 27 bibliotecas de universidades públicas federais. A escolha das universidades públicas federais partiu do Cadastro e-MEC (e-MEC, 2025), base de dados oficial dos cursos e Instituições de Educação Superior do governo brasileiro. Nesta base foi possível identificar um total de 69 universidades públicas federais. Decidiu-se eleger uma biblioteca por estado, considerando dentre os estados com mais de uma universidade pública, aquela com sede na capital, e, em caso de empate, a que dispusesse do sistema de bibliotecas mais robusto, tendo como base o número de bibliotecas que compõem o sistema.
A única exceção a essa regra se deu com a biblioteca na Universidade Federal de Pernambuco, que apesar de se encaixar nos critérios do mapeamento não estava com o catálogo online acessível no período do mapeamento, inviabilizando sua participação. Em seu lugar foi escolhida a biblioteca da Universidade Federal Rural de Pernambuco, segunda colocada segundo os critérios anteriormente descritos.
Para representar as escritoras brasileiras, elegeram-se duas publicações. A primeira obra escolhida foi publicada em 2022 com o título Escritoras brasileiras, livro organizado por Maria-Amélia Elói, publicado pela Edições Câmara. Nesta obra são listadas 32 autoras (Éloi, 2022). Apesar da riqueza e importância deste trabalho apenas duas autoras são reconhecidamente negras, Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis.
Para garantir a presença de escritoras negras no mapeamento escolheu-se a obra coordenada por Eduardo-de-Assis Duarte intitulada Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVII ao XXI republicada em 2020 pela Pallas Editora. Listadas na obra encontram-se 27 autoras, entre elas Carolina Maria de Jesus e Maria Firmina dos Reis, que já constavam da lista anterior. Totalizando, portanto, 57 autoras contempladas no mapeamento.
Definido o corpus, o mapeamento foi conduzido em cada uma das bibliotecas a partir de pesquisas por “Autoridade” no catálogo. A busca por autoridade foi realizada de forma direita, pelo nome completo da autora e suas variações, bem como pela indireta, com entrada pelo sobrenome da autora. Esta variação no momento da busca se fez necessária já que dentre as veintisiete bibliotecas encontram-se seis softwares de gerenciamento de acervo diferentes, conforme Tabela 1 a seguir, cada um como suas particularidades de busca.
Tabela 1. Softwares de gerenciamento de bibliotecas
| Software | Quantidade |
|---|---|
| Asten | 2 |
| Minerva | 1 |
| Pergamum | 14 |
| Sabi+ | 1 |
| SIGAA | 7 |
| SophiA | 2 |
Por fim, as buscas conduzidas tiverem seus resultados registrados em planilha sistemática dividida por autora, biblioteca e região do país.
A identidade cultural de um povo está subscrita em sua produção ficcional. Para Candido “cada sociedade cria as suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os seus impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada um a presença e atuação deles” (Candido, 2023, p. 190). No Brasil a literatura foi marcada por um projeto unificador baseado na assimilação da diversidade em uma concepção romântica de nação una em contraponto a pluralidade cultural e étnica que caracteriza o povo brasileiro.
Ao discutir a formação da literatura brasileira Rita Schmidt pondera que “o nacional [...] constituiu-se como um domínio masculino, de forma explícita e excludente” (Schmidt, 2019, p. 65). Para a autora o resgate e a visibilidade das obras de autoria feminina “afetam o estatuto da própria história cultural e, particularmente as reflexões de ordem historiográfica e crítica” (Schmidt, 2019, p. 66).
Ao se pesquisar pelo cânone literário brasileiro encontram-se listas de todos os tipos. Nelas, saltam aos olhos as ausências impostas por esse projeto uniformizador e excludente. Dentre as mais populares destaca-se, por exemplo, a lista que o crítico literário Alfredo Bosi fez a pedido do Museu da Língua Portuguesa (Bosi, 2005). Dentre As 120 grandes obras da literatura brasileira, escolhidas pelo crítico, apenas quatro escritoras são mencionadas: Rachel de Queiróz, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e Clarice Lispector.
Em contraponto a lista elaborada pelo acadêmico, também se encontram listas comerciais, como a desenvolvida pela Revista Bravo intitulada Ranking: 100 livros essenciais da Literatura Brasileira onde são mencionadas seis autoras: Clarice Lispector, Cecília Meireles, Lygia Fagundes Telles, Hilda Hilst, Adélia Prado e Rachel de Queiróz (de-Freitas, 2025). Este artigo não pretende julgar o mérito de tais seleções. Importou-nos apenas exemplificar a ausência mencionada anteriormente, fato que parece confirmar a implementação do projeto uniformizador e excludente construído para o Brasil. Sobre a formação da literatura brasileira a pesquisadora Rita Schmidt pondera:
“Na construção da genealogia brasileira, não houve espaço para a alteridade, e a produção literária local traduziu a intenção programática de construção de uma literatura nacional, perspectivada a partir de um nacionalismo romântico abstrato e conservador e atravessada pela contradição: desejo de autonomia e dependência cultural. Compreende-se, dessa forma, que o projeto romântico, mesmo quando articulava o desejo político de construção identitária que promovesse as particularidades locais, estava cumpliciado ao modelo cultural dominante da missão civilizatória em alerta contra a irrupção da barbárie, figurada na condição essencializada do outro, dentro do paradigma etnocentrista do colonizador” (Schmidt, 2019, p. 68).
Em estudos realizados pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Regina Dalcastagnè observou que o grupo de escritores brasileiros é bastante homogêneo. Segundo a autora “são quase todos brancos, muito mais homens do que mulheres, habitantes de grandes centros urbanos” (Dalcastagnè, 2007, p. 126). Ainda para a autora “o silêncio dos grupos marginalizados [...] é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que buscam falar em nome desses grupos, mas também pode ser quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes” (Dalcastagnè, 2021, p. 110-111).
Desta forma, o que se pretende discutir não é a teoria literária ou como a literatura fornece e forma determinadas representações da realidade. Mas sim, como as bibliotecas estão representando o conjunto de perspectivas sociais e culturais que passam a fazer parte das publicações ficcionais brasileiras. De fato a representação está no cerne da presença de literatura ficcional nas bibliotecas. Não basta existir um número apropriado de obras ficcionais, qualquer que ele seja. Tais obras devem representar uma comunidade que precisa reconhecer-se assim como reconhece o outro dentro delas.
O processo de desconstrução desta uniformidade de quem faz literatura, portanto, passa necessariamente pelo destaque de vozes silenciadas, aqui representadas pelas escritoras ficcionais brasileiras, que apesar de não serem as únicas silenciadas fazem inexoravelmente parte deste grupo. Para isso, são necessárias políticas de seleção e aquisição que reconheçam a importância de um acervo diverso e representativo do que é de fato a realidade brasileira. A diversidade de vozes dentro da biblioteca possibilita o enriquecimento do debate uma vez que dá acesso a variadas perspectivas e reconhece as múltiplas expressões culturais da comunidade acadêmica e social a quem serve, além de possibilitar o reconhecimento das pessoas brasileiras em sua inteireza social e cultural nos respectivos acervos.
Fabíola Farias e Cleide Fernandes comentam sobre como este entendimento leva ao enriquecimento das ações de mediação dentro das bibliotecas:
“Assim como tudo na vida, a biblioteca e os livros não são neutros e carregam em si discursos políticos, econômicos, de raça, de classe, de gênero e, principalmente, um ideal de homem educado. A mediação desejada é aquela que apresenta diferentes discursos, evidenciando as disputas de poder entre os grupos sociais, verdadeiro motor da nossa história” (Farias e Fernandes, 2019, p. 75).
Os dados que seguem serão apresentados buscando comparar estatísticas de autoria branca e negra. Assim, se busca destacar, dentro da multiplicidade da expressão ficcional feminina a presença nas bibliotecas de iniciativas oriundas deste segmento ainda mais marginalizado. Estudos lançados por mulheres negras evidenciam a importância em reconhecer as diferenças entre as mulheres, ao contrário de exaltar a homogeneidade de um coletivo social, para que se possa enriquecer o debate. Para Audre Lorde “ignorar as diferenças de raça entre mulheres e as implicações dessas diferenças representa a mais séria ameaça à mobilização de forças das mulheres” (Lorde, 2019, p. 242).
Corroboram esta visão autoras como Iris Young para quem “a procura das características comuns das mulheres, ou da sua opressão, conduz a normalizações e exclusões” (Young, 2003, p. 113). Para a autora assumir que as mulheres fazem parte de um único grupo leva a uma visão generalista focada em privilégios que tomam como experiência coletiva a experiência de mulheres brancas, de classe média e heterossexuais. Corroborando, mais uma vez, com o paradigma vigente do projeto uniformizador e excludente construído para o Brasil. É com esta perspectiva que este trabalho se desenvolve. Esta pesquisa, portanto, buscará ressaltar diferenças para que se possa pensar criticamente em mobilização de esforços distintos e efetivos sem obscurecer a produção social e discursiva de identidades. O que se busca, para além de ressaltar e dar maior visibilidade a autoria feminina, é verificar a presença e representação das obras destas autoras nas bibliotecas universitárias brasileiras.
Entre as 57 autoras pesquisadas, 27 foram encontradas no livro coordenado por Eduardo-de-Assis Duarte, que tem por objetivo valorizar a produção literária de negras e negros brasileiros (Duarte, 2020). Assim, estas serão consideradas as autoras negras desta pesquisa. As 30 demais serão tratadas como brancas, apesar da base da população brasileira ter sido formada com intensa miscigenação ao longo de cinco séculos, conforme preconiza em estudo clássico sobre o tema Verger (1987). Esta distinção comparativa se mostrará útil nas diferenças impostas a cada grupo. Deste modo, formou-se um grupo quase homogêneo quanto ao número de autoras consideradas brancas e negras pesquisadas.
Em relação ao número de obras, estas totalizam 892 títulos, incluindo textos não ficcionais. Deste total, 683 são de autoria branca, representando 76,6%, enquanto 209 títulos são de autoras negras, 23,4%. A média de títulos por autora, considerando-se o total de autoras, é de apenas três obras. Entretanto, enquanto a média máxima de livros por biblioteca das escritoras negras é de 2,5 títulos –média obtida por Cyana Leahy-Dios, a média máxima de títulos de escritoras brancas é de 25 livros por biblioteca – média obtida por Clarice Lispector.
Temos uma primeira distinção entre os grupos. As autoras brancas além de estarem em mais bibliotecas possuem um número maior de títulos. Clarice Lispector ou Chaya Pinkhasivna Lispector nasceu em 1920 na Ucrânia, emigrou com a família em 1922 para o Brasil e se declara pernambucana. Foram encontrados 68 títulos desta autora e a biblioteca que possuiu o maior número de livros de sua autoria é a biblioteca da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) com 45 obras. Enquanto Cyana Leahy-Dios, nascida em 1950 em Salvador, obteve 17 títulos encontrados e a biblioteca com mais títulos também é a da UFMG, com sete obras da autora.
Olhar para as duas escritoras mais difundidas nas bibliotecas também é olhar para o todo. Assim como Clarice Lispector as escritoras brancas tem uma média de idade maior, nasceram entre os anos de 1810 e 1970 - nove delas no séc. XIX. Já as escritoras negras nasceram entre 1825 e 1979 – apenas uma no séc. XIX. Uma possível leitura para a presença maior de produção literária de escritoras negras nascidas no século XX se dá pela criação a partir da década de 1970 de coletivos que, segundo Eduardo Duarte, almejavam construir uma literatura de combate e resistência ao racismo e de afirmação dos valores culturais afro-brasileiros. Como exemplo o autor cita coletivos como “grupos Gens, na Bahia, Negrícia, no Rio de Janeiro, Palmares, em Porto Alegre, e Quilombhoje, em São Paulo” (Duarte, 2020, p. 12). Na mesma toada, Amaro (2024) correlaciona as publicações dos “Cadernos Negros” e o “Movimento Negro Unificado”, mais um autor que evidencia o fazer literário com o combate ao racismo, inserido em movimentos coletivos.
Ainda a respeito do número de obras, destacam-se Cecília Meireles que apresentou o maior número de títulos, 115 encontrados. E Inaldete Pinheiro, escritora negra, que não foi encontrada em nenhuma das bibliotecas pesquisadas. Inaldete Pinheiro de Andrade é autora de publicações sobre a cultura afro-brasileira, racismo, patrimônio cultural e ambiental, dança e música. A maior parte dos seus livros é destinada ao público infantojuvenil, o que poderia justificar a ausência de seus livros nas bibliotecas não fossem os outros 102 livros, de outras autoras brancas e negras, encontrados deste gênero. Nascida em Parnamirim (Rio Grande do Norte) ela está fora do eixo principal de publicação. Como pode ser observado na Tabela 2 a seguir, o eixo Rio-São Paulo é o local onde mais de 50% das autoras pesquisadas nasceram.
Tabela 2. Local de nascimento
| Estado | Quantidade |
|---|---|
| São Paulo | 17 |
| Rio de Janeiro | 13 |
| Minas Gerais | 10 |
| Bahia | 4 |
| Rio Grande do Sul | 3 |
| Ceará | 2 |
| Goiás | 2 |
| Rio Grande do Norte | 2 |
| Maranhão | 1 |
| Pará | 1 |
| Santa Catarina | 1 |
| Ucrània (país) | 1 |
Apesar da hegemonia de nascimentos entre os estados Rio de Janeiro e São Paulo, esta estatística não se repete quanto a presença das escritoras nas bibliotecas do estado. O que quer dizer que, não é porque uma autora nasceu em um estado que este será o que mais terá títulos de sua obra. Entre as quatro autoras presentes em todas as bibliotecas temos Cecília Meireles que nasceu no Rio de Janeiro e tem como biblioteca mais representativa de sua coleção as bibliotecas da UFMG e a da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Clarice, que se declara pernambucana está mais presente na UFMG; Lygia Fagundes Telles, nascida em São Paulo está mais presente na UFMG e Rachel de Queiróz nascida em Fortaleza está mais presente na UFRJ.
Estes dados parecem sinalizar que não há por parte dos bibliotecários e da formação e desenvolvimento de acervo destas bibliotecas uma predileção a autorias regionais. A tendência que se apresenta é por vezes mais ligada à fama alcançada pelas autoras no cenário nacional. O que pode ser um fator que impede autoras com menos visibilidade de chegarem às bibliotecas.
Fator que aparenta ter relevância na formação de um acervo mais diverso é o desenvolvimento de projetos que valorizem a diversidade de vozes dentro da universidade em contraponto ao projeto uniformizador e excludente já mencionado. Como é o caso da UFMG que detêm a biblioteca com maior quantidade de títulos, no todo, além de ser a biblioteca com maior número de escritoras negras no seu acervo, a biblioteca tem obras de 20 das 27 pesquisadas, também com o maior número de títulos destas escritoras. Esta universidade desenvolveu, a partir de grupos de pesquisa ligados à Faculdade de Letras, o Literafro – Portal da literatura afro-brasileira (Literafro, 2025), que além de divulgar autores e autoras negras brasileiras participa de publicações e eventos dedicados à temática.
Também a Universidade de Brasília (UnB), biblioteca que tem obras de 19 das 27 pesquisadas e está em segundo lugar em relação ao número de títulos de escritoras negras, se destacou por desenvolver projetos dentro da biblioteca para expandir o acervo de escritoras negras no ano de 2023 (Universidade de Brasília, 2025). Para Regina Brito “o esforço da mediação aparece como a resposta necessária para a construção da relação entre uma cultura e outra, pois a apropriação cultural não ocorre naturalmente” (Brito, 2019, p. 41). Existe certo consenso, entre os mediadores de literatura em bibliotecas, que não basta disponibilizar livros, é preciso mediar a leitura para que os conhecimentos imbuídos em cada perspectiva social representada nos livros possam ultrapassar a barreia do conhecimento útil se transformando em experiência. Este é um passo fundamental após garantir a presença das escritoras ficcionais nas bibliotecas.
O olhar sob a presença das autoras nas bibliotecas universitárias também seguirá a lógica comparativa. Assim, destaca-se que nenhuma escritora negra está presente em todas as bibliotecas. As mais difundidas são Maria Helena Vargas da Silveira, presente em 23 bibliotecas; Cyana Leahy-Dios, também em 23; Carolina Maria de Jesus, em 22; e Ruth Guimarães, em 20. Apenas 44% (12 autoras), das 27 pesquisadas estão presentes em mais de 10 bibliotecas.
Entre as autoras brancas quatro estão presentes em todas as bibliotecas pesquisadas: Cecília Meireles, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e Rachel de Queiróz. Entre as 30 autoras, 77,4% (24 autoras) estão presentes em mais de dez bibliotecas. Cabe destacar que as quatro autoras, presentes em todas as bibliotecas, são aquelas que também aparecem nas listas de grandes obras da literatura brasileira, como as duas mencionadas. Nestas listas ainda encontramos Adélia Prado, agraciada com o Prêmio Camões em 2024, que apesar de não fazer parte deste escopo está presente em 26 bibliotecas; Hilda Hilst, também em 26; e Henriqueta Lisboa, em 21 bibliotecas. O que pode demonstrar uma tendência a escolha destas autoras brancas e presentes em listas de destaque da literatura nacional em processos de seleção e aquisição dentro das universidades públicas brasileiras, estabelecendo a uniformização nas políticas de desenvolvimento de coleções e alimentando os processos de invisibilização e esquecimento das autoras negras.
Ao que parece, portanto, a ausência de mulheres negras em listas gerais reflete no fato delas terem uma presença bem mais acanhada nas bibliotecas. Conceição Evaristo, por exemplo, escritora negra, importante voz da literatura brasileira contemporânea, apesar de vir sendo exigida em provas de vestibulares ao redor do país, está presente em apenas 16 das 27 bibliotecas pesquisadas. Por que essas mulheres são mais inviabilizadas? Para Audre Lorde “a literatura de mulheres de cor raramente é incluída em cursos de literatura de mulheres e quase nunca em outros cursos de literatura, nem em estudos sobre as mulheres em geral” (Lorde, 2019, p. 242). Como justificativa a autora observa que muitas vezes a “desculpa dada é que as literaturas de mulheres de cor só podem ser ensinadas por mulheres de cor” um argumento que se sustenta em um entendimento errôneo do conceito de “lugar de fala”.
Para Dalcastagnè (2007), Carolina Maria de Jesus, por exemplo, nunca foi incorporada ao campo literário brasileiro, tendo sua obra muitas vezes reduzida à condição de testemunho, que em uma análise dialética da realidade seria um critério objetivo para excluir obras de escritoras brancas como é o caso de Anarquistas graças a Deus de Zélia Gattai – obra presente em 23 das 27 bibliotecas pesquisadas. Neste sentido, para a autora é importante que se distinga a capacidade de construir narrativas e o reconhecimento deste esforço. As bibliotecas fazem parte deste processo de reconhecimento. Afora o pertencimento ou não de Carolina Maria de Jesus ao cânone brasileiro, o que se pretende observar e, por que não, o que se busca com esta pesquisa é que sua perspectiva social esteja presente nas bibliotecas universitárias enriquecendo o debate e entendimento da realidade brasileira, ajudando a formar cidadãs e cidadãos éticos e empenhados em desenvolver soluções democráticas no seu campo de atuação. Assim, o fato de Carolina Maria de Jesus estar presente em 22 das bibliotecas pesquisadas traz um pouco de alento:
“O principal compromisso da mediação em uma biblioteca [...] deve se sustentar [nas] possibilidades de apropriação da literatura como experiência para a compreensão, a indagação e a intervenção no mundo, a partir da letra. Esse entendimento credita à leitura literária a perspectiva de um espaço de construção e fortalecimento de uma democracia cultural” (Farias e Fernandes, 2019, p. 73).
Virginia Woolf reflete sobre a influência que as condições sociais das mulheres exercem sobre o exercício da escrita literária feminina no seu ensaio ficcional Um teto todo seu (Woolf, 2014). Para a autora, a escrita requer um espaço livre de interrupções, tempo para se dedicar ao ofício, além de recursos financeiros próprios e validação social. Infelizmente estes são fatores até hoje ausentes na vida de tantas mulheres.
Audre Lorde, por sua vez, discute como as diferenças de classes interferem na escolha da forma que a mulher utilizará para se expressar. Para a autora “até mesmo a forma que nossa criatividade assume é geralmente uma questão de classe” (Lorde, 2019, p. 241). Neste contexto, reconhecemos que os fatores que se impõem na escrita de literatura ficcional feminina são diversos e que tais fatores podem influenciar diretamente no fazer literário feminino. E, por isso, decidiu-se investigar quais gêneros estão representados no recorte da presente pesquisa.
Nas produções literárias destas autoras encontram-se os mais diversos gêneros. Entre as obras individuais ficcionais foram listados 647 títulos. Dentre os contabilizados observamos romances, contos, crônicas, livros infantojuvenis, poesia entre outros. A poesia destaca-se como o gênero preferido com 30% do total da produção. Seguido pelo romance (20%), os livros destinados ao público infanto-juvenil (16%), contos (15%), crônicas (10%). E uma minoria que se divide entre memórias (4%), outros tipos de prosa (3%) e por fim, teatro (2%).
O maior número de livros de poesia encontrado está de acordo com os estudos e observações de Audre Lorde para quem a poesia é a forma de arte mais econômica. Para a autora, trabalhar com produção de poesia exigiria menos trabalho físico, além de menos material, e poderia ser feita entre turnos de trabalho, no transporte público, e em sobras de papel. A autora conclui: “ao revermos nossa literatura, a poesia foi a voz mais importante dos pobres, dos trabalhadores e das mulheres de cor” (Lorde, 2019, p. 241).
Contudo, apesar desta premissa poder ser verdadeira para a produção literária, quando investigamos a presença das obras nas bibliotecas temos um gênero que se sobressai na literatura de mulheres negras. A literatura infantojuvenil representa 42% do total de livros. A tendência do mercado editorial de publicações de literatura infantil com cunho antirracista provavelmente despertada pela Lei 10.639, de 2003 (Brasil, 2003), que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos escolares, parece ser seguida também na presença destes livros nas bibliotecas, mesmo que universitárias.
Entre os romances encontramos 121 títulos escritos por autoras brancas contra 11 escritos por negras. Se levarmos em consideração as discussões de Virginia Woolf e Audre Lorde, realmente parece que as mulheres brancas têm mais chances de ter “um teto todo seu” sem distrações e recursos financeiros maiores. Interessa notar que em termos percentuais o único gênero que se assemelha são os contos, que representam 14% da produção das escritoras brancas e 15% das negras.
As traduções encontradas também sinalizam uma diferença entre as autoras. Entre as negras apenas Carolina Maria de Jesus apresenta obras traduzidas nos acervos, totalizando 5 obras traduzidas, enquanto entre as escritoras brancas encontram-se 34 títulos em línguas estrangeiras. Mais uma vez a tendência de validação pelo grande público nacional e internacional parece se impor nas escolhas de quais livros “merecem” ser lidos pelos alunos estrangeiros, proporcionando um produto de exportação cultural talhado pelos mecanismos do projeto de uniformização e exclusão construído para o Brasil.
Por fim, para esta última parte do artigo, foram retiradas das estatísticas as antologias coletivas, por não serem obras individuais. Mas elas também mostram um dado importante para esta análise. As antologias representam a segunda forma de publicação mais utilizada pelas mulheres negras, enquanto para as brancas aparece em quinto lugar. Isso mostra que enquanto as mulheres negras estão representadas, primeiro por livros infantojuvenis e em seguida pelas antologias, as mulheres brancas escrevem, nesta ordem, poesias, romances, crônicas, literatura infanto-juvenis e só em quinto lugar as antologias. Esse dado, apesar de não ser de publicação e sim de representação dentro das bibliotecas, parece ter relação com as suposições de Duarte (2020) sobre a importância da formação de coletivos para alavancar a produção da literatura afro-brasileira.
A representação da literatura brasileira nas bibliotecas universitárias do país não se mostra tão heterogênea quanto se mostram as perspectivas sociais e culturais do Brasil. Se nas discussões de igualdade trazidas pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e por tantas outras iniciativas nacionais e internacionais não cabe mais a ideia de uma única voz que fale e se expresse por todos, tampouco se pode aceitar que apenas alguns representem toda a pluralidade cultural do Brasil.
A inclusão de uma obra no acervo de uma biblioteca, talvez mais do que sua publicação, é capaz de dar legitimidade aos autores e autoras que compõem o seu acervo. Dentro de um quadro que desabona as obras de autoras, que dá preferência a autores “conhecidos do grande público” e que desvaloriza experiências que estão a margem do padrão uniforme do que é visto como “boa” literatura. É preciso refletir sobre o que o usuário busca, e qual o cidadão e cidadã que a biblioteca pretende ajudar a formar. Será que o leitor e a leitora buscam e precisam de identificação imediata entre o que leem, o que vivem e pensam? Ou dentro da biblioteca universitária ela e ele podem encontrar reconhecimento, mas também desafio e estranhamento para formar um pensamento crítico de mundo?
Embora ainda necessite de muita discussão e pesquisa, como toda boa pesquisa requer, com os dados aqui apresentados é possível inferir que a representatividade das autoras, do recorte selecionado, dentro das bibliotecas, parece tender a acompanhar os padrões de exclusão da sociedade brasileira, na qual mulheres, e principalmente, mulheres negras são silenciadas. Da mesma forma que a sociedade busca pensar sobre a inclusão de novas vozes nos espaços políticos, midiáticos e universitários também as bibliotecas precisam se ocupar de estudos e ações preocupadas com a representatividade de seus acervos.
Ações estas que parecem depender de projetos contínuos, com preocupação social, que não finalizem na seleção e aquisição de livros, mas que estejam comprometidos com a organização e disseminação da informação de forma propositiva. Dar voz às perspectivas trazidas pelas escritoras brancas e negras não se restringe, por mais que seja importante, a trazê-las para dentro das bibliotecas, esse passo apesar de fundamental está longe de ser o último. É preciso atenção às demandas concretas da sociedade, para que se tome consciência sobre as ausências do acervo, e com engajamento da comunidade acadêmica e organização e representação da informação, se possa alcançar, em um movimento cíclico e contínuo, um acervo mais dinâmico e representativo da sociedade.
Fernanda Cordeiro-de-Carvalho: Conceitualização; Curadoria dos dados; Análise formal; Investigação; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Supervisão; Validação; Visualização; Redação – rascunho inicial e Redação – revisão e edição.
Rogério-Henrique de-Araújo-Júnior: Conceitualização; Análise formal; Metodologia; Administração do projeto; Recursos; Supervisão; Validação; Visualização; Redação – rascunho inicial e Redação – revisão e edição.
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