Autonomia moral, soberania popular e uso público da razão em Kant

Moral Autonomy, Popular Sovereignty and Public Use of Reason in Kant

Monique Hulshof

Universidade Estadual de Campinas, Brasil

RESUMEN Em Direito e Democracia, Habermas apresenta uma ambiguidade no conceito kantiano de autonomia que levaria a uma relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular: este conceito teria sido introduzido do ponto de vista privado do sujeito individual que julga moralmente e explicitado do ponto de vista da formação política discursiva e democrática da vontade. Contrapondo-se a essa leitura, Maus argumenta que Kant desenvolve os direitos humanos e a soberania popular na mais estreita complementaridade recíproca. Contudo, ela aceita a crítica de Habermas ao caráter monológico do princípio kantiano da moral, mantendo a ambiguidade do conceito de autonomia. No presente artigo pretendo sugerir que quando se atenta para as concepções de Esclarecimento e “uso público da razão” apresentadas por Kant nos textos políticos torna-se possível compreender que longe de desvalorizar a formação política da vontade, Kant a estabelece como um passo fundamental para a realização da moralidade e, portanto, da autonomia da vontade. Num primeiro momento, argumentarei que ao explicar o princípio de autonomia mediante a ideia de autolegislação da vontade, Kant não introduz uma ambiguidade neste conceito. Pelo contrário, ele estabelece uma estrutura normativa comum entre os domínios da moral e do direito. Por fim, retornarei à Doutrina do Direito para argumentar que, para Kant, a interação e comunicação entre os cidadãos não é lateral para a legitimação do direito, visto que são exigidos o consentimento dos membros da comunidade política e o convencimento pela razão.

PALABRAS CLAVE Kant; Habermas; Maus; Autonomia; direito.

ABSTRACT In Between Facts and Norms, Jürgen Habermas points out an ambiguity in the Kantian concept of autonomy that would lead to an antagonism between human rights and popular sovereignty. He charges Kant of introducing this concept from the private point of view of the individual subject who judges morally and of elucidating it from the point of view of the discursive and democratic political formation of the will. Against this reading, Ingeborg Maus argues that Kant develops human rights and popular sovereignty in the closest reciprocal complementarity. Nonetheless, she agrees with Habermas’s critique of the monological character of the Kantian principle of morality and reaffirms the ambiguity of the concept of autonomy. The aim of this article is to to shed light on Kant’s conceptions of Enlightenment and “public use of reason” developed in his political writings, in order to suggest that far from devaluating the political formation of the will, Kant establishes it as a fundamental step towards the realization of morality and, therefore, of the autonomy of the will. First, I will argue that in explaining the principle of autonomy with the idea of self-legislation of the will, Kant does not introduce ambiguity in this concept. On the contrary, it establishes a common normative structure between the domains of moral and right. Finally, I will return to the Doctrine of Right to argue that for Kant, interaction and communication between citizens is not lateral to the legitimation of right, since the members of the political community must consent and be convinced by reason.

KEY WORDS Kant; Habermas; Maus; Autonomy; Right.

RECIBIDO RECEIVED 29/03/2018

APROBADO APPROVED 08/09/2018

PUBLICADO PUBLISHED 15/12/2018

NOTA DE LA AUTORA

Monique Hulshof, Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.

A pesquisa conta com Auxílio Regular da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Correo electrónico: mohulshof@gmail.com

Número ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0745-8626

Las Torres de Lucca, Vol. 7, Nro. 13, Julio-Diciembre 2018, pp. 127-147 . ISSN-e 2255-3827.


Em Direito e Democracia, Habermas aponta para uma ambiguidade no conceito kantiano de autonomia, que teria como consequência o estabelecimento de uma relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular na Doutrina do Direito de Kant. Habermas afirma que, embora Kant tenha formulado o conceito de autonomia da vontade recuperando elementos da concepção rousseauísta de autolegislação política, esse conceito teria sido introduzido do ponto de vista “privado” de um sujeito que julga moralmente. Essa ausência de clareza na articulação entre “autonomia moral” e “autonomia pública” teria conduzido à seguinte tensão: ao estabelecer o princípio do direito como tendo sua origem no princípio de autonomia da vontade, Kant teria privilegiado a fundamentação moral dos direitos humanos e desvalorizado a formação discursiva e democrática da vontade política, enquanto força legitimadora do direito.

Na Metafísica dos Costumes, Kant de fato fundamenta o princípio universal do direito no princípio da moral e estabelece o conceito de liberdade como “único direito inato” do qual derivam os direitos de igualdade e independência. No entanto, é possível afirmar que esse tipo de fundamentação não tem como consequência a instituição de uma relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular. Contrapondo-se à leitura que Habermas faz da Doutrina do Direito, Maus argumenta que Kant desenvolve os direitos humanos e a soberania popular na mais estreita complementaridade recíproca, já que esses direitos são ao mesmo tempo pressuposição e resultado do exercício da soberania popular. Ela procura então mostrar que a articulação proposta por Habermas entre os princípios da moral e do direito a partir do princípio do discurso seguiria a mesma estrutura da articulação concebida por Kant entre os princípios da ética e do direito mediante o princípio da moral entendida em sentido geral. Em sua leitura, contudo, Maus concorda com a interpretação que Habermas faz do princípio kantiano de autonomia, como sendo um procedimento “monológico” de universalização. Nesse sentido, pode-se afirmar que, na leitura de Maus, permaneceria a tensão entre a fundamentação dos direitos privados em um sujeito racional monológico e o caráter dialógico da formação política da vontade no exercício da soberania popular.

No presente artigo pretendemos partir da discussão das interpretações de Habermas e Maus sobre a Doutrina do Direito, para sugerir que quando se atenta para as concepções de Esclarecimento e “uso público da razão” apresentadas por Kant nos textos políticos torna-se possível compreender que longe de desvalorizar a formação política da vontade, Kant a estabelece como um passo fundamental para a realização da moralidade e, portanto, da autonomia da vontade.

Com esse intuito, reconstruiremos brevemente a formulação do conceito de autonomia da vontade exposto na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, para argumentar que o princípio de autonomia não designa um sujeito individual e isolado estabelecendo leis para si mesmo, mas antes um sujeito que representa a unidade da vontade de todos os seres racionais em uma espécie de corpo legislativo, que estabelece as leis válidas para todos. Assim, pretendemos sugerir que ao explicar o princípio de autonomia mediante a ideia de autolegislação da vontade, Kant não introduz uma ambiguidade neste conceito. Pelo contrário, ele estabelece uma estrutura normativa comum entre os âmbitos da moral e do direito. Chamaremos atenção para o fato de que a articulação entre esses âmbitos pode ser compreendida a partir da concepção que Kant apresenta sobre o Esclarecimento como um processo histórico em que os cidadãos aprendem a fazer um “uso público da razão” e precisam ser “formados” para exercer suas capacidades práticas e para representar princípios válidos para todos.

A partir dessa análise do princípio da autonomia da vontade no contexto da Fundamentação pretendemos nos voltar à Doutrina do Direito, para explicitar a importância dada por Kant à força discursiva de legitimação da vontade. De um lado, Kant propõe um procedimento de representação nos juízos políticos, cuja estrutura normativa é comum à formulação dos juízos morais. Trata-se de representar uma vontade unida estabelecendo leis às quais todos poderiam dar seu assentimento e que, nessa medida, seriam válidas para todos. Contudo, a realização desse procedimento de representação da vontade unida pressupõe a comunicação entre os cidadãos. É preciso que eles façam um uso público da razão, já que pensar consiste necessariamente em pensar em conjunto e em expressar publicamente seus pensamentos, segundo leis da razão. Pretendemos argumentar, desse modo, que a comunicação não é lateral para a maneira como Kant concebe o desenvolvimento das instituições político-jurídicas. Pelo contrário, ela é a garantia de legitimidade do processo de representação da vontade unida do povo.

A crítica de Habermas à Kant: relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular

Em Direito e Democracia, Habermas expõe a dificuldade em esclarecer o “nexo problemático” entre autonomia privada e autonomia pública na compreensão moderna do direito. De um lado, o direito deve garantir a autonomia privada dos cidadãos, ou seja, estabelecer os limites dentro dos quais se pode exercer a liberdade de arbítrio, de modo a assegurar a compatibilidade da liberdade de ação entre todos os indivíduos. De outro lado, esse sistema de direitos subjetivos só pode ser legitimado através de um processo legislativo, que está fundado na soberania popular, isto é, no exercício da autonomia pública dos cidadãos em um Estado democrático de direito.

Habermas argumenta que o problema da relação entre autonomia privada e pública se constitui devido a uma “herança metafísica” da tradição do direito racional, que concebe o direito positivo como subordinado ao direito natural ou moral. Na compreensão kantiana do direito, presa a essa tradição metafísica, o problema estaria construído da seguinte maneira: ao propor que a autonomia privada do sujeito do direito só pode ser garantida enquanto fundamentada na autonomia moral da pessoa, Kant estabeleceria uma tensão entre esta justificação racional do direito e a força legitimadora do processo legislativo democrático.1 Habermas reconstrói essa tensão, com o intuito de mostrar em que medida Kant não teria deixado clara a relação entre os princípios da moral, do direito e da democracia.

De acordo com Habermas, Kant pretende articular, a partir do conceito de autonomia, a fundamentação moral dos direitos humanos com o princípio da soberania popular. Se, de um lado, Kant fundamenta na autonomia da vontade dos sujeitos, enquanto pessoas morais, o direito “natural” à igual liberdade de ação, por outro lado, ele considera que esse direito só pode ser institucionalizado em leis positivas, mediante um contrato dos cidadãos que, exercendo sua autonomia política, estabelecem aquilo que deve ser seguido por todos. Dessa maneira Kant estaria interligando, por meio do princípio do direito, o princípio da moral ao da democracia, pois compreende que “os direitos do homem, fundamentados na autonomia moral dos indivíduos, só podem adquirir uma figura positiva através da autonomia política dos cidadãos” (Habermas, 1997, p. 127).

Entretanto, Habermas adverte que essa articulação entre os princípios da moral e da democracia fica encoberta por uma ambiguidade presente no conceito kantiano de autonomia. Este seria introduzido a partir de uma perspectiva “de certo modo privada” do sujeito que julga moralmente e, ao mesmo tempo, explicitado a partir de uma perspectiva política, apoiada no modelo de autolegislação democrática defendido por Rousseau (Habermas, 1997, p. 127). Existiria nesse conceito uma ligação que Kant não teria deixado clara entre autonomia moral e autonomia pública.

Habermas sugere que a “arquitetônica” da Doutrina do Direito seria responsável por dissimular essa ligação. Ele argumenta que é a partir de uma aplicação direta do princípio supremo da moralidade às relações externas que Kant extrai o princípio universal do direito, que estabelece apenas a coexistência de todos os arbítrios segundo uma legislação universal. Este princípio regularia, então, a produção de todo o sistema de direitos subjetivos, que seria, portanto, legitimada “anteriormente” ao estabelecimento do direito público, apresentado apenas na parte final da obra.2 Ao reconstruir essa separação da Doutrina do Direito, Habermas insiste na independência do direito privado, cujo fundamento remontaria ao princípio da moral, com relação ao direito público:

Esse sistema de direitos, que advêm, “de modo imperecível” a cada homem e “aos quais ele não poderia renunciar, mesmo que quisesse” se legitima, antes de se diferenciar na figura de leis públicas, a partir de princípios morais, portanto, não depende da autonomia política dos cidadãos, a qual se constitui apenas a partir do contrato social. (Habermas, 1997, p. 135).

Mesmo sugerindo que Kant teria trazido para o interior do conceito de autonomia moral a estrutura política de autolegislação dos cidadãos concebida por Rousseau, Habermas procura mostrar como a Doutrina do Direito acaba por estabelecer uma certa precedência dos direitos subjetivos que protegem a autonomia privada, em relação ao exercício da autonomia política.3 Assim, Habermas aproxima Kant de uma perspectiva liberal, afirmando que “a linha kantiana de fundamentação da doutrina do direito, que passa da moral para o direito, não valoriza o contrato da sociedade, afastando-se, pois, da inspiração de Rousseau” (Habermas, 1997, p. 135).

Desse modo, Habermas conclui que ao introduzir o conceito de autonomia a partir da perspectiva do sujeito racional singular, Kant teria mantido uma relação de concorrência entre direitos humanos e soberania popular, sem entrever a dimensão intersubjetiva do direito que permite seu entrelaçamento. Ele teria falhado em compreender, afirma Habermas,

a força de legitimação de uma formação discursiva da opinião e da vontade, na qual são utilizadas as forças ilocucionárias do uso da linguagem orientada pelo entendimento, a fim de aproximar razão e vontade — e para chegar a convicções nas quais todos os sujeitos singulares podem concordar entre si sem coerção. (Habermas, 1997, p. 138).

Autonomia, direitos humanos e soberania popular: a leitura de Maus

Na Introdução à Metafísica dos costumes, Kant deixa claro o vínculo entre o princípio da moral e o princípio do direito.4 Ao apresentar o conceito positivo de liberdade entendida como autonomia — ou seja, como a capacidade de autodeterminação da vontade pela razão prática pura — ele explica o significado das leis morais ou leis da liberdade: são leis prescritas pela razão prática pura quando esta submete a máxima da ação à condição de tornar-se uma lei universal. Ora, tanto as leis jurídicas quanto as leis éticas estão relacionadas às leis morais (em sentido geral). As leis jurídicas exprimem a conformidade das ações com essas leis, considerando-se apenas o ponto de vista externo destas ações, ou seja, não importa o fundamento que determina o arbítrio a agir, mas apenas o acordo das ações com as leis. Já as leis éticas levam em conta o caráter interno das ações, exigindo que as próprias leis morais sejam o fundamento de determinação das ações (MS, p. 214). Assim, a partir de um sentido mais amplo de moralidade, Kant estabelece o princípio supremo da “doutrina dos costumes” — “handle nach einer Maxime, die zugleich als allgemeines Gesetz gelten kann [aja segundo uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei universal] (MS, p. 226) e especifica seus dois campos: o da legalidade que será tratado na “doutrina do direito” e o da eticidade (Sittlichkeit) das ações, da qual tratará a “doutrina da virtude”.

Como exprimem apenas a conformidade das ações com as leis morais, as leis jurídicas não exigem que o móbil da ação seja a própria representação do dever. O direito não exige, portanto, que os indivíduos sejam livres em sentido positivo, ou seja, que exerçam sua autonomia moral. Importa apenas a coexistência externa entre os arbítrios livres. O direito deve garantir apenas que o exercício da liberdade externa de cada um não comprometa a liberdade de ação dos demais. Kant apresenta, com isso, o princípio universal do direito: “Handle äußerlich so, daß der freie Gebrauch deiner Willkür mit der Freiheit von jedermann nach einem allgemeinen Gesetze zusammen bestehen könne” [Aja externamente de tal modo que o uso livre de seu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal] (MS, p. 231).

Ainda que as leis jurídicas não requeiram o exercício da autonomia moral dos indivíduos, Kant explicita que a doutrina do direito está fundada na liberdade entendida como autonomia:

Wir kennen unsere eigene Freiheit (von der alle moralische Gesetze, mithin auch alle Rechte sowohl als Pflichten ausgehen) nur durch den moralischen Imperativ, welcher ein pflichtgebietender Satz ist, aus welchem nachher das Vermögen, andere zu verpflichten, d. i. der Begriff des Rechts, entwickelt werden kann. (MS, p. 239).5

O princípio da autonomia da vontade exerce, portanto, um papel central na fundamentação do princípio do direito.

Ao fundamentar o princípio do direito no princípio da autonomia moral, Kant distingue entre o direito natural, que apresenta os princípios a priori e, portanto, imutáveis do direito, e o direito positivo, a legislação efetiva que “was aus dem Willen eines Gesetzgebers hervorgeht” [procede da vontade de um legislador] (MS, p. 237). Assim, ele apresenta a liberdade, entendida como “Unabhängigkeit von eines Anderen nöthigender Willkür” [independência em relação ao arbítrio coercitivo de outro] (MS, p. 237) como único direito inato, na medida em que ela decorre da própria ideia de humanidade. Explicitando este conceito de liberdade inata, ele apresenta também como faculdades originárias do homem a igualdade e a independência, ou seja, a capacidade de “nicht zu mehrerem von Anderen verbunden zu werden, als wozu man sie wechselseitig auch verbinden kann” [não ser obrigado por outrem senão àquelas coisas a que também reciprocamente se pode obrigá-los] (MS, p. 237) e a capacidade de “gegen andere zu thun, was an sich ihnen das Ihre nicht schmälert”[fazer aos outros aquilo que não os prejudica no que é seu] (MS, p. 238). Por fim, inicia a exposição do direito privado, fundamentando a posse jurídica a partir deste conceito de liberdade. Dessa maneira, Kant parece estabelecer os direitos humanos anteriormente à soberania popular. No entanto, é preciso examinar mais de perto as diferenças entre a moral e o direito e compreender, no interior deste, o papel que exerce o direito público, ou seja, da legislação estabelecida pela vontade unida do povo em uma constituição civil, para a garantia dos direitos.

Certamente, é preciso observar os elementos que especificam o direito em relação à moral. Por levar em conta apenas a possibilidade de se harmonizar a liberdade de arbítrio dos indivíduos em suas ações externas e não exigir, portanto, a representação da lei moral para o cumprimento do dever, no âmbito jurídico o fundamento de determinação do arbítrio pode ser patológico, isto é, ter como base inclinações ou aversões (MS, p. 219). Nesta medida, Kant argumenta que as leis jurídicas estão ligadas à coerção externa que obriga seu cumprimento. É a coerção que garante a coexistência das liberdades individuais na medida em que impede as ações que prejudiquem a liberdade de outrem. Explicita-se assim a coerção como elemento característico do direito e a possibilidade de se seguir os deveres jurídicos de maneira heterônoma. Entretanto, não se pode perder de vista que a justificação dada por Kant a este elemento de coerção no interior da doutrina do direito envolverá a noção de autonomia entendida, em sentido político, como autolegislação dos cidadãos: eles só podem reconhecer como válido o poder coercitivo das leis jurídicas na medida em que também se consideram como membros de uma vontade legisladora.

No opúsculo Sobre a expressão corrente: isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática, Kant explicita o direito público como condição de possibilidade do direito. Ele afirma:

Recht ist die Einschränkung der Freiheit eines jeden auf die Bedingung ihrer Zusammenstimmung mit der Freiheit von jedermann, in so fern diese nach einem allgemeinen Gesetze möglich ist. (TP, p. 289/290).6

Ainda que não pressuponha o contrato originário como fato histórico, mas apenas como ideia da razão, Kant estabelece esta ideia como uma “pedra de toque” da qual depende a legitimidade de toda lei pública, ou seja, da autorização para a coerção que garante a coexistência entre as liberdades individuais (TP, p. 298).

Contrapondo-se à leitura de Habermas sobre a tensão que existiria no pensamento kantiano entre a justificação racional dos direitos privados com base no conceito de autonomia moral e a legitimação do direito a partir do processo democrático de legislação, Maus propõe uma outra interpretação da Doutrina do Direito de Kant. Em seu projeto de reconstrução do princípio de soberania popular apresentado como fundamento de uma teoria da “democracia forte”, Maus defende a “atualidade” do pensamento político-jurídico de Kant exatamente por conceber uma conexão intrínseca entre direitos humanos e soberania popular. Alertando para o risco de se isolar os direitos fundamentais de um lado e a soberania popular — entendida como efetivação desses direitos mediante o processo legislativo democrático — de outro,7 Maus apresenta uma interpretação da filosofia do direito de Kant em que esses princípios não são considerados como concorrentes. Nesse sentido, ela não apenas critica a maneira como Habermas reconstrói a filosofia do direito de Kant aproximando-o de uma perspectiva liberal, como também procura mostrar que a estratégia de fundamentação do vínculo entre direitos humanos e soberania popular apresentada por Habermas coincide com a de Kant.

Maus chama atenção para o fato de que Kant, anteriormente a Habermas, já desenvolve os direitos subjetivos e a soberania popular na “in engstem wechselseitigem Verweisungs-zusammenhang” [mais estrita complementaridade recíproca] (Maus, 2011, p. 195).8 Ela argumenta que os direitos inatos, originados no conceito de humanidade — liberdade, igualdade e independência —, são retomados por Kant no direito público como atributos “inseparáveis” dos cidadãos, ou seja, dos membros de uma vontade legisladora em uma sociedade (MS, p. 314). Assim, ela insiste que a fundamentação dos direitos humanos proposta por Kant possui um caráter duplo. Eles são certamente caracterizados como princípios a priori no qual se funda o estado civil. Todavia, são também considerados como derivados da vontade soberana universalmente legisladora do povo, já que é dela que tem de emanar todos os direitos dos indivíduos. Nesta medida, direitos humanos e soberania popular se condicionam reciprocamente, pois os primeiros “zugleich Voraussetzung und Ergebnis der Ausübung von Volkssouveränität sind [são ao mesmo tempo a pressuposição e o resultado do exercício da soberania popular] (Maus, 2011, p. 196). De acordo com Maus, essa dupla determinação dos direitos humanos implica o processo de tornar positivo o direito natural, “ohne dass der vorpositiv-positivrechtliche Doppelcharakter der Freiheitsrechte in Frage gestellt wurde” [sem que o duplo caráter anterior ao positivo e ao mesmo tempo positivo-jurídico dos direitos humanos seja colocado em questão] (Maus, 2011, p. 196).

Ao defender que Kant desenvolve direitos humanos e soberania popular em complementaridade recíproca, Maus propõe que, assim como Habermas, Kant elabora a fundamentação do direito mediante um “processo circular” que suprime a hierarquia entre direito natural e direito positivo e que permite, assim, compreender a soberania popular e os direitos humanos como cooriginários. Maus argumenta que é preciso observar o caráter geral do conceito kantiano de moral que opera como conceito supremo para o direito e para a ética. Assim, para ela, o conceito kantiano de “moral” (em sua acepção geral) seria “in gleicher Weise ‘neutral’ wie Habermasrevidiertes Diskursprinzip” [tão neutro face ao direito e à ética quanto o revisado princípio do discurso de Habermas] (Maus, 2011, p. 200).9

Entretanto, ainda que aproxime a estratégia de Habermas à de Kant quanto ao estabelecimento da cooriginareidade entre direitos humanos e soberania popular, Maus aceita a crítica de Habermas ao caráter monológico do princípio kantiano da moral. De um lado, ela descreve o princípio moral, expresso em um imperativo categórico, como um “monologische Generalisierungstest” [teste de universalização monológico] que se refere à “Allgemeinheit eines fiktiven Gesetzes, auf die Gesetzesform als solche” [universalidade de uma lei fictícia ou à própria forma da lei] (Maus, 2011, p. 193). De outro lado, ela afirma que o processo democrático de legislação pressupõe faticamente o procedimento intersubjetivo de prova por todos os participantes reais, que decretam as leis para si mesmos. Existiria assim uma mera relação de “analogia” entre o teste de universalização do princípio moral e o processo de instituição democrática de leis. Nessa leitura proposta por Maus permaneceria, portanto, a ambiguidade apontada por Habermas quanto ao conceito de autonomia da vontade, introduzido do ponto de vista privado do sujeito individual e isolado que julga moralmente e explicitado do ponto de vista da formação política discursiva e democrática da vontade.

É importante notar que essa crítica feita por Habermas, e em certa medida por Maus, sobre a ambiguidade presente no conceito kantiano de autonomia da vontade, decorre de um viés tradicional de interpretação sobre a fundamentação kantiana da moral. Vejamos como este viés de interpretação se constitui e em que medida é possível apresentar outra compreensão sobre o conceito de autonomia.

O conceito de autonomia como autolegislação: a estrutura normativa comum entre moral e direito

Na Fundamentação da metafísica dos costumes Kant apresenta a necessidade de uma investigação sobre o princípio da moral que tenha caráter a priori, ou seja, que não esteja baseada em observações empíricas ou psicológicas sobre a conduta humana exercida em circunstâncias sociais e históricas particulares. A partir de uma investigação sobre a consciência do dever ou da obrigação moral presente nos juízos práticos cotidianos, ele estabelece então um critério independente de quaisquer elementos empíricos, com base no qual é possível julgar sobre o valor moral de nossas ações. Elas possuem valor moral se estão fundadas em máximas ou princípios subjetivos de ação que poderiam ser estabelecidos objetivamente como leis por todos os seres racionais em geral. Esse critério para o julgamento das ações morais é explicitado por Kant mediante a introdução da ideia de autonomia ou autolegislação da vontade. O sujeito se submete às leis morais na medida em que pode considerar que essas leis foram estabelecidas pela sua própria vontade, entendida como universalmente legisladora. Kant deixa bem claro que esse tipo de fundamentação do princípio supremo da moral, designado como princípio da autonomia da vontade, não pode estar fundado na natureza do homem, nem nas circunstâncias do mundo, mas unicamente nos conceitos de sua razão prática pura (GMS, p. 389).

Com base nessa insistência no caráter a priori do princípio supremo da moral, desenvolveu-se uma leitura clássica da moral kantiana — iniciada por Hamann (1992) e difundida por Jacobi (1992) e Hegel (2002)— que estabelece uma separação estanque entre o sujeito moral numênico e o sujeito empiricamente condicionado. De um lado, o sujeito moral estaria isolado em uma esfera inteligível, com sua razão pura operando de maneira completamente desvinculada das circunstâncias empíricas e históricas. De outro lado, o sujeito empírico, existente sob as circunstâncias do tempo, seria afetado patologicamente, submetido às suas inclinações sensíveis e aos seus próprios interesses decorrentes de sua concepção de felicidade. Nesse contexto, o conceito kantiano de autonomia moral foi compreendido a partir da concepção da razão de um sujeito individual e isolado que estabelece leis para si mesmo. Nessa compreensão metafísica em sentido forte, a capacidade de julgar os princípios de ação como sendo ou não universalmente válidos funcionaria de maneira independente das relações estabelecidas com outros seres humanos e racionais. Em outras palavras, a consciência moral do sujeito que possui uma razão prática pura garantiria — independentemente de seus laços em sociedade — a capacidade de julgar se os princípios de ação poderiam ser adotados universalmente como lei por todos os seres racionais. Nessa leitura tradicional da moral kantiana, que encontra respaldo em diversas passagens de suas obras sobre a fundamentação da moral, o julgamento e a ação moral estariam baseados unicamente na consciência moral individual, que não dependeria da formação do sujeito para agir moralmente, mas existiria desde sempre anunciada por uma “voz interior”. Nesse sentido, a moralidade estaria separada da formação e do exercício da capacidade de julgar praticamente sob as condições sociais e históricas dos seres humanos. Ora, essa leitura da fundamentação da moral a partir da razão prática pura de um sujeito moral “monológico”, capaz de formular sozinho seus juízos e de agir moralmente exclusivamente a partir de sua consciência moral, atribui um estatuto lateral e muitas vezes contraditório aos textos em que Kant tematiza a questão da realização da moralidade na história e a necessidade da formação, exercício e desenvolvimento da capacidade prática de julgar e agir, sob as circunstâncias concretas em sociedade.

Nas últimas décadas da Kant-Forschung são, todavia, visíveis os esforços para trazer ao centro da moral kantiana os textos sobre política, direito, antropologia, pedagogia e história e para torná-los compatíveis com uma compreensão da moral em que o sujeito julga e age a partir de sua consciência moral expressa em um imperativo categórico. Procura-se compreender, no pensamento de Kant, como a capacidade de julgar e agir praticamente precisa ser formada e exercitada a partir da interação em sociedade, não de maneira monológica, mas no diálogo realizado pelo indivíduo desde a infância, não a partir de uma consciência moral separada de todos, mas a partir de um processo de formação dos juízos morais que passa pelo desenvolvimento da capacidade de representar outros seres racionais e humanos (cfr. O’Neill, 1989; Munzel, 1999).

Se, seguindo essa chave de leitura, lançarmos luz aos textos políticos escritos em 1784, logo após a redação da Fundamentação, em que Kant delineia sua concepção de Esclarecimento, torna-se possível compreender a relação intrínseca entre autonomia moral, soberania popular e uso público da razão.

Antes de tudo, é preciso lembrar que Kant apresenta na própria Fundamentação a necessidade de “formar” e “exercitar” a capacidade humana de julgar in concreto. Ali, Kant já se mostra preocupado, portanto, com as condições de “aplicação” da razão prática. Ele afirma que a filosofia moral dá ao homem, enquanto ser racional, leis a priori, mas que essas leis

durch Erfahrung geschärfte Urtheilskraft erfordern, um theils zu unterscheiden, in welchen Fällen sie ihre Anwendung haben, theils ihnen Eingang in den Willen des Menschen und Nachdruck zur Ausübung zu verschaffen, da dieser, als selbst mit so viel Neigungen afficirt, der Idee einer praktischen reinen Vernunft zwar fähig, aber nicht so leicht vermögend ist, sie in seinem Lebenswandel in concreto wirksam zu machen. (GMS, p. 389).10

Nos dois textos políticos escritos ao final de 1784, Kant reforça essa concepção de que embora os homens sejam capazes da “ideia” de uma razão prática pura, faz-se, todavia, necessária a “formação” dessa razão prática para que ela possa operar sob as circunstâncias empíricas e históricas. Na segunda proposição de Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, Kant afirma que a razão “wirkt aber selbst nicht instinctmäßig, sondern bedarf Versuche, Übung und Unterricht, um von einer Stufe der Einsicht zur andern allmählig fortzuschreiten” [Não atua sozinha de maneira instintiva, mas, ao contrário, necessita de tentativas, exercícios e ensinamentos para progredir de um grau de discernimento a outro] (IaG, p. 19). Nesse sentido, o uso da razão não pode se desenvolver individualmente, mas apenas na espécie, pois pressupõe a interação entre os sujeitos que precisam “ensinar” e “transmitir” seus conhecimentos ao longo de gerações. Kant afirma que a natureza

bedarf sie vielleicht einer unabsehlichen Reihe von Zeugungen, deren eine der andern ihre Aufklärung überliefert, um endlich ihre Keime in unserer Gattung zu derjenigen Stufe der Entwicklung zu treiben, welche ihrer Absicht vollständig angemessen ist. (IaG, p. 19).11

De forma semelhante, em Resposta à pergunta: o que Esclarecimento? Kant também insiste na necessidade de “formação” da razão, ao definir o “esclarecimento” como um processo que consiste em aprender a “fazer uso” das capacidades racionais. Ora, esse processo não pode ser realizado individualmente, mas apenas a partir da constituição de um “público” de letrados. É importante notar aqui o caráter dialógico do processo de esclarecimento descrito nesses dois textos políticos. Esse processo consiste na formação de um “modo de pensar” ou refletir “em conjunto com os outros” sobre a validade dessas normas do ponto de vista do todo da comunidade e até mesmo da “sociedade cosmopolita”. É essa “formação” de um “modo de pensar” em conjunto que permite ao indivíduo passar da mera reprodução mecânica e natural das normas sociais regida pela busca de interesses privados para a reflexão sobre regras de conduta que seriam válidas para todos.

Nesse sentido é possível pensar não um conflito, mas uma continuidade entre a concepção kantiana de autonomia da vontade enquanto autolegislação e a necessidade da formação da razão mediada pelo desenvolvimento das instituições político-jurídicas. Para Kant certamente é preciso fundamentar a priori a capacidade de julgar e agir moralmente a partir de princípios universalmente válidos, ou seja, que possam ser estabelecidos por nós mesmos enquanto nos representamos como membros de uma “vontade universalmente legisladora”. No entanto, essa capacidade de representar uma vontade universalmente legisladora precisa ser desenvolvida nos seres humanos sob circunstâncias históricas. O sujeito precisa aprender a fazer uso de sua razão prática sob as circunstâncias concretas e empíricas.

É nesse ponto que o desenvolvimento das instituições político-jurídicas se torna importante para a realização da ideia de autonomia da vontade. O estabelecimento de uma constituição civil e de uma confederação de nações propicia a formação de um “modo de pensar” em que os indivíduos passam a adotar a perspectiva do todo de sua comunidade política. Eles passam a julgar as regras não mais do ponto de vista das vantagens particulares e individuais, mas do ponto de vista da “vontade unida do povo”, ou seja, com base em princípios que poderiam ser válidos para o todo da comunidade política. Em outras palavras, o estabelecimento de regras comuns e de um “público letrado” refletindo sobre essas regras permite que os sujeitos desenvolvam a capacidade de representar princípios válidos para o todo de sua comunidade ou mesmo da “sociedade cosmopolita”.

Dessa maneira, o processo de Esclarecimento oferece as condições favoráveis para o desenvolvimento da capacidade de refletir e julgar conjuntamente sobre a validade das regras. É nesse sentido que a razão prática está sendo “formada” para exercer um procedimento semelhante ao que ocorre nos julgamentos e ações morais: trata-se de estabelecer princípios que possam ser válidos para todos. Assim, na medida em que promove o desenvolvimento dessa capacidade de representar e refletir sobre princípios válidos para todos os membros da comunidade política, o progresso das instituições político-jurídicas pode ser considerado um passo fundamental para a realização da moral, cujo princípio consiste precisamente em representar princípios válidos para todos os seres racionais em geral.

Nesse sentido, mediante o conceito de autonomia nos parece que Kant estabelece uma estrutura normativa comum que opera no âmbito da moral e no âmbito político-jurídico.

No âmbito da moral o sujeito se representa como parte de uma vontade universalmente legisladora. É claro que Kant não concebe esse sujeito como se comunicando efetivamente com os outros membros que formam essa vontade. No entanto, ao representar-se como parte de uma vontade que estabelece leis universalmente válidas, o sujeito está pressupondo o assentimento de todos os seres racionais à sua máxima ou princípio subjetivo de ação. Nessa medida ele está representando ao menos potencialmente um processo de instituição conjunta de leis pela vontade unida de todos os seres racionais.

No âmbito do direito, os cidadãos se representam como parte da vontade unida do povo, única que pode instituir leis válidas para o todo da comunidade política. A ideia da soberania popular é apresentada por Kant como critério ou norma para a instituição das leis: elas só são justas se podem ser consideradas como provenientes da vontade unida do povo. Entretanto, para a realização da ideia de constituição civil faz-se necessária a comunicação efetiva dos cidadãos mediante o uso público de suas razões. De acordo com a concepção kantiana de Esclarecimento é preciso que os cidadãos discutam se as leis públicas são justas considerando se elas poderiam obter o assentimento de todos os membros da comunidade política. Do mesmo modo, o chefe de Estado (Oberhaupt) precisa executar as leis públicas utilizando como critério o assentimento da vontade unida do povo e assegurar aos cidadãos a possibilidade de expressar publicamente suas opiniões.

O direito público à luz dos textos políticos: autolegislação e uso público da razão

A partir dessa compreensão, oferecida por Kant em seus opúsculos políticos, de que o estabelecimento de uma constituição civil e de uma confederação das nações promove a formação de uma “maneira de pensar” que consiste em julgar com base em princípios válidos para todos e que, portanto, contribui para a realização da moralidade, gostaria de retornar à Doutrina do Direito. Trata-se de elucidar, ainda que brevemente, algumas passagens em que fica claro que longe de desvalorizar a formação política da vontade, Kant pressupõe a interação e comunicação efetiva entre os cidadãos tanto no processo de legislação quanto no processo de crítica das decisões tomadas pelo poder executivo.

No Direito Político, após afirmar que a ideia de Estado (civitas), enquanto conjunto de homens sob leis jurídicas a priori, deve servir de norma para a unificação “efetiva” de uma comunidade política, Kant apresenta a divisão do Estado em três poderes e deixa claro que todo o direito deve ter sua origem no poder legislativo que pertence à vontade unida do povo. Ele afirma:

Die gesetzgebende Gewalt kann nur dem vereinigten Willen des Volkes zukommen. Denn da von ihr alles Recht ausgehen soll, so muß sie durch ihr Gesetz schlechterdings niemand unrecht thun können. Nun ist es, wenn jemand etwas gegen einen Anderen verfügt, immer möglich, daß er ihm dadurch unrecht thue, nie aber in dem, was er über sich selbst beschließt (denn volenti non fit iniuria) Also kann nur der übereinstimmende und vereinigte Wille Aller, so fern ein jeder über Alle und Alle über einen jeden ebendasselbe beschließen, mithin nur der allgemein vereinigte Volkswille gesetzgebend sein. (MS, p. 313-314).12

Ao apresentar as características do poder legislativo como soberania popular, Kant deixa clara a importância do acordo (Übereinstimmung) entre as vontades e do consentimento (Einstimmung) dados pelos membros da comunidade política. O cidadão possui liberdade legal exatamente na medida em que se submete apenas a leis às quais pode dar o seu assentimento (Beistimmung) e independência civil na medida em que não se deixa representar por nenhum outro nos assuntos jurídicos (MS, p. 314). Esse consentimento é expresso efetivamente pelo voto (Stimmgebung), na participação ativa do cidadão na legislação. Ao apresentar a distinção entre cidadão ativo e passivo, Kant afirma que a capacidade de voto é o que qualifica o cidadão não meramente parte, mas sim como parte atuante (handelnder Teil) da comunidade política por seu próprio arbítrio, em comunidade com outros (in Gemeinschaft mit anderen)”.13 Os cidadãos ativos são, portanto, apresentados por Kant como membros que organizam o Estado ou colaboram na introdução de certas leis (MS, p. 315).

Na passagem em que caracteriza o poder executivo, Kant também deixa clara a necessidade de interação dos cidadãos não apenas na legislação, mas também com relação à administração do Estado. No opúsculo de 1793, Sobre a expressão corrente, Kant havia deixado mais explícita a necessidade de se manter a liberdade de livre manifestação do pensamento para garantir a adequação das ações do governo à vontade unida do povo. Ali, Kant afirma:

Es muß in jedem gemeinen Wesen ein Gehorsam unter dem Mechanismus der Staatsverfassung nach Zwangsgesetzen (die aufs Ganze gehen), aber zugleich ein Geist der Freiheit sein, da jeder in dem, was allgemeine Menschenpflicht betrifft, durch Vernunft überzeugt zu sein verlangt, daß dieser Zwang rechtmäßig sei, damit er nicht mit sich selbst in Widerspruch gerathe. [...] Denn es ist ein Naturberuf der Menschheit, sich vornehmlich in dem, was den Menschen überhaupt angeht, einander mitzutheilen; […] Und wodurch anders können auch der Regierung die Kenntnisse kommen, die ihre eigene wesentliche Absicht befördern, als daß sie den in seinem Ursprung und in seinen Wirkungen so achtungswürdigen Geist der Freiheit sich äußern läßt? (TP, p. 305).14

Kant insiste, assim, na necessidade do convencimento dos cidadãos mediante razões, assim como na importância da comunicação recíproca entre os homens para a ponderação sobre as normas que regem a coexistência das liberdades.

Ora, na Doutrina do Direito, ainda que de maneira menos explícita, Kant pressupõe a liberdade de manifestação pública dos cidadãos frente às decisões tomadas pelo governo. Ele afirma que as disposições ou decretos do governo, que consistem em regras ou decisões com relação a casos concretos de acordo com a lei, são revogáveis e podem, portanto, ser questionadas pelos cidadãos. Kant argumenta que o Estado não despótico tem de tratar os cidadãos “nach Gesetzen ihrer eigenen Selbstständigkeit” [segundo as leis de sua própria independência] (MS, p. 317) e, portanto, tem de tomar decisões considerando o possível consentimento dos membros da comunidade política. Assim, ainda que negue a possibilidade de um direito de resistência dos súditos, Kant estabelece que é possível opor queixas às injustiças cometidas pelo chefe de Estado, de modo que este possa propor reformas políticas. Podemos sugerir assim que a leitura do direito público à luz dos opúsculos políticos nos permite reconhecer que para Kant a interação e comunicação entre os cidadãos não é lateral para a legitimação do direito. Pelo contrário, esta exige o consentimento dos membros da comunidade política e o convencimento dos cidadãos mediante a razão.

Referencias bibliográficas

En la página 11 se encuentran las indicaciones sobre el sistema normalizado en el dossier para hacer referencia a las obras originales de I. Kant. Se indica solamente la paginación de las obras completas. En las citas textuales se siguen las traducciones indicadas en el siguiente listado.

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Notas Notes

1 Em A Política Tensa, Ricardo Terra defende que as tensões no pensamento político kantiano, como esta entre direitos subjetivos e soberania popular, são essenciais para a compreensão da filosofia kantiana, marcada pelo trabalho com conceitos tradicionais da filosofia política e ao mesmo tempo pela sua “inserção no debate politico de seu tempo” (Cf. Terra, 1995, p. 10).

2 Diversos comentadores defendem uma cisão completa, na Doutrina do Direito, entre Direito privado e Direito público. Bobbio, por exemplo, afirma que o primeiro consistiria no direito natural, que se baseia exclusivamente em princípios a priori e seria “permanente, racional e ideal”, ao passo que o segundo consistiria no direito positivo, baseado na vontade de um legislador, sendo, portanto, “voluntário e determinado historicamente” (Bobbio, 1997, p. 86). Como em sua análise sobre a formação do direito moderno Bobbio não se propõe a compreender o problema da legitimidade (da fundamentação ou justificação do poder instituído), mas apenas a caracterizá-lo como um processo de limitação do exercício do poder (pela passagem da soberania do príncipe para a soberania popular), para ele a cisão entre direitos subjetivos e direito público não parece gerar nenhuma tensão no pensamento político-jurídico de Kant.

3 Em Kant e o Direito, Terra propõe uma “cooriginareidade” entre soberania popular e direitos humanos no pensamento kantiano. Ele afirma que a soberania popular pressupõe “os direitos humanos e vice-versa, uma não podendo pretender o primado sobre a outra” (Terra, 2004, p. 58).

4 Sobre a relação entre moral e direito cf. Kersting (1984, pp. 108-114); Maus (1992); Terra (2004).

5 Trad: Só conhecemos nossa própria liberdade (da qual procedem todas as leis morais, portanto, também todos os direitos, assim como os deveres) através do imperativo moral, que é uma proposição que ordena o dever e a partir da qual pode ser desenvolvida, depois, a faculdade de obrigar aos outros, isto é, o conceito do direito.

6 Trad: O direito é a limitação da liberdade de cada um à condição da sua consonância com a liberdade de todos, enquanto esta é possível segundo uma lei universal; e o direito público é o conjunto das leis exteriores que tornam possível semelhante acordo universal.

7 Cf. Maus (2011, p. 10): “Hatte die demokratische Beziehung zwischen Menschenrechten und Volkssouveränität noch darin bestanden, dass die individuellen Menschenrechtssubjekte (unmittelbar oder repräsentiert) in demokratischen Gesetzgebungsverfahren ihre Menschenrechte selbst konkretisierten, so fallen die gegen den demokratischen Prozess isolierten Menschenrechte der Interpretationsmacht judikativer und exekutivischer Apparate anheim, die die einst als ‘vorstaatlich’ begründeten Rechte der Bürger in staatlich zugeteilte Güter verwandelt — ein Vorgang, in dem zugleich die Subjekte und Interpreten ihrer Rechte zu blossen Objekten einer expertokratischen Menschenrechteverwaltung degenerieren" [se a relação democrática entre direitos humanos e soberania popular consistisse no fato de que os sujeitos individuais dos direitos humanos (imediatos ou representados) concretizassem seus próprios direitos humanos no procedimento legislativo democrático, então os direitos humanos isolados do processo democrático caberiam ao poder de interpretação do aparato judicativo e executivo, que transforma os direitos dos cidadãos fundamentados ‘anteriormente ao estado’ em bens repartidos pelo estado — um processo no qual os sujeitos e os intérpretes dos seus direitos degeneram em meros objetos de uma administração dos direitos humanos dominada por especialistas].

8 Kersting defende essa complementaridade recíproca entre os direitos de liberdade e soberania popular nos seguintes termos: “Der Rechtspersonalität der Individuen ist von Anfang an die Bürgerherrscherrolle eingeschrieben. Mit der Exposition des basalen Rechtsverhältnisses ist schon die staatsrechtliche Festlegung volkssouveränitärer Herrschaft erfolgt. Rechtspersonalität impliziert politische Autonomie. Die Rechtsperson kann nur als Bürger in die Wirklichkeit treten" [A personalidade jurídica dos indivíduos está desde o início inscrita no papel de soberano do cidadão. Com a exposição das relações jurídicas fundamentais já se segue a instituição civil do regime de soberania popular. A personalidade jurídica implica autonomia política. A pessoa jurídica só pode adquirir efetividade enquanto cidadã] (2004, p. 17).

9 Maus chama atenção para a mudança na articulação entre os princípios em Habermas, afirmando que até então o princípio do discurso era compreendido como princípio moral (Cf. pp. 191 e 197). Em nosso artigo “diferenciação e complementaridade entre direito e moral” havíamos explicitado como Habermas propõe a saída do problema da relação entre autonomia moral e autonomia pública com base em sua teoria do discurso (cf. Hulshof, 2008).

10 Trad: Exigem uma faculdade de julgar aguçada pela experiência, em parte para distinguir em quais casos elas encontram aplicação, em parte para assegurar-lhes acolhida na vontade do homem e reforço para a execução, visto que este, na medida em que é afetado ele próprio por tantas inclinações, é capaz da ideia de uma razão pura prática, mas não consegue tão facilmente torná-la eficaz in concreto no modo de vida que é seu.

11 Trad: Necessita de uma série talvez indefinida de gerações que transmitam uma a outra seu esclarecimento, para finalmente conduzir, em nossa espécie, o germe da natureza àquele grau de desenvolvimento que é adequado ao seu propósito.

12 Trad: O poder legislativo só pode pertencer à vontade unificada do povo. Visto, com efeito, que dele deve proceder todo direito, ele não deve por meio de sua lei poder fazer injustiça a ninguém. Ora, se alguém decreta algo contra um outro, é sempre possível que, com isso cometa injustiça contra este, mas nunca naquilo que decide sobre si mesmo (pois volenti non fit iniuria). Somente a vontade concordante unificada de todos, portanto, na medida em que cada um decida a mesma coisa sobre todos e todos sobre cada um, isto é, a vontade popular universalmente unificada, pode ser legisladora.

13 Com essa distinção entre cidadãos ativos e passivos Kant exclui, contudo, a maior parte dos indivíduos de uma comunidade política da participação efetiva no processo de organização do Estado e elaboração de leis. As mulheres, as crianças, os serviçais e todos aqueles que não tem fonte própria de sustento são considerados apenas como cidadãos passivos e, portanto, impossibilitados de participar na legislação. Ainda que sustente que se possa “lutar para passar do estado passivo para o ativo”, Kant parece estabelecer o caso das mulheres como cidadãs permanentemente passivas, na medida em que elas são naturalmente dependentes dos homens, mesmo que adquiram meios para se sustentarem por si mesmas. Discuto essa questão no artigo “’A mulher deve dominar, o homem governar’: as considerações de Kant sobre a incapacidade civil da mulher na Antropologia”, contrapondo a posição de Kant à reivindicação pelo direito civil das mulheres feita por seus contemporâneos, como de Gouges, Wollstonecraft e von Hippel.

14 Trad: Em toda a comunidade deve haver uma obediência ao mecanismo da constituição política segundo leis coercitivas (que concernem ao todo), mas ao mesmo tempo um espírito de liberdade, porque, no tocante ao dever universal dos homens, cada qual exige ser convencido pela razão de que semelhante coação é conforme ao direito, a fim de não entrar em contradição consigo mesmo. [...] Com efeito é uma vocação natural da humanidade comunicar reciprocamente, sobretudo a propósito do que diz respeito ao homem em geral; [...]. — E por que outro meio seria também possível fornecer ao governo os conhecimentos que favorecem o seu próprio desígnio fundamental senão o de deixar manifestar-se este espírito da liberdade tão respeitável em sua origem e nos seus efeitos?