CON-TEXTOS KANTIANOS.

International Journal of Philosophy N.o 5, Junio 2017, pp. 75-93

ISSN: 2386-7655

Doi: 10.5281/zenodo.805721


O amor em Kant e na filosofia analítica

Love According to Kant and the Analytic Philosophy


ELKE ELISABETH SCHMIDT / DIETER SCHÖNECKER


Univ. de Siegen, Alemania


Resumo


De acordo com um preconceito bastante difundido no meio filosófico, a filosofia prática de Kant não levaria em consideração os sentimentos e emoções. Uma análise cuidadosa dos escritos de Kant revela, no entanto, o papel central exercido pelos sentimentos em sua ética. Neste artigo examinaremos o conceito de amor em Kant e tentaremos aproximá-lo da discussão sobre o amor na tradição analítica contemporânea, especialmente na filosofia do amor de Harry Frankfurt.


Palavras-chave


amor de benevolência, amor de beneficência, cuidado, caridade, predisposições de ânimo morais, deveres de amor.


Abstract


It is a wide-spread prejudice among contemporary scholars that Kant's practical philosophy does not take into consideration human feelings and emotions. A careful analysis of Kant’s writings



[Recibido: 12 de abril de 2017

Aceptado: 30 de abril de 2017]


reveals however the central role played by feelings in his ethics. In this paper, we address Kant’s account on love and relate it to the latest discussions on love in the analytic tradition, especially to Harry Frankfurt’s philosophy of love.


Keywords


love of benevolence, love of beneficence, care, charity, moral predispositions of the mind, duties from love.


Segundo um preconceito comum no meio filosófico contemporâneo, Kant não teria dado em sua ética nenhum espaço, ou ao menos nenhum espaço significativo, para os sentimentos. Edmund Husserl, por exemplo, censura Kant pela suposta defesa de um “racionalismo extremo e quase absurdo” (Husserl 1988, p. 407). Na verdade, no entanto, Kant atribui aos sentimentos morais um papel de fundamental importância. Com efeito, como até mesmo um leigo no assunto saberia dizer, também para Kant a razão só pode motivar à ação por meio de sentimentos. Por isso, diz ele na Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “para que um ser racional sensivelmente afetado queira aquilo que só a razão lhe prescreve como dever, é preciso certamente uma faculdade da razão de infundir um sentimento de prazer ou de comprazimento no cumprimento do dever” (GMS: 460).1 Esse sentimento é o sentimento de respeito. Kant afirma ainda – e também isso é de conhecimento geral – que o sentimento de respeito não apenas traz à tona ações moralmente obrigatórias, mas também confere à vontade valor moral. Ademais, Kant defende que reconhecemos a validade da lei moral por meio do sentimento de respeito. Isso porque a validade da lei moral é para nós, homens, a validade do imperativo categórico. Esse imperativo obriga-nos, e tornamo-nos cientes dessa obrigação por meio do sentimento de respeito. É, portanto, apenas por meio desse sentimento que sabemos que o imperativo categórico tem validade para nós.

Levando-se em consideração apenas o sentimento de respeito, já haveria, portanto, bons motivos para não atribuir a Kant um “extremo e quase absurdo racionalismo”, como o fez Husserl. Kant fala, no entanto, ainda, de outros sentimentos morais. Na Doutrina da Virtude, ele apresenta uma teoria que é praticamente desconhecida da historiografia sobre Kant e do meio filosófico em geral: a teoria das predisposições de ânimo morais (moralische Gemütsanlagen). Essas predisposições seriam, segundo Kant, o sentimento


1 A lista de abreviaturas dos títulos das obras de Kant encontra-se nas referências bibliográficas.

moral, a consciência moral, a caridade2 e o autorrespeito. Assim como o sentimento de respeito, também os sentimentos derivados das predisposições de ânimo morais não apenas motivam à ação: eles também nos permitem reconhecer a lei moral como imperativo categórico. Ser movido pelas predisposições de ânimo morais, portanto, não é somente uma condição necessária para ser motivado; com efeito, é apenas por meio delas que o homem se torna consciente do caráter necessário do imperativo categórico, isto é, de sua validade. Por este motivo, escreve Kant na Doutrina da Virtude, em relação ao sentimento moral (tomado como uma das quatro predisposições de ânimo morais): “toda a consciência de obrigação tem por base esse sentimento para se tornar consciente da coerção que reside no conceito de dever” (TL: 399,28). Com isso Kant associa aqui a simples consciência do imperativo categórico a essas predisposições de ânimo morais. Isso porque o caráter imperativo do imperativo categórico consiste justamente no fato de que a lei moral, para nós, traz consigo uma obrigação objetiva, ou seja, uma coerção (Nötigung); o imperativo categórico sem coerção não é um imperativo categórico. Quando Kant afirma que apenas por conta das predisposições de ânimo é possível tornar-se consciente da coerção que o conceito de dever implica, isso significa forçosamente que também a consciência do imperativo categórico está ligada às predisposições de ânimo morais, dado que essas são condição necessária para o imperativo categórico, e isso justamente porque, sem a consciência da obrigação, não podemos nos tornar conscientes da lei moral, enquanto lei necessária e que ordena imperativamente.

Entretanto, o tema principal deste texto não será a relação entre os sentimentos morais e o reconhecimento da validade do imperativo categórico e muito menos o sentimento de respeito. Antes, examinaremos aqui a seguinte questão: que compreende Kant por “amor” ou “caridade”? Para tanto, indagaremos, na primeira parte, o que Kant entende por caridade prática (amor benevolentiae) e o que ele entende por caridade estética (amor complacentiae). A caridade prática é de central importância para a teoria dos deveres de amor em Kant; já a caridade estética é, como dissemos anteriormente, uma das quatro predisposições de ânimo morais. Na segunda parte desta investigação, traçaremos um breve panorama das principais teorias do amor na filosofia analítica contemporânea.


2 O termo alemão Menschenliebe significa, literalmente, “amor aos homens” ou “filantropia”. Optamos aqui pela tradução por “caridade”, que nos parece a mais adequada no contexto da Metafísica dos Costumes de Kant. É importante notar, no entanto, que todas as vezes em que os autores empregam o termo, têm em mente uma espécie de amor. (Nota do Tradutor)


Daremos especial atenção aqui à teoria do amor como cuidado (Sorge). Na terceira parte, perguntaremos, por fim, se é possível – e, em caso afirmativo, como é possível – relacionar a teoria kantiana do amor complacentiae e do amor benevolentiae às teorias analíticas sobre o amor.


  1. Kant sobre a caridade

    Iniciemos com uma breve observação acerca dos diferentes contextos e significados do amor. É preciso diferenciar ao menos quatro contextos e doze significados diversos do termo “amor” na filosofia de Kant. Para evitar complicações desnecessárias, apenas enumeraremos aqui os quatro contextos e os principais tipos de amor que lhes correspondem. Kant entende o amor, em primeiro lugar, como constante biológica. A esse contexto pertence o amor erótico, o amor “no sentido mais estrito da palavra” (TL: 426, 20). Kant trata do amor, em segundo lugar, no contexto da amizade. Em terceiro lugar, Kant entende o amor, como adiantamos anteriormente, como uma predisposição de ânimo moral (amor complacentiae). Em quarto lugar, Kant fala sobre o amor no contexto dos assim chamados deveres de amor. A mais importante forma de amor nesse contexto é a caridade entendida como amor benevolentiae.

    Examinemos agora o amor complacentiae e o amor benevolentiae em detalhes. Iniciemos pelo amor complacentiae. Que é afinal essa “caridade” (TL: 450,16), que Kant, no capítulo XII da introdução à Doutrina da Virtude, inclui entre as quatro predisposições de ânimo morais? Em relação a essas predisposições de ânimo, é importante observar, em primeiro lugar, que não pode haver nenhum dever de possui-las, porque elas já “estão na base” de qualquer dever (TL: 399,10) – efetivamente, não pode haver um mandamento que obrigue a ter algo cuja posse já é um pressuposto necessário para cumprir qualquer mandamento. Em segundo lugar, essas predisposições de ânimo morais permitem-nos entender o conteúdo motivacional e obrigante das leis morais e dos objetos (entendidos em sentido largo), e, em consequência, motivam-nos à ação. Assim, as predisposições de ânimo morais estão na base do imperativo categórico no sentido subjetivo de uma “receptividade” (TL: 399,22), dado que é por conta delas, enquanto predisposições, que o homem pode (i) ser afetado pela representação do dever e (ii) ser submetido a uma obrigação e tornar-se consciente da coerção que subjaz à representação do dever – e mesmo pensar de todo um dever.

    Kant afirma: “A consciência dessas [predisposições de ânimo] não é de origem empírica, e sim pode apenas seguir-se [da consciência] de uma lei moral, como efeito da mesma sobre o ânimo” (TL: 399,14). Uma análise dessa afirmação central da introdução à Metafísica dos Costumes (XII) seria de extrema complexidade e, por isso, não poderemos desenvolvê-la aqui. De todo modo, parece-nos que, com o emprego da expressão “consciência das predisposições de ânimo”, Kant não tem em vista aqui uma consciência das predisposições morais de ânimo, e sim aquele estado de ânimo em que nos encontramos quando as predisposições de ânimo morais são despertadas. A “consciência das predisposições de ânimo morais” é, portanto, aquele estado de consciência (aquela “consciência”) em que nos encontramos quando uma predisposição de ânimo é despertada. Não pode haver consciência da lei moral sem que as predisposições de ânimo morais estejam ativas; por outro lado, no entanto, essas predisposições de ânimo morais só são despertadas pela própria lei moral e nada mais, e, assim, um despertar (isto é, uma ativação) daquelas predisposições de ânimo morais e uma consciência da lei moral coincidem.

    Kant quer evitar a todo custo a falsa interpretação sensualista de que os sentimentos que são possíveis por meio das predisposições de ânimo morais, seriam sentimentos patológicos, ou seja, de que no caso das predisposições de ânimo morais teria lugar uma afetação por meio de “causas motoras da sensibilidade” (KrV: A534/B562). Isso é especialmente importante porque Kant chama as predisposições morais de ânimo expressamente de “estéticas” (TL: 399,10) e, portanto, compreende-as como predisposições para as afecções. Isso quer dizer também que elas são sentimentos genuínos, os quais surgem por meio de uma “afecção do sentido interno” (TL: 449,17): em contraposição ao amor “como sentimento (estético)“ (TL: 449, 17), Kant fala nos parágrafos 25 e 26 da Doutrina da Virtude do amor prático (falaremos mais sobre isso adiante). Embora os sentimentos que resultam das predisposições de ânimo sejam verdadeiros sentimentos, e não apenas sentimentos “em sentido impróprio” (TL: 401,29), e, embora Kant afirme expressamente que eles sejam predisposições de ânimo “anteriores” (TL: 399,11) e “naturais” (TL: 399,11), ele quer evitar a interpretação de que tais sentimentos estariam na base da lei moral unicamente por meio de “causas motoras” sensíveis ulteriores e de que, por isso, seriam patológicos.


    No texto polêmico Sobre um Recente Enaltecido Tom de Distinção na Filosofia, os prazeres moral e patológico são examinados a partir da seguinte distinção: “Aquele prazer (ou desprazer) que precisa necessariamente anteceder à lei para que o ato ocorra, é patológico. Aquele antes do qual a lei precisa vir para que o ato ocorra, é, por sua vez, moral” (VT: 395, Obs.). O próprio Kant refere-se a esse texto no prefácio à Doutrina da Virtude (TL: 378). E, em pleno acordo com essa passagem, defende nas explicações acerca do sentimento moral como predisposição de ânimo moral o seguinte: “toda determinação do arbítrio vai desde a representação da possível ação até o ato, através do sentimento de prazer ou desprazer, ao ganhar interesse nela ou no seu efeito; o estado estético (de afecção do sentimento interno) é então um sentimento ou patológico ou moral” (TL: 399,21). Os sentimentos que derivam da afecção das predisposições de ânimo morais não são, portanto, nem patológicos nem práticos (no sentido de uma atitude meramente cognitiva que encontra expressão em uma máxima). Antes, são eles, por um lado, enquanto sentimentos não-patológicos, diretamente referidos à lei moral, e, por outro, verdadeiros sentimentos e, portanto, não está em nosso poder decidir se os teremos ou não (ainda que possamos cultivá-los).

    Mas que é, afinal, a caridade entendida como predisposição de ânimo? Kant enumera na subseção sobre a caridade três diferentes formas de caridade: o “amor de benevolência” (amor benevolentiae) (TL: 401,27), o “amor de complacência” (amor complacentiae) e a “destreza da inclinação à beneficência” (TL: 402,20). Ora, uma vez que, conforme já dissemos, não há um dever que ordene a posse das predisposições de ânimo, aquele amor que Kant considera como predisposição de ânimo não pode ser o amor benevolentiae, pois Kant afirma expressamente que este é “dever para nós” (TL: 401,33). Mas também a mencionada ‘destreza da inclinação à beneficência’ não pode ser a caridade entendida como predisposição moral de ânimo. Efetivamente, Kant afirma expressamente que essa destreza é um “efeito” da beneficência ordenada. Dado que a beneficência nos é ordenada e, portanto, é para nós um dever, ao qual já deve subjazer a predisposição moral de ânimo da caridade, essa predisposição de ânimo da caridade não pode ser apenas produzida (“despertada”) pelo cumprimento do mandamento da benevolência; isso porque, para esse cumprimento, a predisposição de ânimo despertada da caridade já precisa ser, antes de tudo, pressuposta.

    A caridade entendida como predisposição de ânimo moral só pode ser, portanto, o “amor de complacência”, o amor complacentiae. Kant não nos diz quase nada de especial sobre esse amor. Diz apenas que o amor de complacência seria um “prazer imediatamente ligado a uma representação da existência de um objeto” (TL: 449,23). Kant toma o amor de complacência novamente por tema apenas nos parágrafos 25 e 26, e, ainda assim, somente para distingui-lo da caridade prática:


    O amor, porém, não se entende aqui como sentimento (esteticamente), ou seja, como prazer suscitado pela perfeição de outros homens, nem como amor de complacência (pois os outros não podem obrigar-nos a ter sentimentos), mas deve conceber-se como máxima do querer bem (enquanto prático), a qual tem por consequência a beneficência. (TL: 449,17).


    E, em seguida, acrescenta:


    A caridade (filantropia), porque aqui se concebe como prática, logo, não como amor de complacência nos homens, situar-se-á na benevolência ativa e refere-se, portanto, à máxima das ações. (TL: 450,16).


    De todo modo, a caridade como predisposição de ânimo, isto é, o amor complacentiae, é, em primeiro lugar, um amor da complacência “pelo homem”; em segundo lugar, no entanto, ela não é relativa ao homem em geral, e sim apenas à sua perfeição. Ainda que não possamos esclarecer esse ponto aqui em detalhes, resulta disso – tendo em vista as considerações de Kant sobre a perfeição – a seguinte definição: o amor da complacência é o prazer que está imediatamente ligado à representação da aspiração do homem, a qual motiva moralmente, pela perfeição física e à aspiração pela perfeição moral, enquanto pureza moral e fortaleza moral. O objeto do amor complacentiae não é a predisposição (a capacidade) à aspiração moral, pois essa predisposição é, na verdade, o objeto do respeito. O objeto do amor complacentiae é, antes, a aspiração moral real do indivíduo, a qual desperta em nós o sentimento do amor de complacência.3

    Passemos agora ao amor benevolentiae. Vimos acima que Kant define a caridade prática em contraposição ao amor de complacência. O amor, diz Kant, não é tratado “aqui

    3 Inversamente, o misantropo estético só pode ter incomplacência perante os homens porque ele ao mesmo tempo ainda tem complacência na aspiração à perfeição. Cf. TL: §26, principalmente 450, 25-29.


    como sentimento (estético)” (TL: 449,17). ‘Aqui’ refere-se ao capítulo da segunda parte da Doutrina Ética Elementar em que Kant fala do “dever de amor para com os outros homens” (TL: 448,7). Deveres de amor são deveres amplos e meritórios para com os outros homens. Entre eles, estão os deveres de beneficência, gratidão e simpatia – além deles, há ainda os deveres estritos de respeito. Assim, embora o amor complacentiae seja uma predisposição de ânimo moral, a qual possibilita o agir moral, não é a ele que nos referimos quando falamos em deveres de amor. Com efeito, Kant entende esse amor “aqui como prático” (TL: 450,16). Esse amor diz respeito, afirma Kant, “à máxima das ações” (TL: 450,18). A caridade prática é algo obrigatório; e é por isso que Kant fala também em “dever do amor ao próximo” (TL: 450,3), o qual consiste em “fazer meus os fins de outros” (exceto apenas se estes forem imorais)” (TL: 450,4). Com este breve esboço, concluímos por ora a nossa análise do amor benevolentiae.


  2. A filosofia analítica sobre o amor


    Passemos agora à filosofia analítica e sua abordagem do amor. Em seguida, como anteriormente anunciado, falaremos novamente do conceito kantiano de amor, para compará-lo ao da filosofia analítica contemporânea. Quem se debruça sobre o conceito de amor do ponto de vista analítico-filosófico, precisa antes de tudo atentar para o fato de que há diversos tipos de amor. Há um amor romântico e, talvez, um amor de amizade; há o amor dos pais para com os filhos (e dos filhos para com os pais), o amor ao próximo, o amor aos animais, o amor-próprio, o amor à pátria. É possível amar o esporte ou Beethoven, etc. Na filosofia analítica, discute-se por vezes se haveria algo em comum entre todas essas formas de amor, de modo que fosse justificável falar em “amor” em todos esses casos, ou se em alguns casos tratar-se-ia apenas de um sentido impróprio do termo.

    Tão numerosas quanto os tipos de amor, são as teorias do amor (embora certamente não seja verdade que cada teoria corresponda a um tipo de amor específico). Assim, destacam-se na atualidade sobretudo as seguintes teorias-padrão do amor: a teoria do sentimento, a teoria da unidade, a teoria do valor e a teoria do cuidado [Sorge, care].4 A teoria do sentimento compreende o amor como um sentimento direcionado, de alguma maneira, a um objeto – e isso corresponde de fato àquilo que compreendemos por “amor”


    4 Sobre essa divisão original, cf. Helm 2013.

    no dia a dia. Dependendo da teoria, esse sentimento pode ser apresentado como simples, isto é, “atômico”, embora todas as teorias concordem que ele seja geralmente acompanhado de outros sentimentos e disposições de comportamento. Outras teorias do sentimento concebem o amor como um sentimento composto, isto é, constituído de outros sentimentos, os quais seriam, de todo modo, focados em um objeto e distinguir-se-iam por sua intensidade qualitativa e quantitativa. Por fim, outras teorias do sentimento consideram o sentimento do amor também como uma síntese de diversos sentimentos, mas, segundo elas, essa síntese seria sentida mais uma vez, de uma maneira especial.5

    A teoria da unidade compreende o amor – ou ao menos o amor romântico – como uma unidade dos amantes, pelo que essa unidade é tomada como uma nova entidade, a qual ou toma o lugar dos indivíduos originalmente existentes, ou é deles depreendida. Isso pode ser compreendido num sentido meramente metafórico, num sentido ontologicamente forte, ou num sentido ontologicamente fraco. De acordo com o sentido ontologicamente fraco, que nos parece o mais plausível, a teoria partiria de uma nova entidade, realmente existente, na figura da relação entre os amantes, a qual, no entanto, não negaria inteiramente a individualidade destes, embora a influenciasse.6

    Em terceiro lugar, o amor pode ser compreendido como uma forma de valoração do objeto amado. Com isso supõe-se que o amor consiste (1) no conhecimento completo do valor inerente do objeto amado e (2) na correspondente reação a esse conhecimento. Alternativamente, o amor pode ser compreendido nessa teoria como o ato de estabelecimento do valor: seria por meio do amor do amante que se concederia o valor do objeto amado.7

    Em quarto lugar, o amor pode ser compreendido como o cuidado8 (ativo) e isso não significa – ou, ao menos, não primariamente – um sentimento, mas sim uma atitude que se pode assumir para com o outro.9 Essa atitude implica principalmente em que se faça o bem ao outro em razão dele mesmo. Explicaremos esse ponto em mais detalhes a seguir.


    5 Para uma exposição das duas primeiras teorias do sentimento, com referências bibliográficas sobre o assunto, cf. Demmerling 2007, p. 127-130, e Helm 2013. A terceira teoria remete a um manuscrito de nossa autoria ainda não publicado.

    6 Cf. Fisher 1990 e Nozick 1989. O modelo remete, no entanto, ao Banquete de Platão.

    7 Cf. Velleman 1999.

    8 “Cuidado” é a tradução que adotaremos daqui em diante para o termo alemão Sorge e o inglês care, e “cuidar”, a tradução para sorgen e to care. Em algumas passagens, no entanto, a tradução por “preocupação” ou “preocupar-se” (ou ainda, “importar-se”) soaria talvez mais natural. (Nota do Tradutor)

    9 Sobre essa teoria, cf. principalmente Frankfurt 2001a, 2001b e 2001c.


    Essa enumeração de teorias analíticas do amor poderia seguramente se estender de modo a incluir, por exemplo, a teoria dialógica, mas as teorias acima mencionadas já abrangem, na nossa opinião, as correntes mais importantes.10

    Seria certamente interessante analisar se – e, em caso afirmativo, de que modo – essas quatro teorias poderiam nos oferecer uma reconstrução do conceito de amor em Kant. Naturalmente, não poderemos empreender aqui essa extensa tarefa. Limitar-nos-emos, por isso, ao modelo que, à primeira vista, parece ser o mais próximo da compreensão kantiana do amor: concentrar-nos-emos no modelo de amor como cuidado. Este é conhecidamente defendido nos dias atuais por Harry Frankfurt. Segundo ele, o amor não é apenas frequentemente acompanhado de cuidado, mas antes consiste fundamentalmente nesse cuidado. Cuidar de algo significa, nesse contexto, “que nos apoiamos em algo [...] ou que algo é visto como importante para nós” (Frankfurt 2001c, p. 201f.) e que nossa ação traduz tudo isso.11 O cuidado – e, portanto, o amor – é, assim, entendido como uma prontidão ou, mais que isso, uma atitude que, em geral, implica a execução de determinadas ações. É exatamente isso o que Frankfurt tem em mente ao afirmar que o cuidado não seria essencialmente “nem afetivo, nem cognitivo”, mas sim “volitivo” (Frankfurt 2001a, p. 167). Ebels-Duggan fala ainda em um practical state (Ebels-Duggan 2008, p. 155).12 Deste modo, o amor não é visto essencialmente como sentimento, isto é, sentimentos não são vistos como necessários para o amor, ainda que possam surgir como efeito secundário. Ao contrário, o amor é visto como um modo de estar ativo, o qual se caracteriza por atos de volição e por uma atitude volitiva fundamental, que se realiza, normalmente, nas ações e se distingue por “um certo padrão de coerência e estabilidade no comportamento” (Frankfurt 2001b, p. 102). Cuidamos de uma pessoa quando a queremos apoiar e quando, por um longo período de tempo, recorrentemente de fato a apoiamos em situações concretas para a obtenção de seus fins, os quais ela própria estabelece; quando lhe damos atenção, encorajamo-la e ajudamo-la – em resumo, quando promovemos o seu bem-estar. E tal não o fazemos porque daí esperamos tirar algum proveito (como, por exemplo, agradecimento, retribuição ou simplesmente evitar uma briga), e sim em razão da própria pessoa amada.


    10 Para o modelo dialógico, cf. Krebs 2015.

    11 “Que nos apoiamos em algo” significa aqui, em primeiro lugar, que sentimos “dor pela frustração desse desejo [ligado ao cuidado]” (Frankfurt 2001c, p. 207) (de fazer algo pelo outro) e que o desejo correspondente é, portanto, de longa duração, visto que está presente um desejo de “segunda ordem”, que nos direciona a manter o primeiro (Ibid., p. 208).

    12 Também Ebels-Duggan 2008, p. ex., p. 144, alerta para a semelhança entre Kant e Frankfurt.

    Fazemos o bem à pessoa amada, segundo essa tese, apenas porque ela tem diversos desejos e necessidades, e esse tipo de cuidado converge, em parte, para uma identificação dos interesses da pessoa amada com os nossos próprios interesses. Nos países de língua inglesa isso é conhecido como robust concern; nos países de língua alemã, fala-se em uma “interesselose Sorge” [cuidado desinteressado]. Outro elemento característico dessa forma de amor é o fato de que seu objeto é necessariamente pessoal ou “particular” (Frankfurt 2001c, p. 215): aquilo que é amado não pode a princípio ser substituído por outra coisa, isto é, por outro objeto de amor. Por fim, no caso do amor como cuidado trata-se fundamentalmente de um genuíno ato volitivo, e, ainda assim, não dispomos livremente de tais atos do amor como cuidado: não está a princípio em nossas mãos decidir o que ou quem nós amamos ou não. Não se pode simplesmente escolher de quem cuidamos, isto é, por quem nos importamos. “O acesso voluntário [é] limitado” (Frankfurt 2001c, p. 213) e o amor é, portanto, uma “estrutura complexa, involuntária e deliberada” (ibid.). Frankfurt fala nesse contexto também em “coerção volitiva” (Frankfurt 2001b, p. 105).

    O amor dos pais pelos filhos é o modelo por excelência do amor como cuidado. Com efeito, ele é tido, em certa medida, como a forma pura desse amor. Os pais querem promover o bem-estar de seus filhos apenas em razão dos filhos mesmos. É por isso que os apoiam em todos os aspectos possíveis, sem esperar daí qualquer proveito. O amor romântico, por sua vez, é visto de modo problemático nesse ponto. Ele é, afirma Frankfurt, demasiadamente impregnado de sentimentos fortes e interesses próprios, que põem o cuidado com a pessoa amada em razão dela mesma em segundo plano ou simplesmente o encobrem.13 Neste ponto fica novamente claro que, segundo essa teoria, os sentimentos não são uma parte necessária ou central do amor e podem até mesmo atrapalhá-lo.


  3. Comparação entre a teoria kantiana do amor e a teoria analítica do amor

    Passemos agora à terceira parte, isto é, à comparação entre a teoria kantiana do amor e a teoria analítica do amor. Comecemos pelo amor complacentiae. Por essa forma de amor Kant entende, como mostramos anteriormente, aquele prazer ligado imediatamente à representação das aspirações morais dos homens pela perfeição. Mas em que sentido fala Kant aqui de amor ou mesmo de caridade? Embora o amor complacentiae seja direcionado aos homens, e, embora Kant conceba esse amor expressamente como


    13 Cf. Frankfurt (2001c, p. 214).


    sentimento, não há muito em comum entre ele e os tipos paradigmáticos de amor, ou seja, o amor romântico e o amor entre amigos, ou mesmo o amor dos pais. O deleite na aspiração moral dos homens parece, ainda que se trate de um sentimento, não se afinar suficientemente com os sentimentos do amor que associamos ao amor romântico e ao amor entre amigos, ou mesmo ao amor dos pais, isto é, ele parece não se afinar com os fortes sentimentos positivos ligados à atração por um objeto específico de amor. O amor de complacência parece assemelhar-se mais ao amor ao próximo, na medida em que não é exigida por esse tipo de amor, tal qual entendido pela tradição, nenhuma relação pessoal. Entretanto, como veremos em breve, o amor ao próximo é justamente aquilo que Kant seguramente não considera como amor de complacência, mas sim como amor de benevolência.

    Examinemos mais uma vez as quatro teorias do amor, agora em conexão com o amor de complacência. Vimos anteriormente que uma teoria do sentimento do amor não seria um ponto de partida adequado para reconstruir o amor de complacência, embora esse amor de fato seja um sentimento. Isso porque, a princípio, não parece haver nada em comum entre ele e os casos paradigmáticos de amor. Parece-nos que não há, no conjunto das teorias ou nos escritos principais de Kant, nada semelhante à teoria do amor como unidade – o que talvez não deva surpreender, pois ela se refere principalmente ao amor romântico, o qual, enquanto “amor puramente sensível” (TL: 426,22), não exerce papel algum na filosofia de Kant, já que não poderia “ser considerado nem como amor de complacência, nem como amor de beneficência” (TL: 426,27) e “na verdade nada teria em comum com o amor moral” (TL: 426,29). As teorias do valor parecem, ao contrário, inteiramente aplicáveis ao pensamento de Kant e, de fato, encontram-se na historiografia contemporânea tentativas dessa aplicação: segundo David Vellemann, reconhecemos por meio do amor o valor genuíno da pessoa amada. Vellemann tenta interpretar esse reconhecimento do valor em conexão com o conceito kantiano de respeito, pelo qual, segundo Vellemann, reconhecemos primeiramente o valor da pessoa, e o qual pode ser estreitamente associado, ou ao menos comparável, ao amor. Tanto pelo respeito quanto pelo amor reconhecemos o valor pessoal – e, portanto, a dignidade – de nossos semelhantes.14 Entretanto, é ainda questionável se a referência dessa teoria ao conceito


    14 Assim, Vellemann descreve o respeito como “the awareness of the value that arrests our self-love” (Vellemann 1999, p. 360) e, em seguinda, reintera: “I am inclined to say that love is likewise the awareness

    kantiano de respeito efetivamente é possível, quando consideramos apenas a teoria kantiana original (e Vellemann aborda de fato diversos problemas daí decorrentes), pois Kant diferencia expressamente respeito e amor.

    Chegamos, assim, à teoria do amor como cuidado e com isso também ao amor benevolentiae. Reiteremos primeiramente o seguinte: nessa teoria analítica o amor é compreendido como a atitude desinteressada da benevolência ativa que, embora seja focada num indivíduo, não precisa ser acompanhada de um sentimento. Não precisamos expor aqui em detalhes por que essa teoria não se ajusta ao amor de complacência kantiano: ainda que o amor de complacência seja desinteressado, não é focado em um indivíduo, nem mesmo diz respeito a uma benevolência ativa e, ademais, trata-se, no caso do amor de complacência, necessariamente de um sentimento, o que não é pressuposto pelo amor entendido como cuidado.

    Por outro lado, salta aos olhos a semelhança entre a teoria do amor como cuidado e o amor de benevolência (o amor benevolentiae). Analisemos, então, novamente o amor de benevolência e o que ele tem ou não em comum com o amor como cuidado:

    1. Na subseção sobre a caridade da introdução à Doutrina da Virtude, XII, Kant parte da manifesta constatação universal de que o amor seria “uma coisa do sentimento [Empfindung], não do querer” (TL: 401,24) e de que, ao contrário de um amor entendido desse modo, o amor benevolentiae “pode estar sujeito a uma lei do dever [...] Ora, o que se faz por coação não se faz por amor” (TL: 401,27), isto é, não se faz por amor entendido como sentimento. O motivo pelo qual Kant ainda assim fala em amor benevolentiae é que aqueles que, por amor genuinamente sentido, querem bem ao ente amado, mostram exatamente aquela “benevolência desinteressada” (TL: 401,28) que caracteriza também o amor prático de benevolência. Kant enfatiza expressamente, como vimos, que esse amor “aqui” (isto é, no contexto da exposição dos deveres de amor) não é tomado como um sentimento. Assim, ele entende o amor do bem-fazer como “máxima do querer bem (a caridade prática)” (TL: 450,31) ou como a “máxima (do bem-fazer)” (TL: 451,18) a todos os homens,



      of value inhering in its object; and I am also inclined to describe love as an arresting awareness of that value.” (ibid., p. 360). Cf. também a seguinte passagem: “[W]hen the object of our love is a person […] we are responding to the value that he possesses by virtue of being a person” (ibid., p. 365). E ainda: “I regard respect and love as the required minimum and the optional maximum responses to one and the same value.” (ibid., p. 366).


      ou seja, o amor prático precisa ser pensado como “máxima da benevolência (enquanto prática) que tem o bem-fazer como consequência” (TL: 449,20). Kant escreve de início, no parágrafo 23 da Doutrina da Virtude, que “o amor e o respeito são os sentimentos que acompanham o exercício desses deveres [isto é, dos deveres de amor e respeito]” (TL: 448,14). Mas isso não significa que, para ele, o sentimento de amor acompanhe os deveres de amor e o sentimento de respeito, os deveres de respeito – com efeito, o sentimento que acompanha o dever de amor da gratidão é o respeito.15 Ademais, não é necessário que aquele que cumpre o dever sinta algo como “amor”, pois, quando Kant aborda o amor prático enquanto “máxima do querer bem” ao homem, como mandamento, acrescenta explicitamente a ressalva: “quer se julgue este como digno de amor ou não” (TL: 450, 32). 16 Exatamente por isso, Kant denomina o amor de benevolência também como “prático”, isto é, amor não-estético. A ênfase de Kant sobre a atitude prática não- estética adapta-se, portanto, muito bem a uma teoria do amor como cuidado.17

    2. O pensamento central da teoria do amor como cuidado adapta-se especialmente bem ao conceito de amor benevolentiae de Kant. A tese principal da teoria do cuidado, conforme vimos, consiste na ideia de que o amante apoie e proteja a pessoa amada, por um longo período de tempo, no alcance de seus fins; em outras palavras: que queira o seu bem-estar e aja de acordo com esse querer. É exatamente essa a ideia central da caridade prática: a máxima da benevolência ou do bem-fazer, e, assim, o “dever do amor ao próximo” (TL: 450,3), consiste em “fazer meus os fins dos outros (exceto apenas se estes forem imorais)” (TL: 450,4), ou, como diz Kant em outra passagem, em “tomar como fim” (TL: 452,28) o bem-estar dos outros. Não é muito fácil estabelecer em que consiste exatamente essa “máxima”: seria ela uma máxima geral de todos os deveres de amor ou existiria uma máxima específica para cada um dos três deveres de amor específicos (beneficência,


      15 Deve-se observar, além disso, que esses “sentimentos que acompanham o exercício desses deveres” (amor e respeito) não devem ser confundidos com aquelas duas predisposições de ânimo morais que Kant denomina “amor ao homem” e “respeito”. Isso porque o respeito entendido como predisposição de ânimo moral é, na verdade, o autorrespeito, e, além disso, o “amor” e o “respeito” “acompanham” a execução dos deveres de amor e respeito e, para tal execução, as predisposições de ânimo morais já precisam ser pressupostas.

      16 Cf. o capítulo VIII da Introdução à Doutrina da Virtude, onde Kant fala do bem-fazer como algo que não ocorre por “afeto (amor) aos outros, e sim por dever” (TL: 393, 14).

      17 Entretanto, há um problema no fato de Kant descrever a benevolência no § 29 da Doutrina da Virtude como “prazer pela felicidade (o bem-estar) de outros” (TL: 452, 27), o que por certo deve ser entendido como categoria estética. Não podemos, no entanto, tratar aqui desse problema.

      gratidão e compaixão)? Em especial, não é claro se o amor benevolentiae deveria ser identificado com a “máxima [universal] da benevolência e do bem-fazer” (ou mesmo com o dever universal do amor ao próximo), se é que ela existe, ou com o “dever [específico] da boa ação” (TL: 452,14), que é apenas um dos três deveres de amor. Apesar dessas dificuldades, fica claro, no entanto, que a caridade prática consiste fundamentalmente no cuidado com o bem-estar dos outros e é exatamente isso que está no centro da teoria do amor como cuidado.

    3. E quanto ao desinteresse que é típico do amor como cuidado?18 Novamente parece haver um pleno acordo com o amor de beneficência de Kant. Com efeito, do mesmo modo que, no amor, cuido do ente amado em razão dele mesmo, assim também o meu bem-fazer se direciona à pessoa em razão dela mesma. Kant fala, como citado acima, de uma “benevolência desinteressada para com os homens” (TL: 401,28). O ponto mais importante da teoria kantiana encontra-se, sob certo aspecto, justamente na tese de que o homem cumpre os deveres morais em razão deles mesmos – e um desses deveres é o dever da benevolência – e isso significa no fundo que o indivíduo os satisfaz em razão dos seres racionais mesmos, que são fins em si mesmos.19

      Ainda assim, há também duas notórias diferenças entre a teoria do amor de Kant e a de Frankfurt. Enquanto o amante de fato cuida do outro, o beneficente deve cuidar do outro. O conceito ou teoria kantiana da caridade prática é nitidamente normativa. Ora, na teoria do amor como cuidado há até mesmo espaço para normas: se amo alguém e sei que ele precisa de minha ajuda, segue-se imediatamente que tenho uma razão para realizar a ação adequada para ajudá-lo (ou deixar de realizar uma outra ação que o prejudicaria). Se não o faço, não amo realmente ou “traio” (Frankfurt 2001c, p. 224) a mim mesmo por meio da não-execução do mandamento do amor, dado que a estrutura volitiva concreta do cuidado e o foco sobre o objeto determinado são ligados ao meu caráter específico, sobre o qual a volição está


      18 Cf. Schönecker 2010.

      19 Essa tese revela-se, no entanto, problemática, se consideramos que, segundo Frankfurt, o amor aos homens é sempre de nosso interesse (Frankfurt 2001c, pp. 209f. e 221-224) e, portanto, exerce um papel central em nossa vida, na medida em que o amor infunde significado (Frankfurt 2001b). Há aqui uma tensão na teoria de Frankfurt, pois ele, por um lado, enfatiza o desinteresse do amor e, por outro, no entanto, entende esse amor desinteressado como algo que é de meu interesse. É bem verdade que, segundo Kant, posso tomar interesse pela moral, mas ela não é de meu interesse, como a satisfação de minhas necessidades (por exemplo, o amor)

      – cf., por exemplo, GMS: 413 f.


      ancorada. Ainda assim, Frankfurt distingue explicitamente amor e dever moral: “as exigências do amor não são imperativos morais” (Frankfurt 2001c, p. 220). Por um lado, segundo Frankfurt, a qualidade fenomênica da coerção que o sujeito experimenta é nos dois casos semelhante, mas se diferencia muito no tocante à sua fonte (apesar de as exigências do amor e do dever poderem coincidir). A coerção do amor concerne à importância do objeto para nós (e a identificação dos interesses do outro com os nossos) e à importância do próprio amor para a nossa vida. Segundo Frankfurt, o agir moral diferencia-se ainda de uma ação movida pelo amor como cuidado pelo fato de que, para o agir moral, sempre seria necessário também desejar ser moral, enquanto no caso do cuidado nenhum desejo ulterior é requerido: se amo alguém e sei que ele se encontra em necessidade, segue-se inevitavelmente, como dissemos, que tenho uma razão para agir de modo a ajudá-lo – o que não seria o caso quando se trata da moral, segundo Frankfurt.

    4. Outra diferença relaciona-se ao fato de que, no caso do amor como cuidado, o cuidar direciona-se a uma pessoa específica. O cuidado é, como dissemos, focado num indivíduo. A caridade prática, ao contrário, direciona-se a princípio a todos os seres humanos. Por isso, Kant não fala apenas em caridade prática, mas também em “caridade geral” (TL: 451,21), em que a benevolência seria “a maior em extensão” (TL: 451,22) – justamente porque se refere a todos os homens.

    5. Examinemos por último novamente o aspecto da influência intencional. A teoria do amor como cuidado parte, como já mencionamos, do fato de que o acesso intencional em relação à escolha do objeto do cuidar é limitado. O cuidado é, segundo essa teoria, fundamentalmente volitivo, mas não podemos escolher de que ou de quem nós cuidamos. O que quer que isso signifique, para Kant, é preciso de todo modo supor que o agir e o querer segundo a caridade prática têm origem na vontade livre e inteligível. Que essa tese esteja carregada de dificuldades teóricas, é algo que podemos aqui apenas mencionar. Na medida em que Frankfurt também concebe a restrição volitiva (talvez paradoxalmente) como autonomia, permanece em aberto se há ou não um acordo entre as duas teorias.20


20 Cf. Frankfurt 2001a.

Como avaliar conclusivamente a comparação entre a teoria kantiana do amor e as teorias contemporâneas da filosofia analítica sobre o amor? Como vimos, a maior proximidade identificada é aquela entre a teoria do amor como cuidado, tal qual notavelmente defendida por Frankfurt, e a teoria kantiana do amor benevolentiae, a caridade prática. As duas teorias têm em comum o fato de que não compreendem o amor como um sentimento, e sim como uma atitude volitiva ou, segundo a terminologia de Kant, como uma máxima da vontade cujo foco está na promoção dos fins do outro em razão dele mesmo. Embora a teoria kantiana do amor prático, portanto, possa provavelmente (ao menos em parte) ser reconstruída por meio da teoria de Frankfurt, esse acordo entre amor e moral é curiosamente negado por Frankfurt.

Frankfurt, para cuja teoria o amor dos pais é paradigmático, nega expressamente o caráter essencialmente emocional do amor, que a maioria das pessoas diria que é indispensável. Kant, por sua vez, nega igualmente o caráter essencialmente emocional da caridade prática, mas sustenta que essa caridade “prática” (ou seja, o amor ao próximo) nada tem a ver com o amor em sentido próprio – uma ressalva justificante de que Frankfurt naturalmente não poderia dispor, dado que o amor dos pais (diferentemente do amor ao próximo) é entendido em geral como uma forma de amor associada a fortes sentimentos. Ainda assim, parece-nos que aquilo que Frankfurt compreende por cuidado é central e necessário – se não suficiente – para ambas as formas de amor (amor dos pais e amor ao próximo). Uma teoria integral do amor deveria, portanto, levar em conta o aspecto do cuidado. Deste modo, a caridade prática de Kant e o cuidado de Frankfurt chamam a atenção para um aspecto bastante significativo para o desenvolvimento de uma teoria desse gênero.


Referências bibliográficas


Kant


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VT Sobre um Recente Enaltecido Tom de Distinção na Filosofia, AA 8 GMS Fundamentação da Metafísica dos Costumes, AA 4


TL Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude, AA 6


Todas as indicações de páginas e linhas entre parênteses, com as siglas correspondentes, referem-se à edição da Real Academia Prussiana das Ciências (Kant’s gesammelte Schriften, herausgegeben von der Königlich Preußischen Akademie der Wissenschaften, Berlin 1900 ff.). As citações dos Princípios Metafísicos da Doutrina da Virtude seguem, com algumas modificações, a tradução de Artur Morão para a editora Edições 70: Kant, I. (2004) Metafísica dos Costumes, Lisboa.

Bibliografia secundária


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Schönecker, D. (2010): “Kant über Menschenliebe als moralische Gemütsanlage”, in: Archiv für Geschichte der Philosophie, no. 2/2010, pp. 133-175 (com a colaboração de Alexander Cotter, Magdalena Eckes, Sebastian Maly).

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