CON-TEXTOS KANTIANOS.
International Journal of Philosophy N.o 5, Junio 2017, pp. 190-215
ISSN: 2386-7655
Doi: 10.5281/zenodo.805933
FERNANDO MANUEL FERREIRA DA SILVA
Universidade de Lisboa, Centro de Filosofia, Portugal
O presente ensaio tem por objectivo ajudar a discernir o novo prisma, e o novo curso de pensamento por Kant inaugurado sobre o mais originário dos tópicos da faculdade de representação humana: as representações obscuras; um tópico até então quase completamente negligenciado, ou então expressamente negado, em razão da sua ligação à sensibilidade, mas um tópico que, no entender do filósofo, não só era um tópico de grande relevância filosófica, como antes encerrava novas, até então impensadas potencialidades, que Kant traz à palavra pela primeira vez nas Lições de Antropologia. Assim, é nosso intento provar a matriz originariamente cosmológica que, para Kant, é aquela do problema das representações obscuras; trazer à evidência a forma embrionária da consciência que é a das representações obscuras, e sua relação com o conhecimento claro (o processo de intelectualização das representações sensíveis); e, por fim, salientar como o tópico das representações obscuras está na origem de um re-proporcionamento de todas as inferiores e superiores faculdades do ânimo – o mesmo que Kant visava com a poesia, de que as representações obscuras são afinal parte.
Palavras-chave
1 O seguinte ensaio serve de introdução à tradução de três lições de antropologia de Kant, nomeadamente, a tradução integral de “Das representações obscuras da alma” (AA 25.1: 479-482); a tradução parcial de “Das representações obscuras, das quais não se está consciente” (AA 25.2: 867-871) e a tradução parcial de “3º Capítulo. Das representações” (AA 25.2: 1221-1224). Cf. Silva, Fernando M. F., “As representações obscuras. Lições de Antropologia de Immanuel Kant”, in Con-textos Kantianos, nº 4, pp. 296-304, 2016.
[Recibido: 6 de mayo de 2017
Aceptado: 20 de mayo de 2017]
representações obscuras, cosmos, alma, consciência, poesia
The following essay aims at discerning the new point of view and the new line of thought Kant inaugurates on the most original of the topics of the faculty of human representation: that of obscure representations; a topic until then was almost completely neglected, or even expressly negated, due to its connection with sensibility, but a topic which, according to the philosopher, was not only a topic of great philosophical pertinence, but it contained new, until then unheard-of potentialities which Kant brings to word for the first time in his Lectures on Anthropology. Hence, it is our aim to prove Kant’s original cosmological matrix of the problem of obscure representations; to bring to evidence the embryonic form of consciousness which is that of obscure representations, and consequently their relation with clear knowledge (the process of intellectualization of sensible representations); and finally, to underscore how the topic of obscure representations is at the origin of a process of re-proportion of all inferior and superior faculties of the soul – the same which Kant envisaged with poetry, of which obscure representations are after all a part.
Keywords: obscure representations, cosmos, soul, consciousness, poetry
É hoje por muitos aceite que uma das primeiras imagens do conceito kantiano de totalidade sistemática – ou de harmonia entre o todo e as partes – surge traçada na obra Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels (1755), doravante ANTH, e que esta mesma imagem teria, ora maior, ora menor repercussão em vários outros quadrantes da obra do grande filósofo.
Na Primeira Secção desta obra, e referindo-se a esta mesma imagem, fala Kant de um “sistema” (AA 1: 247)2, uma “lei” (id.), uma “ordem” (ibid.) e, mais claramente ainda, de um “propósito” (ibid.) da disposição, em menor escala, da estrutura dos planetas do nosso sistema solar, e, em maior escala, do universo. A saber, que, por observação do nosso sistema solar, a infalível sistematicidade e ordem que este ostenta pode vir a ser subsumida em qualquer corpo celeste, o qual estará ele próprio como parte do seu próprio
2 Com respeito às citações de autor, recorremos ao método (Abreviatura da obra, número de volume, número de página), sendo que a abreviatura correspondente se encontra discriminada na bibliografia. As citações latinas foram deixadas no original. As restantes citações foram traduzidas dos originais alemão e inglês para língua portuguesa. A tradução das mesmas é da minha autoria e responsabilidade.
sistema – e portanto, num plano extremo, em todo o cosmos; pois que este é atravessado, na sua mais ínfima, como na sua maior parte constituinte, por uma “contínua influência em todo o espaço do sistema” (id.: 261). O melhor exemplo desta ordem, e desta “influência” visível-invisível que a perpassa – diz aliás Kant –, é o da Via Láctea; ela que, a olho nu, é composta por estrelas distantes, dispostas de modo aparentemente díspar, e portanto até incongruente, umas em relação às outras (como qualquer elemento do cosmos), mas que, uma vez vista numa superfície plana – como num mapa astral, por observação telescópica
– se afigura afinal uma só “faixa” (id.: 249), um “grande círculo (...) em conexão ininterrupta” (id.: 248), como se justamente fosse perpassada por uma energia contígua –, mas essa energia fosse afinal propiciada pela própria separação das estrelas, pela escuridão entre elas, e tornada manifesta pela supressão da mesma mediante o reflexo do brilho das estrelas umas sobre as outras. A Via Láctea, diz pois Kant, pode ser vista como um “plano principal [Hauptplan] de todo o movimento” (id.: 252); e porque, diz Kant, o que em vista de um sistema individual pode ser aplicado em escala crescente (até ao todo do cosmos), pode sê-lo também em escala decrescente (não de volta à Via Láctea, mas até à vida humana), então essa imagem poderá valer também para toda a existência ou ocorrência natural em geral, a qual, assim sendo, e à semelhança de tais entidades cósmicas, está harmoniosamente disposta, mas isso nem sempre mediante uma harmonia evidente, antes mediante esta espécie de jogo de um equilíbrio de forças, uma mútua resistência entre contrários, ordenada por um propósito final; pois, diz Kant, “se se observar as partes da natureza segundo propósitos e um projecto descoberto, então abrem- se certas propriedades que de outro modo permaneceriam omissas e ocultas se a observação, sem uma orientação para todos os objectos, se dispersasse” (id.: 255).
Uma tal imagem de harmoniosa sistematicidade, de infalível ordenação e do prazer que disto naturalmente advém – dizíamos – seria pois uma e outra vez empregue por Kant, o observador do céu e investigador da natureza, no decorrer da sua obra; até porque, sobre uma tal disposição, já em 1755 confirmaria o filósofo que ela tem de facto aplicação na própria natureza, e que, só por isso, valeria já a pena que ela aí fosse discernida: “A credulidade da própria coisa a partir de fundamentos da natureza, e a analogia [entre ambas], suportam esta esperança tão bem, que elas podem despertar a atenção do investigador da natureza para que este as traga à sua realização” (id.: 252). Assim, para o Kant crítico, e também para o filósofo da história, ela tem óbvia aplicação na noção de
conformidade a um fim, quer como ela é exposta nas Críticas, quer como ela surge no texto Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbürgerlicher Absicht (1784)3; para o Kant político e pensador da moral, ele ressurge sob a forma da federação dos povos, o que é visível em vários grupos das suas Lições, e posteriormente surge exposto quer em Über den Gemeinspruch (1793), quer em Zum Ewigen Frieden 4 . E, por fim, para o Kant pensador de estética, da arte e da poesia, ela ressurge na afirmação da ideia de harmonia ou proporção resistente entre as inferiores e superiores faculdades do ânimo, e a daí decorrente necessidade de uma reestruturação das relações, da interacção e até do próprio posicionamento fundamental das mesmas no seio do espírito humano – como ela surge exposta sobretudo nas suas Lições de Antropologia (1772-1796). Aqui, em específico, esta noção de proporção ou equilíbrio de forças é visível na acção conjunta, em mútua resistência, mas mútua cooperação, da tríade principal de inferiores faculdades do conhecimento, memória, fantasia e faculdade de imaginação; e mais claramente ainda nos sub-tópicos do engenho – nomeadamente, no jogo que a faculdade de imaginação trava com o entendimento5 –, e no génio, que Kant vê como uma árvore, um todo orgânico composto por engenho, faculdade de imaginação, gosto e faculdade de julgar6.
3 Neste ultimo, aliás, refere-se Kant à “maneira confusa e sem regra” como o curso da natureza salta aos olhos dos indivíduos, e, porém, a um propósito oculto, a um “plano determinado da natureza”, uma regra, um fio condutor; como no caso da Via Láctea. Aí se fala também de “Kepler, que de um modo inesperado submeteu as excêntricas rotas dos planetas a leis determinadas, e (...) Newton, que explicou estas leis a partir de uma universal causa da natureza” (...); e, mais concretamente, na Proposição Quarta, diz-se como por detrás de, ou mediante resistência, insociabilidade e intratabilidade, a Providência extrai ordem e regras, e dispõe o homem num aparentemente incongruente, mas realmente harmonioso progresso em direcção ao completo desenvolvimento das suas disposições naturais – todas estas imagens que encontram repercussão no cosmos, e têm o seu arquétipo na Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels.
4 Neste ultimo, Kant diz aliás que, por detrás das inclinações individuais de cada indivíduo, e de cada Estado, as quais parecem colocar os indivíduos e os Estados em relações de mera incongruência uns com os outros (“Um grupo de seres racionais que, em conjunto, exigem leis universais para a sua conservação, cada um deles estando porém secretamente inclinado a excluir-se deste, a fim de assim ordenar e instaurar a sua constituição»), está um mecanismo da natureza (da natura daedala rerum), uma harmoniosa conformidade a um fim, a mão da Providência, que designa que, “apesar de eles lutarem uns com os outros nos seus propósitos privados, estes [propósitos] se anulem uns aos outros de tal maneira que, na sua conduta pública, o resultado é justamente o mesmo do que se eles não tivessem nenhuns maus propósitos.» - assim obedecendo o curso das acções e interacções humanas, como tudo tem de obedecer (até mesmo o cosmos), à oculta regularidade do mecanismo da natureza.
5 Cf. Silva, Fernando M. F., «“Zum Erfinden wird Witz erfordert“. On the evolution of the concept of «Witz» in Kant’s Anthropology Lectures», in Kant’s Lectures/ Kants Vorlesungen, ed. by Bernd Dörflinger, Claudio La Rocca, Robert Louden, Ubirajara Marques Rancan de Azevedo. Berlin/Boston, Walter de Gruyter, 2015, pp. 121-132.
6 Cf. AA 25.2: 1062; AA 25.2: 1495. Sobre o assunto, cf. também Silva, Fernando M. F., «O conceito de génio nas Lições de Antropologia de Kant», in Revista Kriterion, Revista de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, vol. 57, nº 135, Brasil, 2016, pp. 677-702.
Neste mesmo âmbito estético-antropológico, porém, há um tópico onde Kant recupera a anterior concepção de totalidade harmoniosa com ainda maior propriedade e efeito – e isso, porque aí se recupera não só o anterior procedimento, mas também a própria imagem cósmica que presidira à primeira exposição do mesmo: trata-se este do tópico das representações obscuras, que Kant aborda quase sem excepção nas várias secções das suas Lições de Antropologia7, e que, pela sua posição no seio destas, por ele são inscritas justamente no seio da teoria da representação; mais concretamente, na génese do estudo do processo de geração de ideias da alma humana.
Assim, e tendo em conta as anteriores afinidades, o presente ensaio propõe-se cumprir dois objectivos principais:
Numa primeira fase, discernir os contornos exactos da matriz cosmológica de unidade por Kant proposta para a teoria da representação, e para a teoria da consciência do homem, e sua aplicação na origem destas, nas representações obscuras. A saber, importa aqui salientar quais os principais preconceitos que até Kant regeram a história do estudo das representações obscuras; como Kant busca uma primeira inversão de tal visão por analogia com a anterior imagem de unidade astral, e suas repercussões cósmicas e naturais; e, por fim, como assim se começa a formar um novo prisma (pragmático) na abordagem ao problema em causa, prisma esse que envolve perscrutar não o visível ou claro, mas o obscuro ou o inconsciente na imaginação humana: pois que, vê-lo-emos, a secreta conexão entre representações obscuras e claras só pode ser discernida ao se divisar o carácter fundante e estruturante – e portanto, a nova relevância e novo estatuto – das primeiras em relação às segundas (Secção II).
Numa segunda e final fase, analisar o principal enfoque do novo prisma kantiano sobre as representações obscuras, segundo o qual estas representações, singularidade e pluralidade viva do espírito humano, são também germe – ou embrião –, por um lado, de todos os juízos, por outro, da consciência humana e de todos os conhecimentos humanos – e portanto podem e devem ser usadas pelas superiores faculdades do ânimo em seu próprio benefício (Sub-secção III.1). Atestando isto, está uma nova visão de conectividade
7 Mais concretamente, nas lições “Das representações obscuras da alma” (“Von den duncklen Vorstellungen der Seele” (AA 25.1: 479-482)); “Das representações obscuras, das quais não se está consciente” (“Von den dunklen Vorstellungen, deren man sich nicht bewuβt ist” (AA 25.2: 867-874)); “3tes Capitel. Von den Vorstellungen” (“3º Capítulo. Das representações” (AA 25.2: 1221-1224)); e “Das representações obscuras” (“Von den Dunkeln Vorstellungen” (AA 25.2: 1439-1441)). Não só nestas, o tema é ainda tratado, sob outras designações, em outras lições de antropologia.
consciente-inconsciente que, mediante o novo estudo das representações obscuras, é estabelecida entre as faculdades do ânimo – algo de que, por sua vez, é apenas prova o novo estatuto das representações obscuras no seio do processo da imaginação humana (Sub-secção III. 2).
Diz Kant que “temos das coisas ou representações claras, ou obscuras” (AA 25.2: 1221); e que estas têm de ser distinguidas e até certo ponto opostas, pois nada há de mais diferente para o conhecer de uma coisa do que o procedimento e o resultado final de ambas. Assim, a saber, ou temos das coisas representações em que conhecemos a maioria das partes, e dos atributos que as compõem, e portanto delas temos imediata consciência e conhecimento (representações claras), ou representações “especialmente claras” (id.), “que sobressaem mediante a sua própria luz” (id.: 868) a ponto de a sua “clareza se estender às representações parciais de um todo das mesmas” (AA 7: 135), das quais temos também imediata consciência e conhecimento (representações distintas); ou, ao invés, como é o caso com as representações obscuras, essas coisas têm para nós “qvalitates occultas” (AA 15.2: 65) que fazem com que elas nos sejam desconhecidas, ou confusas, e que delas não tenhamos nem consciência, nem, segundo parece, conhecimento.
A distinção destas espécies de representação, vê-se-já, não levanta problemas – pois não há aqui termos híbridos, e mesmo que tomemos designações como confusa, clara- confusa, complexa, ou ainda outras semelhantes, elas significam graus independentes de maior e menor clareza ou maior e menor obscuridade – não que uma representação obscura possa ser, em si, clara, ou uma clara, em si, obscura – o que seria uma contradição. Por outro lado, as representações não-obscuras em geral tão-pouco parecem levantar problema; pois estas, até pelas suas características de translucidez e clareza, e mais ainda pelos seus efeitos benéficos sobre o espírito, dispensam escrutínio. O mesmo, porém, não pode ser dito das representações obscuras, as quais, já à luz da sua história irregular e rarefeita, suscitam complexos problemas – problemas esses que, atalhariam por exemplo Locke, Leibniz, Bonnet, Condillac, Rüdiger, Knutzen, e quase toda a anterior
história da análise às representações obscuras, as tornam subalternas em relação às claras, e explica o porquê de o tópico ter sido considerado até como não-existente8.
Assim, já aquando da sua colocação, as representações obscuras apresentam dois problemas principais:
Um primeiro, de índole ancestral, segundo o qual algo há no obscuro e no inconsciente que desde logo é irracional, perigoso e em geral inferior – e por isso oposto – ao que é claro. Se disto não fosse prova todo o pensamento ocidental desde a Grécia Antiga, sê-lo-ia porém uma vez mais a própria história das representações obscuras, na qual estas, se sequer abordadas enquanto tal, são-no porém a fim de aferir falhas ou insuficiências no cérebro humano, e visando a anulação das mesmas9. O problema das representações obscuras não é pois apenas um problema sem mais – antes a própria obscuridade é, ela própria, um problema dentro do problema, uma segunda potência problemática da questão das representações obscuras, aos olhos do espírito humano e da história do conhecimento. (cf. II e III.1)
Um segundo problema, mais recente no tempo, é porém ainda mais nocivo; a saber, qual a relação, a posição, o papel das representações obscuras da alma – enquanto algo que parece ser invariavelmente negativo, ou não existir enquanto tal – na consciência do
8 Não nos alongaremos sobre a história do estudo das representações obscuras; nem seria aqui ocasião adequada para isso. Diremos, porém, que a história do tópico das representações obscuras, que envolve os nomes acima citados, ou ainda Herz, Ploucquet, Crusius, é hoje uma de muito difícil reconstituição – e, talvez por isso, ainda hoje muito negligenciada – e que ambos os fenómenos se devem não tanto a causas naturais, à singularidade do tópico enquanto tal, mas devido a causas mais profundas. A saber, tais fenómenos de negligência prendem-se por certo, como veremos, em parte com a especificidade própria do tópico das representações obscuras, com o adumbre, a inconsciência, a aparente irracionalidade que as envolve e parece esconder o seu desenvolvimento da compreensão humana. Mas, sobretudo, a dificuldade do tópico das representações obscuras, seja ele visto pela pena de Kant ou não, radica em algo muito mais profundo, a saber, no facto de, até à época de Kant, e até depois desta, se ter posto em causa não só os efeitos, não só o procedimento, mas a própria realidade da existência das representações obscuras – e isso pela pena de muitos dos autores atrás citados; uma dúvida de fundo que por certo se veria alavancada pelos atributos das próprias representações obscuras, mas que, como veremos, tem outras razões de ser, mais profundas e menos visíveis, que se prendem com a colocação do próprio tópico na história da teoria do saber e no então decorrente processo de reconfiguração da mesma – e que por conseguinte viriam a omitir ou a existência, ou pelo menos a real função das representações humanas durante séculos, até à sua abordagem radicalmente nova proposta por Baumgarten e Kant.
9 Mesmo quando a sua existência passou a ser admitida, o motivo de análise das representações obscuras repousava sobretudo na aferição das causas do obscurecimento das representações, no estudo do que poderia estar por detrás desse adumbramento da consciência humana, e na determinação dos efeitos nocivos que isto certamente tinha na consciência, e possíveis soluções para estes; nunca, porém, no carácter propriamente dito das representações obscuras, que ora mais, ora menos obviamente, era sempre visto negativamente, como causa de obscurantismo ou até patologia, e portanto em oposição às mais saudáveis, mais harmoniosas, mais esclarecidas representações distintas e claras, às quais as obscuras se deveriam elevar apenas para deixarem de ser o que eram. Locke, Essays on the Humane Understanding (1689), e Leibniz, Neue Abhandlungen über den menschlichen Verstand (1701-1704), dois dos primeiros a tratar o tópico, são aliás disto exemplo.
homem? Pois este problema, mais ainda do que o anterior, põe em causa a própria existência e o estatuto das representações obscuras – e, segundo creio, ele é para Kant tão importante, que, englobando o primeiro problema, ambos lançam em conjunto o problema das representações obscuras no pensamento do filósofo. (cf. II, III.1 e III.2)
Assim, não por acaso, com este problema começa Kant várias das suas lições sobre representações obscuras, explicando aliás que esta é a primeira dificuldade no tópico. As formulações kantianas do problema são inequívocas, e rezam do seguinte modo: “Na filosofia deram-se já disputas [a fim de saber] se há representações obscuras, das quais em lugar algum estamos conscientes” (AA 25.2: 867); “Representações obscuras são aquelas de que não se está consciente. Assim, onde se pode observá-las?” (AA 25.1: 479); e ainda: “Eu não sou consciente das minhas representações obscuras; mas então, de onde sei que as tenho?” (AA 25.2: 1221) Isto é, segundo parece, também para Kant as representações obscuras são de tal índole que, talvez devido à sua natureza, à sua cor, ou à sua oposição e subsequente subalternidade em relação às claras, elas são algo de que não temos consciência, e que parece não existir – que por certo teremos adquirido a dada altura, mas que sempre negligenciámos, ou rejeitámos, e de que por conseguinte não temos noção. E, portanto, a questão que Kant deseja ver resolvida, e que é a mesma por que a própria questão foi trazida até si, tem pertinência própria, e poderá rezar do seguinte modo: se não podemos ter consciência das representações obscuras, então o que prova a sua existência? Isto é: se eu não estou em consciência das representações obscuras – se elas não são para mim palpáveis e compreensíveis, como as claras –, como posso eu fazer delas qualquer uso? Pois parece que, até que se responda a esta questão, estaremos a incorrer no erro de se arrogar ter conhecimento de algo de que não se tem consciência; e até que este seja resolvido, permanecemos neste impasse em relação ao tópico.
A plena resposta de Kant às suas perguntas, só a conheceremos na Secção III deste texto. Mas a primeira reacção do filósofo às mesmas, essa não tarda; e segundo creio, ela não surge meramente enquanto tal, antes mediante ela reemerge a atrás referida imagem de uma totalidade harmoniosa de índole cósmica.
Assim, dissera Kant em ANTH (1755) que, uma vez vista no firmamento, a Via Láctea afigura-se ao olhar humano uma só “faixa” (AA 1: 249), um “grande círculo (...) em conexão ininterrupta” (id.: 248); mas que, uma vez vista ao telescópio, ela revela-se afinal uma organização complexa, detentora até de uma harmonia interna insuspeitada, a
qual de outro modo seria invisível ao olhar humano. Agora, em várias lições de antropologia (1775/76, 1781/82, 1784/85), Kant retoma exactamente a mesma imagem. A saber, diz o filósofo que, tal como nós próprios, também os Antigos assim viam a Via Láctea como uma tal “faixa” (id.: 249), “e diziam que era leite aspergido pela deusa” (AA 25.1: 867-868); mas, também aqui aduz Kant, “O telescópio mostra-nos agora que [ela] é o reflexo de muitas pequenas estrelas; e portanto, também os Antigos viram estas pequenas estrelas; pois, de outro modo, eles tão-pouco teriam visto a Via Láctea, com a excepção de que não viam ainda cada estrela individualmente, mas apenas o reflexo das mesmas; por conseguinte, a representação obscura das estrelas residia já nos Antigos, pois isto, podiam eles deduzi-lo” (id.: 868) – prova, pois, de que tal como já em ANTH a Via Láctea surgira como imagem de algo que estava escondido sob o seu próprio brilho, também agora ela ressurge justamente sob a mesma imagem, e com um propósito em tudo similar: o de mostrar que por detrás de si, enquanto representação clara de uma dada constelação, se oculta afinal uma natureza de outra ordem – a de suas representações obscuras, que existem, sempre existiram, e na verdade a compõem e são das representações claras parte.
Assim, diria Kant: os Antigos, ao fitarem estes a Via Láctea – tal como os Modernos, ao observarem um “pequeno verme” (ibid.) no microscópio, ou ao contemplarem “os raios de luz que atravessam o vidro” (ibid.) –, embora não tivessem consciência do pormenor nestes – “cabeça, pés, anéis” (ibid.), ou estrelas individuais – numa palavra, embora não tivessem consciência da representação obscura que faz parte, que constitui, e está como fundamento da clara –, isso não significa que esse pormenor, que aqui surge sob a forma da representação obscura, não existisse. A representação obscura existe deveras, e eles têm desta conhecimento – apenas obtêm das representações obscuras, em relação às claras, o mesmo que se obtém das estrelas que de modo aparentemente desfasado, e até algo incongruente, compõem a Via Láctea, em relação à imagem final desta; a saber, eles são delas “mediatamente conscientes” (AA 7: 135)10.
10 Segundo creio, uma tal colocação do problema como um mapa cósmico, ou um mapa das representações da alma vistos à distância, não é de todo inocente, e a imagem que aqui surge é aliás recuperada de uma outra sua semelhante, veiculada apenas algumas décadas antes, por Andreas Rüdiger e Martin Knutzen, Professor de Kant. Assim, Rüdiger afirma na sua obra Meinung von dem Wesen der Seele (1727) que a consciência precede a distinção, e que portanto se pode ter consciência das representações obscuras sem que estas acedam à distinção (cf. MWS: 5-15); já Knutzen, no seu Philosophische Abhandlung von der immateriellen Natur der Seele (1741, 1744), afirma que a distinção precede toda a consciência, e que só aquando da sua distinção
– da sua clarificação – se pode ter consciência das representações obscuras (cf. PA: 8-22). Ora, acontece porém que para ilustrarem a sua teoria, ambos os autores usam uma imagem em tudo similar à de Kant: a
Assim, aliás, mediante esta mesma noção, poderia Kant começar a responder às suas próprias questões, e poderíamos nós próprios começar a explicar a visão que deste tópico tem o filósofo; a saber, como algo que de facto existe, e tem realidade efectiva, e como algo que, à semelhança da Via Láctea, esconde sob a sua forma visível e clara uma constituição obscura que, embora escape à nossa consciência, pode porém ser mediatamente percebida, e portanto conhecida – e isto, afirma Kant, não é nenhum erro, nem nenhum impasse na questão! O que, por sua vez, nos leva a afirmar: sim, as representações obscuras são para Kant reais, e aquilo que prova a sua existência é não elas próprias, mas o efeito das mesmas, que podemos deduzir, e conhecer realmente, mesmo que delas não tenhamos consciência, e mesmo que nada saibamos ainda sobre um possível uso das mesmas.
Por outro lado, porém, esta primeira aproximação do plano cósmico ao das representações, obscuras e claras, não fica por aqui – pela analogia entre as estrelas e as representações obscuras que compõem a Via Láctea –, antes Kant insiste que nela prossigamos. Pois, aduz o filósofo logo após, a afinidade entre estas não se queda pelo exemplo da Via Láctea, antes é algo que pode ser visto também no todo do cosmos – aliás, um pouco como já em ANTH a Via Láctea era a imagem em pequeno de uma organização que necessariamente encontrava repercussão em muito maior escala. Assim, diz Kant, tal como o espaço cósmico, assim é justamente o campo das representações obscuras, A saber, tal como o primeiro, o campo das representações obscuras, também ele envolto em escuridão, é imenso, e, ao contrário do que dizia Baumgarten, não menor11, mas muito maior do que o das representações claras – neste caso, as estrelas que compõem, entre
saber, a de um quadro visto à distância, o qual, para além de formas grandes e visíveis, apresenta ainda “certas minudências” que o espectador “em semelhante distância não consegue distinguir devidamente nem umas das outras, nem entre si” (PA: 9) (quadro significando aqui um campo de representações da alma, formas grandes e visíveis as representações claras, e minudências as representações obscuras). Por outro lado, porém, creio ainda que uma tal imagem é por sua vez ela mesma reminiscente de uma outra, ainda mais anterior, lançada na discussão das representações obscuras por Locke e Leibniz – discussão essa que tratava a possibilidade de estar a causa das representações obscuras no nome das coisas (defendida por Locke), ou nas coisas elas mesmas (defendida por Leibniz) – e na qual a kantiana parece afinal poder radicar; a saber, o exemplo do retrato de César: um exemplo segundo o qual Locke afirma como uma ”peça de arte surpreendente” (W 1: 386), composta por “uma série de figuras estranhas e pouco comuns e que não possuem, no modo como estão posicionadas, uma ordem discernível” (id.), nada significa à distância; mas como esta pode, fruto da visão da mesma mediante um “espelho cilíndrico” (id. 387) – isto é, um espelho convexo como os utilizados nos microscópios ou nos telescópios –, adquirir ordem. Parece, pois, que esta mesma imagem das representações obscuras atravessa toda a singular história do tópico, e isso até ressurgir em Kant, como imagem consumada do problema das representações da alma.
11 “(…) complexus clararum CAMPUS CLARITATIS (lucis) est, comprehendens CAMPOS CONFUSIONIS, DISTINCTIONIS ADAEQUATIONIS, etc.” (it. meus (M: 119).
outras formações, a da Via Láctea: “Obscurarum perceptionum campus est amplissimus” (AA 15.2: 64)12. Ele é, aliás, tão grande como o firmamento, pois ambos são sem fim; e, diz Kant, tão notável é a similaridade de ambos, que, à semelhança do firmamento, se “pode comparar a alma humana com um grande mapa” onde “uma grande quantidade de locais não estão iluminados, e poucos estão iluminados” (AA 25.2: 868). A saber, “O não- iluminado é o campo das representações obscuras” (id.) – dos hiatos mediatamente conscientes entre as estrelas/representações claras, como o são os do espaço, que parece estar “completamente vazio e roubado de toda a matéria” (AA 1: 262); “os poucos lugares iluminados constituem as representações claras” (ibid.) – as estrelas –, “e entre as representações claras algumas sobressaem mediante a sua própria luz: estas são as representações distintas.” (AA 25.2: 868) – diríamos nós: por exemplo, a Via Láctea. E portanto, dir-se-ia, a sintonia entre imagens é de tal modo inequívoca no pensamento kantiano, e conflui de modo tão infalível tanto na anterior imagem da Via Láctea, como também no todo do campo de análise, que se poderia até afirmar que não há para Kant nenhuma diferença entre contemplar o firmamento e o mapa da alma humana, e isso não só ao nível do detalhe, mas também ao nível das suas maiores partes constituintes; que, assim sendo, a Via Láctea, representação clara em si, é composta por representações obscuras de que não nos apercebemos, e que porém conhecemos como reais – e que assim é com todas as outras formações do universo, e com o universo ele próprio; e que, por fim, há entre tais representações obscuras de todas estas espécies de formações, tal como entre as representações claras das mesmas, uma ligação, um elo por certo real – embora para já desconhecido.
Ora, com efeito, assim é – e o que se poderia afirmar, afirmamo-lo aqui deveras: todas as anteriores propostas têm validade no espírito de Kant; a saber, existe no pensamento de Kant uma analogia entre a sua visão do cosmos e a sua visão do mapa das representações da alma, entre esparsas constelações e os escassos aglomerados de representações claras que polvilham esse mapa, e portanto entre o fundo do mapa e a vasta imensidão do espaço sideral – e, mais importante ainda, também entre umas e outras. Mas, justamente, que assim seja – isto é, que haja uma tal secreta conexão: justamente isso é o aspecto que aqui tem de ser salientado, e que, malgrado não o podermos explicar ainda
12 “As representações obscuras constituem a maior parte das representações humanas” (AA 25.2: 868).
senão com os traços anteriormente mencionados, há que ver como fulcral no próprio modo kantiano de pensar a questão.
Pois, com efeito, se a Via Láctea é para Kant a um tempo o exemplo de uma construção estelar, encapsulando, ela mesma, in nuce, um oculto, mas harmonioso sistema de estrelas – apenas visíveis após um olhar outro que não o mero olhar humano –, e, por analogia, o exemplo de uma construção de representações claras, encapsulando também em si um oculto conjunto de representações obscuras – apenas visíveis do mesmo modo; então, por certo isso une já e muito ambos os quadrantes. Mas se, para além disto, como é o caso, Kant chega ao ponto de referir que a mesma analogia é extensível, por natural ampliação, ao próprio mapa cósmico, ao todo do cosmos, que da mesma maneira é imagem fiel do mapa das representações humanas, e este daquele, então, talvez seja de pensar que a Via Láctea, que, diz Kant, é no fundo o exemplo de um “plano principal” (AA 1: 252) de maior escala, é apenas a imagem de um todo, a saber, do cosmos – e que este, sendo imagem do mapa das representações, é então composto exactamente da mesma maneira que ela: por construções obscuras, ou, passo a expressão, por representações obscuras sobre as quais por certo se sustentam as formações claras que nele contemplamos, mas, mais importante ainda, por representações obscuras que trazem em si, in nuce, e ocultamente – tal como na Via Láctea – nova imagem, agora total, de uma harmonia, de um todo sistemático, sobre o qual as claras, sejam elas galáxias inteiras, ou meras ocorrências naturais, vêm a repousar, e de que estas são apenas imagem. Pois, lembramos, esta imagem de unidade cósmica tem de se repercutir ascendentemente no todo do universo, mas ela tem igual aplicação no pormenor, na própria natureza (cf. AA 1: 255): e, portanto, sempre reitera Kant, ela tem de ser tão depressa visível no cosmos, como nas acções humanas, no natural modo de governar dos seres humanos, no modo de proceder da própria natureza em relação aos mesmos, e também, como aqui, no modo de representar destes. E portanto, também aqui, no mapa das representações da alma, qualquer conjunto de representações claras, que são por certo representações visíveis: ele tem de ser fundado invariavelmente por representações obscuras, e se assim é, então as representações claras são sempre apenas resultado de uma harmonia, uma concatenação invisível ao olho nu, presente não nelas, mas nas representações obscuras elas próprias, e formada pela relação das representações obscuras entre si, e pela relação das mesmas com as claras. Perceber isto, é começar a perceber a secreta conexão que Kant vê entre representações
obscuras e claras, uma nova relação das representações obscuras com a consciência, e todo um novo estatuto do tópico.
Ora, se assim é, então aqui estão em causa por certo os primeiros traços de uma diferente, porque disruptora visão das representações obscuras – e isto e inegável e visível, e vê-lo-emos melhor na Secção III deste texto. Mas, importa aqui salientar, o cerne da tomada de posição kantiana não é exactamente isto. Pois, parece dizer Kant, este avanço na questão não é adquirido apenas vendo nas representações obscuras outras funções, outras potencialidades, ou até um seu maior alcance – o que sempre seria possível por outros prismas; ou antes, ele pressupõe tudo isto, mas não é isto que o afiança. O que está aqui verdadeiramente em causa para Kant, aquilo que Kant assim põe em marcha, e é aqui singular na posição do filósofo, é, isso sim, a inauguração de uma clara, e muito fulcral mudança no próprio prisma de abordagem à questão das representações obscuras. A saber, uma tal que, ao invés de desconsiderar, negar ou até nada ver nas representações obscuras que não mera envolvência das claras – e isso devido à indeterminada posição das mesmas em relação à consciência do homem –, antes usa essa mesma indeterminação, a de uma consciência e um conhecimento mediatos das representações obscuras, não como uma insuficiência, mas como o único prisma pelo qual se pode afirmar a existência de um plano, uma coerência, uma lógica outras que não aquelas que vemos, ou de que temos consciência, no processo imaginativo-representacional do homem, e portanto assim ver nas representações obscuras, na própria obscuridade e na sua inconsciência ou irracionalidade próprias, todo um substrato da consciência humana que é afinal de grande importância para a mesma, e também para o estudo da representatividade da mesma – e tudo isto, claro está, seguindo preceitos cósmicos, leis que, segundo Kant, a natureza estendeu sobre a Terra para que fossem aplicadas a todos os quadrantes da vida humana.
Assim, e para traduzir o que precedeu – sempre terá sido desejo e ambição do homem observar o firmamento, ou a Via Láctea, assim como o imenso campo das representações humanas, e ver nestes a forma final dos mesmos; e, a este seu modo de ver as coisas, por certo esta forma não lhe pode ser dada pela escuridão, o vazio, o espaço que compõe ambos estes campos imensos, antes tem de ser, e só pode ser adquirida mediante consideração da luz, do espaço realmente preenchido por essa luz, e pelos corpos celestes, e as representações em geral – no caso, as estrelas, ou composições estelares – como a Via Láctea –, ou as representações claras ou distintas do nosso conhecimento, mediante as
quais justamente podemos conhecer algo. Pois assim, diria Kant, procede naturalmente o olhar humano, e com ele o comum pensamento humano, e a própria filosofia: procurando subsumir imediatamente do individual o geral, ou do geral o individual, e vendo nesse plano de consideração das coisas apenas e só as próprias coisas – as estrelas, as representações claras, elementos para si cognoscíveis, inequívocos e, dir-se-ia, representados, antropomorfizados, humanizados à imagem do observador – os quais, justamente postos em concatenação uns com os outros, procurarão formar a imagem de um sistema, o qual, por sua vez, será imagem de um sistema ainda maior, e este de um ainda maior, até que entre o indivíduo e o universo haja como que uma possível consonância. O filósofo Kant, aliás, não seria disto excepção, e, ora por necessidade, ora por conveniência, o pensamento deste não raras vezes encarnaria necessariamente este modo de pensar. Mas, afirmamos nós, o antropólogo Kant pensa a questão, ou os dois vértices desta mesma analogia, de modo diferente do que o filósofo Kant. Pois, para aquele, segundo parece agora, a irrealidade das representações obscuras é já por si um não-tema; para ele, as representações obscuras não são um mero tópico da teoria da consciência (como o eram para Leibniz, Locke, ou até Rüdiger ou Knutzen); e portanto, para ele, o tópico das representações obscuras, embora um tópico da filosofia do conhecimento, e também da estética, não recai sob o amplo tecto da metafísica (como acontecia com Baumgarten, e com outros autores). Para Kant, ao invés, o tópico das representações obscuras é um tema de antropologia – e, mais importante ainda, de uma antropologia pragmática –, pois que o tema se inscreve directamente na ciência que considera o homem no complexo diálogo entre o mundo (Ich als Mensch) e a alma (Ich als Seele); e da forma aferida dessa relação alma-mundo – a qual, vemos já, está dependente das representações obscuras – há a retirar não só conhecimentos da alma humana, mas também das diferentes aplicações da alma no mundo (como nas representações claras), e ensinamentos de como o homem pode deve proceder na sua conduta externa. E, portanto, as representações obscuras, justamente enquanto dimensão inconsciente do conhecimento humano que porém tem repercussão numa esfera exterior e consciente – no conhecer, no julgar, no dizer o mundo – têm de ser tomadas não só como um dos mais importantes tópicos da teoria da consciência, mas também como um tema de importância por direito próprio na teoria do conhecimento.
Portanto, concluímos, a Kant interessa por certo a Via Láctea, como lhe interessam os construtos de representações claras e distintas que movem o pensar humano, e consigo a
metafísica, a filosofia; a ele interessam-lhe pois também as estrelas que compõem a Via Láctea e outras constelações que tais, e por isso também as representações claras – os poucos pontos claros que iluminam o vasto e obscuro mapa da alma humana; pois sem eles, está claro, também a obscuridade nada seria senão ainda e sempre ela própria, revolvendo sobre si própria em eterno auto-anulamento. Mas, diz Kant já em ANTH, mais do que os corpos celestes em si, mais do que os próprios construtos das representações humanas, numa palavra, mais do que as configurações que estas possam ostentar em tais mapas, o que interessa é aqui adoptar um outro prisma, e justamente pensar o problema por um prisma pragmático, a saber, inquirindo antes a contínua influência que insufla o espaço vazio, e une tais elementos individuais sob a forma de construções, e estas sob a forma de configurações de diversas construções – ela que é como uma energia oculta que perpassa esses corpos, e esses sistemas, unindo-os e fazendo do individual universal, e do universal individual –, e a partir daí tentar extrair conclusões gerais sobre o tópico das representações obscuras. E portanto, parece sugerir Kant, se o campo das representações obscuras aparenta ser justamente como o mapa astral, e se os elementos deste último parecem estar em igual relação como o estão os daquele, então talvez seja de pensar que também aqui, por extensão da analogia, se poderá dar uma revolução como aquela por Kant operada na cosmologia; e então, será de crer que o que importa a Kant analisar e estudar no mapa da alma humana será não esses poucos pontos iluminados, os quais são já de si visíveis, e alvo de suficiente estudo pela filosofia, a metafísica, até a ciência da linguagem, mas justamente o que está em torno destes; a saber, os pontos obscuros, que por certo, até pela sua monocromia, parecerão uma eterna imensidão negativa, mas que assim tomados não são de todo nada, nem sequer são menores ou de mais despicienda importância do que os pontos claros, antes veiculam, pelo menos ao singular olhar por Kant aqui adoptado, toda uma outra possibilidade de formações entre as representações (como se, ao invés de olhar as estrelas, ou as representações das coisas, antes devêssemos fitar o que se passa por detrás delas, e assim discernir formações alternativas, formadas pelas silhuetas daquelas que temos como existentes).
O foco, e principal campo de aplicação desta mesma revolução por Kant proposta reconduz-nos uma vez mais até às Lições de Antropologia; onde, em consonância com o
que dissemos, o objecto de estudo é não as representações claras, não esses corpos estelares do processo de representatividade humana, os quais podem ser vistos “a olho nu” (AA 25.1: 479), mas sim o vasto campo das representações obscuras, o qual só por si tem de ser visto por um outro prisma – dir-se-ia, um mais próximo, e mais bem aferidor das potencialidades destas –, mediante um olhar microscópico, ou telescópico. Só por ele, é bom de ver, viria Kant a responder plenamente às anteriores perguntas por si feitas; e, portanto, também só por ele viremos nós a responder às nossas, a saber, 1) a posição e/ou papel das representações obscuras face à consciência humana (a resolver em III. 1 e III.2); 2) a relação entre as inferiores representações obscuras e as superiores representações claras (a resolver em III. 1 e III.2), e, estritamente dependente destas, 3) os possíveis efeitos ulteriores das representações obscuras na alma humana, e subsequente estatuto das mesmas entre os elementos da faculdade imaginante do homem (a resolver em
III. 2).
As representações obscuras, disse-se-já – e Kant não o desmente –, distinguem-se por não nos serem delas conhecidas bastas propriedades, pelo menos, tantas quantas aquelas que as tornariam claras, ou até distintas. Significa isto que, pelas suas “qvalitates occultas” (AA 15.2: 65), elas são indistintas – e justamente essa indistinção, ao convergir com a indistinção de tantas outras representações esquecidas, ou simplesmente desconhecidas, forma porém um todo, o já mencionado mapa, ou o firmamento obscurecido da alma humana; daí que Kant diga, como no caso da Via Láctea, que ainda que delas não tenhamos consciência – pela sua indistinção –, se possa dizer não obstante que sabemos que as temos – porque essa indistinção é total, e alberga a maior parte do mapa da alma humana –, e que portanto o que tivemos do objecto foi uma representação obscura (uma consciência mediata).Talvez devido a essa concepção, de influência baumgartneriana, do conjunto das representações obscuras como “fundus animae” – isto é, como lastro inconsciente da alma humana – Kant diz até que, uma vez que “as representações obscuras constituem a maior parte das representações humanas” (AA 25.2: 868), e, dir-se-ia, preenchem uniformemente o mapa da alma, então isso significa que, reciprocamente, “a alma humana age em grande parte na obscuridade” (AA 25.1: 479), e isso, dir-se-ia, em preparação – ou ainda melhor: em formação do que virá a surgir na luz, e que
posteriormente, assentando sobre o fundo da alma, vem a ganhar forma como conhecimento humano.
Acontece, porém, que este todo uniforme, que vimos já assemelhar-se, e ter uma sua possível forma originária no firmamento – ele não é porém, na visão de Kant, inteiramente uniforme; aliás, tal como o próprio vazio entre as estrelas que compõem a Via Láctea, diz Kant em ANTH, não é apenas vazio enquanto tal, antes é de pensar que ele foi outrora pleno (cf. AA 1: 262), e apenas mais tarde se cindiu de si próprio. Pois, diz Kant, este mapa da alma humana, ele é o mapa das representações humanas – e enquanto tal, ele está cheio de todas as representações possíveis, e isso, quer por aquelas que já vieram à claridade (as claras e as distintas), quer por aquelas que ainda não vieram a essa condição (as obscuras); mas o facto de que as duas primeiras se apresentem naturalmente enquanto entidades individuais – em função do seu brilho –, não significa que também o campo das representações obscuras, tal como o firmamento, ou o ar que aí rege (cf. AA 25.2: 1221), não seja composto por direito próprio de iguais entidades individuais, representações, como partículas que, embora ocultas, embora de consciência mediata, numa palavra, embora obscuras, compõem porém um todo de representações individuais, cada uma das quais distinta, só que distinta em relação às suas semelhantes, e não em relação às claras. Isto, creio, nos é dito antes de mais pela mudança de prisma assim intentada por Kant na abordagem ao tópico das representações obscuras.
Ora, esta incontornável divergência entre ser e ser-vista da representação obscura, que é afinal todo o problema no tópico, tem porém a boa consequência de nos permitir começar a ver o problema pelo novo prisma de Kant: pois, com efeito, há aqui uma evidente incongruência entre ser e (não-)ser, que no fundo é a mesma que coloca o tópico das representações obscuras entre obscuridade e claridade, inferioridade e superioridade, consciência e inconsciência. A saber, olhando para a representação clara das coisas, quer seja esta o que é, ou uma estrela, ou toda uma constelação, não só não se diria, como efectivamente não temos consciência do que lhe subjaz; pois apenas olhando introspectivamente, em detalhe, nos apercebemos de que estas são compostas, ou formadas, por representações obscuras. Mas – diz Kant – elas são-no não obstante; e tanto são, aduz Kant, que não há por certo uma representação clara à qual não subjaza uma obscura, pois que das coisas poderemos até ter um conhecimento distinto, mas nunca um conhecimento total. E se assim é, então isso significa por certo que, para Kant, há entre
representações obscuras e claras mais do que uma concorrência visível-invisível, mais do que uma fundamentação de uma pela outra, onde uma sempre é vista, e a outra sempre omitida; a saber, tem de existir entre ambas as representações, em primeiro lugar, uma incontornável relação de proximidade, até de simultaneidade, pela razão atrás aduzida; mas, para além disso, tem de haver nesta relação não uma mera divisão cromática, uma distinção de consciência, uma diferenciação de superioridade ou subalternância entre obscuridade e clareza – que no fundo são os vectores por que se regera até então a questão
–; numa palavra, não mera cisão, mas antes uma relação de íntima reciprocidade, e até de mútua legitimação, entre representações obscuras e representações claras: reciprocidade porque, se vemos a representação obscura na clara, sem porém a vermos; se sabemos que a temos, ou que ela existe, sem porém dela termos consciência, então, ao mesmo tempo, há que considerar que também a representação clara tem de ter em si algo da obscura, ainda que o não ostente, ou não no-lo torne patente; pois se a representação obscura compõe o que da clara se nos afigura, então a clara tem de ser composta pela obscura, a fim de assim se nos afigurar – um pouco como no exemplo de ANTH; e legitimação porque, se justamente uma tem em si algo da outra, e vice-versa – e se isto parece ser o caso com todas as representações da alma humana – então isso significa que nem a representação clara pode vir a ser clara sem a obscura, nem a obscura tem outra razão de ser que não dar azo à clara; isto é, que há entre ambas, afinal, uma relação de correspondência e de inter-dependência, a qual, enfim, parece começar a lançar os fundamentos de um reposicionamento do tópico das representações obscuras no seio da ciência e do estudo em geral do homem, e por conseguinte, esbater as diferenças cromáticas e/ou de ordenação na consciência que até então sempre lhe vinham sendo assacadas.
Mas, aduzimos ainda nós, de modo algum a reflexão kantiana sobre este tópico fica por aqui, pela reciprocação e legitimação, numa palavra, pela mera identificação de representações obscuras e claras; há ainda um outro relevo oculto nas primeiras, um que Kant traz à voz nas Lições sobre Antropologia, que é de matriz, mas não de aplicação baumgartneriana, e que, vê-lo-emos, é o cerne da sua visão sobre o tópico. Pois se se pensar que há em todas as representações, até naquelas que julgamos mais distintas, representações obscuras – simplesmente porque as representações obscuras estão por todo o lado, e elas são inevitáveis, como inevitável é o imenso fundo da alma, ou o firmamento; que, embora disto não estejamos conscientes, sabemo-lo porém, e vemo-las até, apenas não
enquanto tal (como no exemplo da Via Láctea); e que, assim sendo, tem de haver entre as representações claras e as obscuras uma qualquer ligação estreita; se assim se pensar, dizia, pensamos certamente a par do rumo do pensamento de Kant sobre o tópico. Mas, convenhamos, se assim é, então até este ponto não pensa ainda Kant diferentemente de Baumgarten, que na sua Metafísica (1739) até este ponto concorda com isto, e que nisto por certo terá guiado a reflexão kantiana. Pois também para Baumgarten, as representações obscuras são o fundo da alma, e portanto, só por isso, estão já em relação com as claras; também para Baumgarten as representações obscuras são de índole sensível (estão na “sensação imediata” (AA 25.2: 868)), e são-no até que, intelectualizando-se, a representação obscura venha a ser clara – como se o fundo estivesse, pois, como invólucro do seu conteúdo; e também para Baumgarten, tem de haver ulteriormente, por todas estas razões, um fundo de verdade – a verdade das representações claras – nas representações obscuras, o qual vem à luz aquando da sua intelectualização. Ora, Kant, vimo-lo já, admite tudo isto sem reservas. E Kant admite até que as representações obscuras podem e devem vir a ser claras, pois nelas reside de facto verdade sobre as claras; tanto assim que esse ofício, e a revelação de tal verdade sensível, deve fazê-lo seu aliás o filósofo13. Ao invés porém do Baumgarten da Metafísica – e aqui reside o ponto em que ambas as teorias sobre o tópico se separam –, Kant não requer porém das representações obscuras que elas sejam trazidas à claridade, para que delas possa irradiar claridade; isto é, embora seja dever do filósofo trazê-las à claridade, esse trazer à claridade não consiste, como consiste para Baumgarten, em que elas devam deixar de ser obscuras para virem a ser claras. Bem pelo contrário, há nas representações obscuras uma dignidade própria, uma explicação, em gérmen, e por conseguinte uma prefiguração das claras; e portanto, trazer à claridade implica para Kant, isso sim, um trazer à claridade essa sua relevância maior, a sua importância oculta no seio das claras.
Assim, note-se, as representações obscuras subjazem para Kant às claras não porque as claras tenham de ter sido outrora obscuras, ou porque as obscuras tenham de estar invariavelmente destinadas a resultar em claras. Não há, para Kant, uma tão
13 “Desenvolver estas razões obscuras é o ofício do filósofo, mediante o que não raras vezes admiramos a excelência da multifacetada disposição do homem” (AA 25.2: 871). Sobre isto atalha ainda Kant, numa outra lição: “Pois todas as proposições da filosofia são consabidas, mas apenas em representações obscuras que são tornadas claras e distintas mediante a filosofia, de tal modo que [todos] se tornam conscientes das mesmas e, por assim dizer, delas se recordam, na medida em que sentem que estas são as mesmas proposições de que previamente, embora indistintamente, tomaram consciência” (AA 25.2: 1222).
sistemática relação de causa e efeito entre ambas, nem assim se explicam umas pelas outras. Ao invés, a anteriormente mencionada ligação íntima entre representações obscuras e representações claras vai muito para além disto, e isso porque, diz Kant, nas representações obscuras sempre está, em "embrião" (AA 25.2: 868), numa forma sensível (e também aqui, diria Baumgarten, eminentemente poética14), os conhecimentos expressos nas claras – e isso sim é sem excepção, e pode ser afirmado sem reservas.
Assim, “a alma humana age em grande parte na obscuridade” (AA 25.1: 479), e, com efeito, o campo das representações obscuras excede em muito o tamanho do das claras (cf. AA 25.2: 868); mas, talvez por isso mesmo, há entre as representações obscuras, quer no seu conjunto, quer individualmente, mecanismos, factores de interligação obscuros, entre si e com as representações claras – um “secreto procedimento da alma dos homens” (AA 25.1: 482) –, o que faz com que nas representações obscuras esteja sempre não só a verdadeira explicação para a existência das representações claras, mas também e já desde logo prevista a preparação das representações, das proposições, dos pensamentos claros mediante os quais procede o conhecimento humano – e por aqui sim, diria Kant, se começa a discernir a real importância das representações obscuras. Isto é, nas representações obscuras se prepara, numa palavra só, os juízos em geral do homem – todos eles!15. E desta singular, não comum causalidade em que as representações obscuras parecem prever as acções, as decisões – os juízos – do homem, dá Kant bastos exemplos, desde o “músico que fantasia” (AA 25.1: 479), e que, inconscientemente, produz sons “em cada dedo que usa” (id.: 480); o homem a quem é pedido que discorra sobre um assunto, e que, não podendo, lhe é dado um exemplo familiar, e enfim o logra (cf. id.); ou a pessoa que sobe a uma torre, e a quem é dado experienciar uma vertigem (cf. AA 25.2: 870; 1222) 16 . Exemplos que, malgrado a sua diversidade, apenas comprovam porém uma coisa: que, ao contrário – ou antes, muito para além – do que se pensava até então, as representações obscuras têm influência directa, porque preparatória, porque destinatória, no pensar e no
14 Por aqui se nota, pois, como a opinião do Baumgarten da Metafísica influenciaria por certo a formação originária do seu novo prisma sobre as representações obscuras; mas como seria, deveras decisivamente, a opinião que das representações obscuras tem o Baumgarten da Estética, a guiar a reflexão kantiana sobre o tópico, e aí sim, a influenciá-la até às suas últimas consequências.
15 “Às representações obscuras pertencem também os juízos prévios. Antes de proferir um juízo que é determinado, o homem profere já na obscuridade um juízo prévio. Este guia-o a procurar por algo. (...) Por conseguinte, qualquer juízo determinado tem um juízo prévio. Por isso é muito importante, o estudo do ânimo com respeito ao secreto procedimento da alma dos homens.” (AA 25.1: 481)
16 Nestes exemplos, aliás, distingue Kant amiúde entre jogarmos nós com as representações obscuras, ou, como é aqui o caso, sermos nós o jogo das representações obscuras (cf. AA 25.2: 869-870; 1222-1223).
agir humanos, na faculdade de julgar humana. Pois, conclui Kant, “o que é ajuizado universalmente mediante o são entendimento não deve ser tomado por absurdo, por não ter fundamento; o fundamento está na razão, pois, de outro modo, os homens não poderiam ajuizar universalmente. Contudo, o fundamento está ainda na obscuridade, e esse, há que tentar indicá-lo” (AA 25.1: 480).
Por fim, e de igual modo, poder-se-á pensar com Kant, em analogia com o julgar humano, também as representações dos objectos desses mesmos juízos – o que, no fundo, é apenas o desenlace natural desta questão. Assim, porque esta preparação obscura acontece – aqui sim – sempre em relação às representações claras, e porque nas representações obscuras está afinal o embrião, uma pré-forma, “um pressentimento e premonição” (AA 25.2: 870) do conhecimento nas claras, isto significa então que nas representações obscuras jaz para Kant não só o germe das representações claras existentes, mas também o das representações claras que ainda não existem, mas virão a ser17 – no fundo, o germe de todos os conhecimentos, tal como, anteriormente, o germe de todos os juízos possíveis ao alcance do homem; daí, aliás, se explicando a inerente preclaridade das representações obscuras!
Assim, se é próprio das representações obscuras estarem nas claras, mas serem para nós ainda assim inconscientes, então isto significa duas coisas:
primeiro, que justamente apenas se carece de um outro prisma na análise às representações obscuras para que se perceba que, nas representações obscuras, na própria obscuridade, estão já preparados não só todas as representações, mas também todos os pensamentos filosóficos18 – numa palavra, todos os conhecimentos, toda a claridade, dos quais as representações obscuras são mola de propulsão19 – e isto sim, é o que Kant quer dizer quando afirma que “o maior tesouro em conhecimentos [da alma] reside na obscuridade” (AA 25.1: 479);
segundo, que, se assim é, e se as representações obscuras preparam sem excepção as claras, então isso pressupõe que o homem traga já consigo, desde sempre, em potência, todo o conhecimento que lhe é dado adquirir enquanto homem 20 : “Tudo o que o
17 “Estas [as representações obscuras] são também o fundamento para as representações claras, e para todas as descobertas e invenções” (AA 25.2: 1221).
18 “Uma grande parte dos pensamentos filosóficos está já preparada na escuridão” (AA 25.1: 479).
19 “As representações obscuras contêm a mola secreta daquilo que ocorre na claridade” (AA 25.1: 479).
20 Sim, pois, diz Kant, o que está em questão não é um “incremento de conhecimentos”, mas sim a “distinção dos mesmos” (AA 25.2: 869).
microscópio e o telescópio ainda virão a descobrir, está já contido na representação obscura do homem” (AA 25.2: 869). A questão, conclui Kant, é que, a julgar pelo mapa das representações da alma, o homem pouco descobriu até hoje21; e portanto, o grande desígnio deste estará em conhecer a importância oculta das representações obscuras, para o que, segundo parece, ele terá usar de uma outra gadanha que não a comum (outra que não justamente a razão), e saber quais representações obscuras escolher para justamente comprovar este efeito22; pois, com efeito, “há muitas representações de que não mais nos tornaríamos conscientes na nossa vida, se não surgisse uma ocasião que nos relembrasse daquilo que antes esteve já em embrião em nós” (id.: 868). Mas porque justamente “quando o homem começa a expandir o conhecimento, e sabe em que lugar deve procurar a verdade, logo surge um ensejo mediante o qual o que nele residia no escuro é transposto em claridade.” (id.: 870-871) então, o cerne da questão está justamente em examinar a “ocasião” (id.: 868), que é por certo muito restrita e esporádica 23 , e dela, e das representações obscuras, extrair a verdade que nelas se oculta – pois que isso sempre funcionará em favor de uma mais salutar proporção entre faculdades, e aí se joga, em boa verdade, o bom ou mau destino do progresso do conhecimento humano.
Posto o que precedeu, tentemos pois responder às nossas próprias três perguntas, esperando que por elas se possa apresentar definitivamente a visão do novo conceito kantiano de representações obscuras.
21 “Aquilo que até hoje foi desenvolvido, é infinitamente pouco em relação àquilo que se poderia ainda desenvolver. Por conseguinte, todos os metafísicos, moralistas, têm de contribuir para o esclarecimento das representações obscuras nos homens, pois trata-se aí do conceito dos homens, que elas trazem em si” (AA 25.2: 871).
22 Pois se o homem as não traz à efectividade enquanto tal, e não desvela todas as representações obscuras que estão no seu cérebro, explica Kant, isso deve-se como que a uma natural, mas muito necessária economia da Providência, que cuida que nenhum homem algum dia venha a ter posse de todo o conhecimento ao seu alcance, o que por certo o assoberbaria: “Se de uma vez se tomasse consciência de tudo o que foi descoberto mediante o microscópio, e dos objectos que mediante ele nunca virão a ser descobertos, isso seria uma colossal quantidade de coisas” (AA 25.2: 869). “Se um homem pudesse tornar-se consciente de todas as representações que residem realmente no seu ânimo, as quais porém só ocasionalmente emergem, ele tomar- se-ia por uma espécie de divindade, e quedar-se-ia assombrado perante o seu próprio espírito” (AA 25.2: 868) – daí que, conclui Kant, “A natureza tem certos mistérios que sempre quer ver encobertos mediante representações obscuras” (AA 25.2: 1223).
23 Sobre isto, diz Kant que “a faculdade de representação destas representações é tão restrita, que elas só vêm [à luz do] dia isoladamente, e em certas ocasiões.” (AA 25.2: 1221) Pois, diz o filósofo logo após, ao homem que está perante as representações obscuras, “Acontece-lhe o mesmo, como se estivesse perante uma floresta e não conseguisse ver as árvores” (id.).
Assim, quanto a 1), 2) e 3), a saber, a posição e/ou papel das representações obscuras na consciência humana, a subsequente relação entre as inferiores representações obscuras e as superiores representações claras, e, por fim, os possíveis efeitos ulteriores das representações obscuras na alma humana, e subsequente estatuto das mesmas entre os elementos da faculdade imaginante do homem, esta questão, ou questões, estão todas elas pendentes do prisma por que são abordadas: ou se pelo prisma da metafísica – o qual, por ter de estar ancorado na compreensão das claras, sempre vê a importância das obscuras como secundária, ou então desconsidera-a por completo em relação às claras –, ou se pelo presente prisma de uma antropologia pragmática. Aqui, pois, como no estudo de outros tópicos estético-antropológicos, adopta Kant este último prisma, e separa a antropologia, e por isso a estética, da metafísica, e com isso o tópico em causa desta; e, ao fazê-lo, Kant cinde-se de toda uma tradição de ver na obscuridade negatividade, e as representações obscuras como produto de algo, isto é, como tema independente e aparentemente órfão quer pelo seu estilo, quer pelo seu conteúdo, em relação às representações claras, e antes as pensa, mais longe ainda do que Baumgarten, como elas mesmas pre-figuradoras das representações claras; e isto não como sua necessidade, como sua obrigação servil, mas como expressão puramente subjectiva da criação, ou imaginação humana; ou não fossem “as representações obscuras impregnadas das claras” (AA 15.2: 65), e não estivessem portanto as representações obscuras em relação às claras, diz Kant, como o estava Sócrates para o seu auditório: como “parteira” (Hebamme (AA 25.2: 870)) das mesmas. A saber, segundo as via Kant – num respeito pragmático –, as representações obscuras são de facto
o fundo da alma; mas, com isto, significa Kant algo mais, nomeadamente, que as representações obscuras são como que a primeiríssima, pois mais sensível, instância da alma na sua relação com o mundo. Elas são a fina película representacional que separa o Eu enquanto alma, do Eu enquanto mundo: pois elas são aquilo que fica em obscuridade da relação da alma com este – o último resquício do mundo no Eu –, mas por isso mesmo, antecâmara para o processo imaginativo-representacional, e subsequente aplicação do Eu enquanto mundo, no Eu enquanto alma; e daí não só a sua infinita grandeza sensível e obscura, mas também a sua infinita aplicação no ânimo humano, a ponto de, como vimos, nada aqui se dar sem a interferência invisível das representações obscuras.
Ora, por fim, o que isto significa é que:
À concepção baumgartneriana de representações obscuras como fundo da alma, junta Kant uma outra que vê as mesmas como fundo criativo da alma, e portanto impulsionador – mas, como vimos, apenas selectivamente impulsionador – das representações que formam esta última; justamente, como se, já atrás pressentíamos, a massa obscura que gravita em torno de umas poucas estrelas no mapa da alma humana, ao invés de receber destas a sua forma, enquanto produto morto, antes concedesse a estas a sua própria forma, lhes desse até a luz que é a delas, tendo de ser vista aqui antes como uma força activa, omnipresente, que é antes de o ser, e porventura depois de o ser, e de que a representatividade humana, as representações claras, dependem.
Por outro lado, se assim é, e se as representações obscuras são charneira da alma humana, isto é, se nelas tem de estar algo do mundo, se nelas tem de estar esse novo componente sensível, e tudo isso poderá vir à luz da representação, pela primeira vez, na intelectualidade, então, isso significa que nelas, nas representações obscuras, terá de se transmitir um outro conteúdo, uma outra verdade, desconhecidos de quem as preferir omitir, ou de quem as não vir por um prisma pragmático – e esta é uma verdade não apenas sobre as coisas que passam pela consciência (como vimos em III.1)), mas sobre o próprio modo de proceder da própria consciência do Eu!
Assim, se, neste prisma, o homem é visto nos seus fenómenos, nas suas acções e omissões, e isto, diz Kant, de tal modo que estes, e os tópicos tratados numa antropologia num enfoque pragmático, possam dar origem a princípios científicos, então, disto não pode constituir excepção, pelos traços acima descritos, o tópico das representações obscuras, tópico por excelência de uma antropologia pragmática, cuja forma subjectiva e criativa justamente se repercute não só na das representações claras, como, por conseguinte, mediante a inconsciente consciência por elas promovida, também nas superiores esferas do ânimo, o entendimento e a razão. E por isso perguntamos: como se repercute ela ulteriormente, e qual é o seu contributo para a iluminação do espírito humano?
A resposta é simples. As representações obscuras estão na origem, e são parte integrante, do processo imaginativo do homem – e, porque o são, as representações obscuras têm de interagir naturalmente, mediante a sua sensibilidade, com as restantes faculdades imaginantes do Eu, tanto as inferiores – a sensibilidade, a memória, a faculdade de imaginação, o génio – como as superiores – a faculdade de julgar, o entendimento e a razão. E que o fazem, é prova aliás o facto de que, para Kant, as representações obscuras
regem já da obscuridade os juízos e a representatividade humanas. Mas, assim sendo – e por esta mesma razão –, isto significa algo mais com respeito à relevância do tópico: isto significa, isso sim, que, aquando da sua intelectualização, as representações obscuras não só põem em movimento outras faculdades, como que por isso mesmo elas têm ainda de revelar ao entendimento, pela sua própria clarificação, leis fundamentais da faculdade imaginativa humana e, ulteriormente, com isto tecer-lhe leis básicas do seu próprio funcionamento – leis que ele tem de aprender a reconhecer como suas próprias, e por conseguinte como úteis ao seu desenvolvimento, pois que sem elas não pode ele passar. Pois – para chamar as coisas pelos nomes – a “ocasião” (AA 25.2: 868) das representações obscuras: ela é para Kant, por excelência, a ocasião da poesia: isto é, do jogo supremo da representatividade humana 24 , o jogo da faculdade de imaginação sob regras do entendimento (cf. AA 7: 246), do trazer do poético sensível ao poético intelectual (sem o que o entendimento não viveria25), mediante o que as representações poéticas colocam em movimento harmonioso, e proporcional, todas as faculdades do ânimo, tanto as inferiores como as superiores – e que, sempre diz Kant, é ulteriormente muito benéfico não só para o ânimo humano, pois que o vivifica e estimula, mas também para o entendimento, e até para a filosofia e o conhecimento científico em geral. E portanto, dir-se-ia, as representações obscuras têm de ter lugar de especial relevo no seio da faculdade imaginante do homem; mas não tanto devido à posição central das mesmas nesta, mas porque a sua clarificação, que é aliás resultado de tal posição, se repercute claramente – e beneficamente – no espírito humano. Sim, pois a tão difícil, e tão rara “ocasião” (AA 25.2: 868) das representações obscuras é sobremaneira vantajosa, e o que ela tem por bom é que, justamente, ao surgir, ela instrui-nos não só com a verdade sobre os objectos, mas também e sobretudo com leis ocultas do nosso próprio viver, do nosso sentir e do nosso reflectir; em suma, leis do nosso ajuizar e representar em geral – o que é feito mediante o trazer à consciência de verdades que vivem em inconsciência, mas que sempre trouxemos em nós, para as quais as próprias representações obscuras nos prepararam, e por fim trazem elas
24 “Todas as espécies de metáforas são representações sensíveis” (AA 25.2: 1224).
25 Passos das lições há, aliás, em que Kant afirma que o ânimo humano sempre sobreviveria sem o entendimento, mas nunca sem a sensibilidade – e que por isso, a sensibilidade é ainda mais importante do que o entendimento. Sobre isto, cf. AA 25.2: 1230; 1232.
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26 Sobre o prazer suscitado pela clarificação das representações obscuras – que, uma vez mais, é em tudo semelhante ao prazer que Kant discerne na clarificação da harmonia interna que rege o cosmos –, cf. AA 25.2: 1223; AA 15.2: 66.