CON-TEXTOS KANTIANOS.
International Journal of Philosophy N.o 1, Junio 2015, pp. 280-286
ISSN: 2386-7655
doi: 10.5281/zenodo.18532
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doi: 10.5281/zenodo.18532
Dignidade humana: valor absoluto e intrínseco?
Human Dignity: absolute and intrinsic value?
ROBINSON DOS SANTOS∗
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Resenha: Sensen, O., Kant on Human Dignity. De Gruyter, Berlin/Boston, 2011, 230 pp. ISBN: 978-3-11-026716-7
Os conceitos dignidade (Würde) e dignidade humana (Menschenwürde) são empregados amplamente, nas mais diversas áreas do conhecimento, mas com muito mais frequência em áreas como a filosofia moral e política, na filosofia do direito, na bioética etc. quando se trata de justificar ou aplicar princípios, assim como fundamentar filosoficamente certos direitos e determinados deveres morais1. Para isso, com grande frequência, recorre-se à
filosofia prática de Kant. No âmbito da filosofia não há dúvidas de que Kant é uma das referências modernas mais importantes no que se refere à concepção de dignidade. Se, por um lado, a dignidade é lembrada como uma característica distintiva que indica a posição do ser humano no reino da natureza, isto é, distingue-o dos demais seres, tomando por base
∗ Professor Doutor do Departamento de Filosofia da UFPel (Brasil). E-mail de contato: dossantosrobinson@gmail.com .
1 O primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948, da Organização das Nações Unidas, por exemplo, proclama: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. A constituição da República Alemã de 23 de maio de 1949 expressa: “A dignidade do homem é intocável. Protegê-la e respeitá-la é dever de todo o poder público”.
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certas capacidades e predisposições que ele possui, por outro lado, ela impõe que se o trate de um modo condizente com sua posição e condição também no âmbito da sociedade civil. No entanto, não é tão evidente, como pode parecer à primeira vista, o que este termo significa no contexto da filosofia moral kantiana.
O livro Kant on Human Dignity de Oliver Sensen, professor e pesquisador na Universidade de Tulane (New Orleans) é, possivelmente, um dos mais importantes estudos dedicados ao tema da dignidade na literatura recente da Kant-Forschung, cuja recepção propiciou um amplo debate em torno de questões de ética normativa e questões de metaética relacionadas ao pensamento de Kant. O livro está composto de duas partes: Parte I – Respeito pelos outros, que está subdividida em três capítulos: 1. Concepção kantiana do valor; 2. O valor da humanidade e 3. A fórmula da humanidade de Kant. A Parte II – A concepção de Kant sobre dignidade se divide em dois capítulos: 4. Três paradigmas sobre dignidade e 5. A concepção de dignidade humana de Kant.
Sensen parte precisamente da constatação do fato que o conceito de dignidade, tal como apresentado por Kant, é utilizado frequentemente de modo apressado, sem a devida atenção ao problema de sua justificação. Isso não é simples coincidência. O conceito de dignidade aparece por mais de cem vezes ao longo da obra de Kant, considerando-se tanto as obras sistemáticas publicadas, quanto as reflexões e notas. Por ordem quantitativa, isto é, onde as ocorrências são mais freqüentes, temos a seguinte disposição: na Doutrina da Virtude (21 vezes); na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (17 vezes); em A Religião nos limites da simples razão (11 vezes) e na Pedagogia (10 vezes) (SENSEN, 2013, p. 177). No total, o conceito aparece em 18 escritos.
O problema fundamental que motivou o trabalho de Sensen é que o conceito de dignidade é tomado ao pé da letra como sinônimo de valor intrínseco ou de valor absoluto. Ora, se o conceito for assumido deste modo, a questão que surge aqui e que deve ser esclarecida é: 1) os seres humanos devem ser respeitados porque têm dignidade ou; 2) têm dignidade pelo fato de serem respeitados?
Como é possível perceber, na primeira alternativa a dignidade é compreendida como fundamento da exigência do respeito, algo muito difundido na compreensão comum do
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tema (e que, no final das contas, é contrária à visão de Kant). A segunda alternativa aponta para uma compreensão justamente oposta à primeira: a dignidade é decorrente do mandamento de respeito, mandamento este que tem sua origem na razão. Precisamente por isso, na visão de Sensen, assumir a dignidade como valor absoluto (de acordo com a primeira alternativa acima) leva à uma dificuldade de ordem teórica que inviabiliza a proposta de fundamentação de Kant, pois ao se assumir que a dignidade seja o fundamento da exigência do respeito, se está afirmando um moral heterônoma. E isso colide frontalmente com o que Kant pretende “buscar e estabelecer” na GMS, a saber, o princípio supremo da moralidade que culminará no conceito de autonomia.
De modo bastante resumido indico aqui as principais passagens da GMS onde Kant emprega o conceito:
O conceito de dignidade é relacionado ao ser racional, enquanto capaz de legislar por si mesmo; autonomia (434, 29-30)
Dignidade opõe-se a preço, pois ela tem valor absoluto ao passo que o preço tem valor relativo. (434,31-34)
Dignidade como valor intrínseco (435,2-4)
A moralidade é a única coisa que tem dignidade, a humanidade apenas enquanto capaz dela. (435, 5-9)
A legislação que determina todo o valor tem dignidade e;
A autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e da natureza racional (436,2-7)
O ponto que interessa a Sensen nos três capítulos da primeira parte está na compreensão sobre a relação entre dignidade e valor. Precisamente as características acima apontadas em “b” (dignidade como valor absoluto, 434,31-34) e “c” (dignidade como valor intrínseco, 435,2-4) são as que dividem as interpretações. De um lado, estão aqueles que entendem que o sentido destes termos não devem ser compreendidos ipsis litteris, isto é, defendem que valor intrínseco e valor absoluto não estão empregados com o sentido que estas palavras sugerem hoje (nas palavras de Sensen, na concepção contemporânea) e, por isso mesmo, é preciso rever todo o histórico do emprego do termo na obra de Kant e
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examinar suas origens. De outro lado, estão aqueles que, como Schönecker e Wood2 (2007,
p. 142) entendem que o conceito de valor é indispensável para a ética kantiana e que justamente “seres dotados de razão, enquanto seres capazes de autonomia e de estabelecer fins têm um valor absoluto (dignidade)”.
Em sua interpretação Sensen assume que Kant não concebe dignidade como valor absoluto e que sua visão está muito mais relacionada com a concepção estóica (Idem, p. 144). Neste sentido, o termo estaria muito mais próximo de sublimidade (Erhabenheit) e indicaria ontologicamente uma propriedade relacional de ser elevado em relação a outras coisas ou seres. Assim, conforme seu exemplo dizer “X tem dignidade” não quer dizer outra coisa que “X é elevado em relação a Y” ou ainda que “X é superior a Y”. No entanto, a leitura que se faz não é essa. O conceito como já foi demonstrado nas palavras do próprio Kant, relaciona-se com o conceito de valor cujos predicados são, como Sensen mesmo admite, “absoluto”, “intrínseco” ou “incondicional”.
A defesa de que a dignidade possua mesmo este sentido de valor e estas qualidades (absoluto, intrínseco, incondicional) é amparada, conforme o autor, numa compreensão ontológica do valor que está contida na interpretação de Kant como um realista moral. Para os que interpretam Kant nesta perspectiva, esta propriedade (dignidade) é um valor não-relacional e, portanto, “seres humanos simplesmente são preciosos e valiosos” (Idem,
p. 311). Ele classifica esta visão como “paradigma contemporâneo de dignidade”.
Os outros dois paradigmas apresentados são chamados por ele de “arcaico” e “tradicional”. O conceito arcaico de dignidade remete para a concepção romana antiga (dignitas) de forte conotação política, cujo grande expoente é Cícero. Dignidade, nesta compreensão, referia-se a uma pluralidade de aspectos da vida social: descendência familiar, as vestimentas dos homens de repartição pública, as posses e finanças de alguém, entre outros aspectos. Outro sentido ainda ligado a esta compreensão é o de que a dignidade está na capacidade de transcender os meros impulsos animais no pensar e no agir. Aqui a dignidade não é inerente à pessoa, mas é conferida a ela por sua condição, posição ou função no interior da vida social e política.
2
SCHÖNECKER, Dieter; WOOD, Allen. Kants „Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Ein einführender
Kommentar. [3. Aufl.] Paderborn – München – Wien – Zurich: UTB; Schöningh, 2007.
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Mas Cícero também expandiu o conceito tornando-o um atributo de todos os seres humanos a todos os seres humanos (Cf. SENSEN, p. 155). A noção tradicional de dignidade surge desta ampliação do conceito arcaico. Conforme Sensen, “a mesma estrutura básica pode ser encontrada de Cícero para frente até os pensadores cristãos e da Renascença: seres humanos são especiais na natureza em virtude de certas capacidades (i. é. razão, liberdade) e têm o dever de fazer um uso apropriado delas” (Idem, p. 313).
A interpretação de Sensen transcorre no sentido de demonstrar que a noção kantiana está ancorada, em geral, na concepção tradicional de dignidade, isto é, entendendo-a, todavia, como elevação e como propriedade relacional. Por isso, a dignidade é uma característica que, já desde o princípio (desde seu nascimento), eleva o homem do restante da natureza. Kant refere-se a este aspecto como “dignidade inata” na Metafísica dos Costumes (MS VI 420, 22-23) e também como “dignidade originária” (SF VII 73,3). O sentido fundamental da liberdade estaria justamente em realizar e preservar esta dignidade originária.
O principal argumento de Sensen é este: não é a humanidade como tal que tem um valor absoluto, mas a moralidade. Por isso, não se trata, de que um indivíduo deva respeitar os demais porque eles têm dignidade ou valor; e sim do contrário, lhes é conferido este valor, dignidade ou importância por conta de que devem ser respeitados. Kant não concebe, portanto, o valor como propriedade não-relacional. Deste modo, em sua interpretação, dignidade seria uma “especificação de ‘internamente’ como elevado” (Idem,
p. 176). E complementa: “ ‘dignidade’ é usada para expressar que o valor moral é superior em relação à outro valor”. O autor defende, por fim, a hipótese de que o conceito de dignidade pode ser melhor esclarecido e compreendido aderindo ao paradigma tradicional.
O valor absoluto dos seres humanos é secundário e dependente do querer moralmente bom. Alguém deve respeitar os demais porque isso é ordenado pelo imperativo categórico na fórmula da humanidade. Além disso, o autor ressalta que os direitos não são fundados no valor dos seres humanos e que Kant não oferece uma especificação positiva para a idéia de valor (dignidade) como propriedade não-relacional, mas o faz apenas de modo negativo: na GMS Kant diz que aquele valor intrínseco é “elevado sobre todo preço”, “não admite um equivalente”, “não tem meramente um valor relativo”, mas um “valor incondicional e incomparável”. Deste modo, segundo a
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interpretação do autor, os seres humanos têm dignidade, mas não como valor absoluto ou intrínseco. Esta dignidade está relacionada com a sublimidade ou elevação em relação aos demais seres da natureza “em virtude da liberdade”.
A interpretação que Sensen oferece é, sem dúvida, bastante razoável quanto à gênese e ao emprego diferenciado do termo dignidade ao longo da obra de Kant. É plausível seguir a tese de que Kant emprega o conceito de dignidade, por vezes, no sentido “arcaico” ou romano-antigo, referindo-se à condição atribuída ou conferida social, cultural e politicamente a um indivíduo, grupo ou classe social. Neste sentido, tal dignidade pode ser adquirida, mas também perdida. Deste modo, o próprio Kant, na Doutrina do Direito (Seção D), quando estabelece os direitos e competências do chefe de estado, refere-se claramente à “distribuição de dignidades”(VI 328,9). Plausível é também que Kant sirva- se do conceito “tradicional” de dignidade seguindo as pegadas de Cícero, entendendo-a como sublimidade ou elevação de todos os seres humanos em razão de possuírem certas capacidades como, por exemplo, razão e liberdade.
No entanto, permanece ainda polêmica, ao meu ver, a tese de que Kant não emprega o termo dignidade como sinônimo de valor intrínseco ou absoluto da pessoa e, que portanto, não a entenda como propriedade não-relacional. O autor tem razão em apontar que Kant oferece apenas algumas caracterizações em sentido negativo, como vimos antes. De fato, Kant não apresenta uma argumentação mais detalhada sobre o sentido deste termo. Por isso mesmo é que poderíamos colocar de novo a pergunta: o que diz exatamente o texto de Kant? Porque ele colocou as palavras “intrínseco”, “absoluto”, “incondicional” e “incomparável”? O fato é que elas estão no texto. Como se deve interpretá-las? Isso, ao menos, sugere que se Kant tivesse sempre em vista a visão tradicional de elevação, talvez ele pudesse ter caracterizado de outra forma e não com estas palavras. Dito de outro modo, a explicação de Sensen sobre isso não me parece plenamente convincente. A interpretação de Sensen oferece, portanto, uma hipótese razoável de leitura.
Outro aspecto, no mínimo muito discutível e controverso, para o qual o trabalho de Sensen aponta é o da interpretação de Kant como um anti-realista moral. De fato, Kant não pode ser assumido simplesmente como um realista moral porque, a rigor, não defende em momento algum aquilo que os realistas chamam de fatos morais. Mas só isso não é
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suficiente para colocá-lo já do lado dos anti-realistas como pretende Sensen, além de outros intérpretes construtivistas, tais como Korsgaard e Rauscher. Por outro lado, do fato de que para Kant a moralidade seja objetiva e não um fenômeno simplesmente subjetivo, fruto de convenções sociais, ou resultado de estados emotivos, também não se pode inferir que ele seja por conta disso um realista moral. Por isso mesmo, a obra em tela, ao mesmo tempo em que nos oferece uma leitura possível da moral kantiana, a partir do conceito de dignidade, nos oferece igualmente a possibilidade de continuar e aprofundar este debate.
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