CON-TEXTOS KANTIANOS.

International Journal of Philosophy

N.o 6, Diciembre 2017, pp. 8-12

ISSN: 2386-7655

Doi: 10.5281/zenodo.1092747


Entrevista com Maria de Lourdes Alves Borges

Interview with Maria de Lourdes Alves Borges


CINARA NAHRA

Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil


A Professora Maria de Lourdes Alves Borges é a atual presidente da Sociedade Brasileira de Kant sendo uma renomada pesquisadora da obra kantiana. Maria de Lourdes estuda há muito tempo o papel das emoções em Kant sendo uma das pioneiras na pesquisa desta temática com a publicação do artigo “What Can Kant Teach us about Emotions”, no The Journal of Philosophy em 2004. Atualmente tem se dedicado a pesquisa sobre o mal e a religião na filosofia Kantiana. Maria de Lourdes é também uma feminista e tenta fazer um resgate contemporâneo da filosofia kantiana no que se refere a temas relacionados ao sexo feminino. Escreveu também sobre o amor e temas diversos na área da ética.


  1. Maria Borges, nos conte sobre a sua experiência à frente da SBK

    A Sociedade Kant Brasileira é talvez a sociedade mais antiga dedicada a um filósofo no Brasil. Sua primeira diretoria data de 1988 e foi composta de nomes importantes na constituição da filosofia no Brasil e sua consolidação pós -ditadura militar, como Zeliko Loparic, Ricardo Terra e Balthazar Barbosa Filho. Essa diretoria da SBK foi depois encabeçada pelo Prof. Valério Rodem, que permanece na direção da sociedade até 2006.

    Nossa diretoria atua num momento em que várias outras sociedades filosóficas já foram criadas e estão consolidadas. A SBK passa a dedicar - se mais ao próprio Kant, articulando os vários grupos e seções que existem no Brasil dedicadas ao estudo desse autor.


    Entrevista com Maria de Lourdes Alves Borges



    Uma das novidades da nossa diretoria é que ela é composta majoritariamente por mulheres, o que é uma mudança significativa nos estudos kantianos. Eu sou a Presidente, Sílvia Altman é vice Presidente, Monique Hulshof é tesoureira e Andreia Fagione é Secretaria Geral, além de Joel Klein. Acredito que esse tipo de composição acentua mais a importância de um grupo, ao invés de nomes individuais. Queremos ressaltar a existência de um grupo brasileiro de filósofos e filósofas que discutem Kant com alto conhecimento e grande criatividade.


  2. Como você vê a evolução dos estudos e da pesquisa sobre Kant aqui no Brasil do tempo em que você era estudante de filosofia na graduação até agora.


    Os estudos kantianos eram mais voltados à exegese estrita de textos. Até hoje penso que essa é uma característica da filosofia brasileira. Atualmente porém há uma abertura maior e enfoca-se mais questões filosóficas do que propriamente a exegese, ainda que essa seja uma marca positiva da filosofia kantiana brasileira.

    Houve nos últimos anos um deslocamento de uma exegese de texto e de uma influência quase que exclusivamente de comentadores alemães e franceses para os comentários americanos. Três membros da nossa diretoria, eu incluída, fizeram pós-doutoramento em universidades americanas.

    Há também uma liberdade de análise maior, um pouco mais descolada dos textos, unida a um escopo mais amplo de textos kantianos considerados relevantes, que incluem, por exemplo, a Antropologia do ponto de vista pragmático.

    A produção kantiana aumentou exponencialmente nos últimos 20 anos no Brasil. Se nos anos 80, época da minha graduação, tínhamos 3 ou 4 especialistas de Kant reconhecidos no Brasil, hoje esse número é 5 ou 6 vezes maior. As referências kantianas no Brasil também encontram-se em universidades fora do eixo Rio, São Paulo, abrangendo pesquisadores do nordeste ao sul do país, o que inclui a minha universidade, Universidade Federal de Santa Catarina.


  3. Você é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a UFSC é sede do CIK, Centro de Investigações Kantianas. Fale um pouco sobre as atividades que o Centro vem desenvolvendo


    O CIK foi criado por um grupo de Kantianos da UFSC e tinha como proposta fomentar a discussão e pesquisa sobre Kant. Temos uma biblioteca própria e organizamos periodicamente eventos para a discussão de temas da filosofia kantiana. Esses colóquios, unidos a uma biblioteca especializada, fomenta a produção kantiana, tanto de professores, quanto de alunos, tendo como consequencia um grande número de dissertações e teses de doutorado sobre Kant.


  4. Fale um pouco sobre as principais revistas dedicadas aos estudos de Kant no Brasil hoje.


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    Cinara Nahra


    Temos tem 3 revistas principais dedicadas ao estudo de Kant no Brasil. A primeira é a Revista da Sociedade Kant Brasileira, a Studia Kantiana. Desde seu primeiro número, em 1998, reúne a produção de filosofia nacional de Kant, bem como produção de nomes relevantes do cenário internacional.

    Temos a Kant e-prints, primeira revista eletrônica dedicada aos estudos kantianos no Brasil. Ligada à seção de Campinas da SKB, inicialmente dedicou - se à escola semântica de análise de Kant. A partir de 2000, passa a abarcar uma grande produção kantiana nacional e internacional.

    Mais recentemente foi criada a Estudos Kantianos, ligada ao Centro de Estudos Kantianos Valério Rodhen da UNESP. Essa revista tem como editor o Prof. Ubirajara Rancan, que promove vários encontros sobre Kant.


  5. Como você vê a questão da internacionalização da pesquisa sobre Kant atualmente? Fale um pouco sobre as iniciativas que existem neste sentido.


    A pesquisa sobre Kant no Brasil, principalmente depois do Congresso da SKB de 97, buscou cada vez mais uma maior internacionalização. Hoje temos a iniciativa dos Colóquios Multilaterais, que congregam pesquisadores de vários países e que têm uma periodicidade anual. Os Colóquios Multilaterais foram uma iniciativa do então Presidente da SKB, professor Ubirajara Rancan, que continua muito ativo na busca da internacionalização dos estudos kantianos.


  6. Como você vê o futuro das pesquisas sobre Kant no mundo?


    Sem dúvida, Kant é um dos filósofos da tradição mais estudado internacionalmente. Penso que isso se deve ao fato dele ser atual e abrangente. Podemos encontrar em Kant conceitos que ainda são atuais para pensar a ética, a política, a teoria do conhecimento, a estética. Kant não foi superado historicamente, o que nos leva a uma previsão de um estudo cada vez maior de sua filosofia, abarcando não somente o ocidente, mas também o oriente. Vejo que a filosofia kantiana tem-se desenvolvido na China e no Japão, para citar alguns exemplos dessa expansão.


  7. Além de presidente da SBK você é também secretária de cultura da UFSC. Explique as atividades que você exerce neste cargo e até que ponto ser uma pesquisadora e estudiosa de Kant lhe auxilia no exercício desta função.


    Eu sou responsável pelas atividades culturais e artísticas da UFSC, é uma Secretaria que tem status de Pro-Reitoria. Foi criada a partir de uma separação da Pro-Reitoria de Extensão, que é onde normalmente se situa a arte e cultura nas universidades. Como kantiana, tento organizar também debates sobre estética, além das atividades de música, teatro e cinema.


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    Entrevista com Maria de Lourdes Alves Borges



    O que eu levo de Kant para essas atividades culturais é a ideia de que a arte não tem uma finalidade, mas deve valer pelo próprio gozo estético. Penso também que a educação estética pode contribuir para a destinação ou desenvolvimento humano em geral.


  8. Se você tivesse que dar um conselho aos jovens estudantes de filosofia da graduação que estão iniciando nos estudos kantianos aqui no Brasil, que conselho você daria?


    Estude com dedicação os textos kantianos, lembrando-se sempre que Kant estava tentando resolver problemas filosóficos. A leitura exegética sem a compreensão dos problemas filosóficos é cega, assim como apenas a compreensão dos problemas filosóficos em questão, sem a devida atenção ao texto é vazia.


  9. Recentemente, como sabemos, uma tragédia se abateu sobre a UFSC e sobre todas as universidades brasileiras, com o suicídio do Reitor da UFSC, o já saudoso professor Luiz Carlos Cancellier. Voce gostaria de prestar uma última homenagem a ele explicando à comunidade acadêmica internacional as circunstâncias que levaram a morte do Cau, como ele era conhecido por todos?


A Universidade brasileira vive hoje sobre uma ferida aberta: a morte de um Reitor. Por quase dois anos, sob a liderança do Reitor Prof. Luiz Carlos Cancellier de Olivo, a UFSC floresceu na arte, na ciência e na tecnologia, apesar das dificuldades econômicas. A convivência tornou-se mais pacífica, pois os adversários não eram considerados inimigos e todos eram convidados a sentar na mesa e na sala do Reitor. Essa harmonia desaparece numa operação denominada Ouvidos Moucos, que prende o Reitor, sob a alegação de obstrução de justiça, relativa a uma suposta irregularidade no programa de Ensino à Distância. Não havia julgamento, nem processo, só um inquérito inicial, onde apenas um lado fora ouvido. Uma operação de 100 homens é montada para invadir a universidade, apreender documentos e prender 5 professores e o Reitor. Sem julgamento prévio, nem direito à defesa. Na prisão, Cancellier é despido, sujeito à revista íntima, algemado e acorrentado. Depois de solto, é impedido de entrar na Universidade, na qual foi um Reitor eleito e aclamado, elogiado até mesmo pelos seus adversários, pelo seu espírito conciliador. Devido ao terrível sofrimento acarretado pela injustiça e humilhação moral, suicida-se em 2 de outubro de 2017.

Hoje assistimos no Brasil a um fanatismo punitivista que, na sua ânsia de “punir os corruptos e passar o país a limpo”, acaba por destruir as bases do Estado de Direito. O que vemos atualmente é o avesso do Direito, que coloca como sua base a pena, a prisão e a utilização indiscriminada de medidas cautelares de restrição de liberdade, sem levar em consideração o princípio fundamental da pressuposição de inocência.

Soma-se à prioridade da pena desse Avesso do Direito, um lado sombrio da natureza humana, que humilha ao mesmo tempo que condena. O relato do Reitor despido e acorrentado na prisão nos faz lembrar as terríveis fotos do campo de concentração de


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Cinara Nahra


Dachau, onde os judeus eram despidos e humilhados antes da solução final. O lado diabólico e monstruoso da natureza humana torna-se ainda menos aceitável quando se transforma naquilo que Hannah Arendt denominou de banalidade do mal. Assim, aqueles que friamente justificam seus atos bárbaros através da lei, cuja vaidade é alimentada pelos holofotes da mídia, sem nenhuma reflexão sobre a moralidade desses, remetem a Eichmann justificando suas atrocidades por que estava seguindo a lei do Terceiro Reich. Segundo Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalem: “Assim era a situação, essa era a nova lei do país, baseada na ordem do Fuhrer. O que ele fizera, ele fizera, tanto quanto podia ver, como cidadão temente a lei. Cumprira seu dever, conforme repetiu diversas vezes à polícia e à Corte; não obedecia apenas ordens, mas também à lei.”1

O exemplo de Eichmann nos leva a questionar a utilização da lei sem nenhum julgamento moral sobre essa. Estaria conforme ao Direito a lei ou a regra que permite a prisão sem defesa prévia? Estaria conforme o Direito o tratamento desumano dado nas prisões?

A partir do Tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes da Segunda Guerra Mundial, foi criada uma Carta de Nuremberg, que instituía alguns princípios proibindo, entre outros, o tratamento desumano e alertava, no artigo 8, que “o fato do acusado ter obedecido ordens do seu governo ou de um superior não o exonerará de reponsabilidade”. Em 1948, a ONU promulga a Declaração Universal dos Direitos do Homem, incorporando os princípios de Nuremberg. No artigo 5, pode-se ler: “Ninguém deve ser submetido a tortura, ou submetido à tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante”.

Que essa ferida, a morte de um Reitor condenado sem julgamento, sujeito a um tratamento desumano na prisão, tratamento rejeitado até pela Carta de Nuremberg, jamais seja esquecida. Que continue aberta e não cicatrize até que tenhamos um Estado Democrático de Direito no Brasil.



1 Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalem, um relato sobre a Banalidade do mal (São Paulo: Diagrama, 1983), p. 148.

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