CON-TEXTOS KANTIANOS.
International Journal of Philosophy N.o 7, Junio 2018, pp. 252-274
ISSN: 2386-7655
Doi: 10.5281/zenodo.1299112
O problema do mal na Religião nos limites da simples razão
JORGE VANDERLEI COSTA DA CONCEIÇÃO
Unicamp-SP, Brasil
O presente artigo objetiva demonstrar que a proposição "o homem é mau por natureza" é sintética a priori prática, uma vez que, o terceiro grau de propensão, a malignidade, trata de uma caraterística antropológica do caráter inteligível do ser racional finito. Para validar a nossa hipótese interpretativa, afirmaremos que os dois primeiros graus de propensão, a fragilidade e a impureza, se ocupam do caráter sensível do ser humano, pois ele é sobredeterminado tanto pela inclinação quanto pela lei moral, mas isso não significa que o homem admitiu a inclinação como uma regra do seu arbítrio, mas apenas a sua dificuldade de lidar com esses diferentes motivos na execução da ação. Diferente desses níveis, a malignidade pressupõe admissão da inclinação como uma regra universal do arbítrio e conforme Kant esse ato do arbítrio é inteligível e cognoscível apenas pela razão, pois ele visa viabilizar a predicação da natureza humana como má, o que não pode ocorrer mediante qualquer característica antropológica empírica, mas apenas mediante a predicação do caráter inteligível do ser racional finito. Por essa razão, defenderemos que a proposição "o homem é mau por natureza" é sintética a priori prática.
Propensão; Fraqueza da vontade; Tese da incorporação; Mal radical; Inclinação.
The present article aims to demonstrate that the proposition "the man is evil by nature" is synthetic to the practical a priori, once that, the third degree of propensity, the malignancy is about a
Realizo estágio de pós-doutoramento junto ao Prof. Dr. Daniel Omar Perez na Universidade Estatual de Campinas. E-mail para contato: anedotismo@yahoo.com.br
O problema do mal na Religião nos limites da simples razão
anthropological characteristic of the intelligible character of the finite rational being. To validate our interpretive hypothesis, we will affirm that the first two degrees of propensity, the fragility and the impurity, deal with the sensible character of the human being, because he is overdetermined either by the inclination, either by the moral law, but that does not mean that the man admitted the inclination as a rule of its will, but only its difficulty of dealing with these different motives in the execution of the action. Different from these levels, the malignancy presupposes an admission of the inclination as an universal rule of the will and according to Kant this act of will is intelligible and cognizable only by reason, because he aims to make feasible the predication of the human nature as evil, what may not occur through any empirical anthropological characterisitc, but only through predication of the intelligible character of the finite rational being. For this reason, we will defend that the proposition "the man is evil by nature" is synthetic to the pratical a priori.
Propensity; Weakness of will; Thesis of the incorporation; Evil radical; Inclination
Em A Religião nos limites da simples razão 1 , Kant afirmar existir na natureza humana uma propensão para mal, que não pode ser eliminada, porque essa propensão indica uma condição formal de determinação do arbítrio. Pesquisadores clássicos (Prauss, 1983; Schmid, 1790; Reinhold, 1792), afirmaram que a moral kantiana apresentava o problema da inimputabilidade de uma ação má, porque ela não era considerada uma ação livre, porque ela seria uma ação heteronômica. Ainda conforme esses pesquisadores clássicos, a solução dessa questão encontramos na Religião nos limites da simples razão, na medida em que a doutrina do mal radical indica existência de uma propensão para o mal na natureza humana. Conforme Kant, “[...] para tornar manifesta a relação da religião com a natureza humana, sujeita em parte a disposições boas e em parte a propensões más, represento a relação do princípio bom e do mau como uma relação de duas causas operantes por si subsistente e que influem no homem [...]2.” (RGV, AA, 6:11) Isso implica na seguinte questão: na Religião nos limites da simples razão, uma ação má não é simplesmente uma ação heteronômica como ocorre na Fundamentação da metafísica dos
1 As obras de Kant serão citadas pelas siglas estabelecidas internacionalmente pela direção da Revista Kant- Studien e adotadas pela Kant-Gesellschaft, a Sociedade Kant Brasileira, a Revista Studia Kantiana e a revista Kant e-prints. Ver http://www.degruyter.com/files/down/instructions/ksins_e.pdf
2 [...] die Beziehung der Religion auf die menschliche, theils mit guten theils bösen Anlagen behaftete Natur bemerklich zu machen, das Verhältniß des guten und bösen Princips gleich als zweier für sich bestehender, auf den Menschen einfließender wirkenden Ursachen vorstelle [...]
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costumes, pelo contrário, o agente moral deve admitir o mal como um princípio determinante do seu arbítrio.
Na Fundamentação da metafísica dos costumes, as inclinações não determinam incondicionalmente o arbítrio humano, porque elas não possuem nenhum valor moral em comparação com a lei moral. De acordo com Kant: “as próprias inclinações, porém, como fontes das necessidades, estão tão longe de ter um valor absoluto que as torne desejáveis em si mesmas, que, muito pelo contrário, o desejo universal de todos os seres racionais deve ser o de se libertar totalmente delas3.” (GMS, AA, 4:428) Nessa obra, Kant apresenta uma sinonímia entre a vontade livre e a vontade submetida à lei moral, porque a autonomia é uma propriedade da vontade dos seres racionais, na medida em que o agente moral admite a lei moral como o princípio subjetivo do querer. A heteronomia da vontade inviabiliza uma ação livre, pois caso o homem agisse motivado por uma inclinação, a causa dessa ação seria a sua natureza, o que inviabilizaria o conceito positivo de liberdade, ou seja, a vontade não daria a si mesma uma lei, o que também inviabilizaria o conceito de autonomia.
Acerca do conceito positivo de liberdade, Kant afirma o seguinte:
como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as quais, por meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra coisa que se chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular; pois de outro modo uma vontade livre seria um absurdo4. (GMS, AA,4:444)
A liberdade em sentido negativo trata da ausência de qualquer tipo de coerção em relação a vontade do ser racional. Todavia, Kant adverte que a liberdade não é uma propriedade da vontade do arbítrio sensível do homem segundo uma lei natural. Conforme ele o homem
3 Die Neigungen selber aber als Quellen des Bedürfnisses haben so wenig einen absoluten Werth, um sie selbst zu wünschen, dass vielmehr, gänzlich davon frei zu sein, der allgemeine Wunsch eines jeden vernünftigen Wesens sein muss.
4 Da der Begriff einer Kausalität den von Gesetzen bei sich führt, nach welchen durch etwas, was wir Ursache nennen, etwas anderes, nämlich die Folge, gesetzt werden muß: so ist die Freiheit, ob sie zwar nicht eine Eigenschaft des Willens nach Naturgesetzen ist, darum doch nicht gar gesetzlos, sondern muß vielmehr eine Kausalität nach unwandelbaren Gesetzen, aber von besonderer Art sein; denn sonst wäre ein freier Wille ein Unding.
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participa de dois mundos, que são o mundo sensível e o mundo inteligível. Enquanto membro do mundo sensível, o homem é um animal sensível e o seu o arbítrio é determinado patologicamente, porque ele é determinado de acordo com as suas inclinações, afetos e emoções. Enquanto participante do mundo inteligível, o homem é um ser racional e o seu arbítrio é determinado pela lei moral, na medida em que ele consegue agir sem a influência das suas inclinações. Neste sentido, agir livre é agir segundo a lei moral. Ainda de acordo com Kant, na Fundamentação da metafísica dos costumes, os princípios empíricos não servem para fundar a lei moral, pois esses princípios não possuem validade universal para todos os seres racionais sem distinção. Assim, o arbítrio sensível do homem é determinado de acordo com as circunstâncias contingentes (temporais) que antecede a ação, que são antropológicas e, por isso, pertencem a segunda parte da metafísica dos costumes. (GMS, AA, 4:V/MS, AA,6:217) Por esse motivo, enquanto membro do mundo inteligível, o homem é tido como um ser racional capaz de agir independentemente da influência das suas inclinações.
Se alinharmos a Fundamentação da metafísica dos costumes e a Religião nos limites da simples razão, então podemos afirmar que essas obras possuem soluções distintas para o problema do mal. Na primeira obra, a ação motivada pelo amor de si ou por uma inclinação é heteronômica e não possui nenhum valor moral. Uma ação praticada por dever tem o seu valor moral não na intenção que se almeja atingir, mas na máxima que a determina, por isso uma ação moral é uma ação necessariamente por respeito à lei moral. Assim, a liberdade é uma propriedade da vontade de um ser racional, que é participante do mundo inteligível. Em outras palavras, uma ação motivada por um impulso não é uma ação autônoma, livre e moral.
Na Religião nos limites da simples razão, a malignidade, o terceiro grau de propensão para o mal, é uma condição formal de determinação do livre arbítrio. Isto significa que, a malignidade trata da predicação do caráter do ser racional finito como mau, na medida em que trata de um ato formal do arbítrio, que ao incorporar o mal como um princípio subjetivo da máxima, o admite como o princípio determinante da sua máxima. Neste sentido, na obra tardia, agir motivado por uma inclinação não implica na heteronomia da vontade, porque esse tipo de ação não contradiz o conceito positivo de liberdade. Assim, o modo como Kant soluciona o problema do mal na Religião nos limites
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da simples razão é distinto do desenvolvido na Fundamentação da metafísica dos costumes, pois, na obra tardia, os princípios do bem e do mal são forças atuantes na natureza humana. Logo, o problema central dessa obra é demonstrar a validade da proposição “o homem é mau por natureza”.
Para resolver a questão aqui proposta, demonstrar a validade da proposição “o homem é mau por natureza, dividimos o presente artigo em três partes. Na primeira parte, examinaremos dois vieses interpretativos acerca do problema da ação má em Kant, que são a teoria da incorporação e da fraqueza da vontade. Na segunda parte, discutiremos a tese do desenvolvimento de uma antropologia no âmbito da filosofia da religião em Kant, o que nos permitirá sustentar a tese de que o juízo “o homem é mau por natureza” é sintético a priori prático. Na terceira parte, analisaremos os três níveis de propensão para o mal, a fim de demonstrar que os dois primeiros se referem ao caráter empírico do homem e o terceiro ao inteligível, o que viabilizará a tese de um domínio antropológico na religião em Kant. Por fim, defenderemos que os dois primeiros graus de propensões para o mal compõem uma antropologia moral e o terceiro uma antropologia transcendental5.
Em Religião nos limites da simples razão, Kant afirma haver três graus de propensão para o mal, que de acordo com ele são os seguintes:
primeiro, é a debilidade do coração humano na observância das máximas adotadas em geral, ou a fragilidade da natureza humana; em segundo lugar, a inclinação para misturar móbiles imorais com morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem); i. e., a impureza; em terceiro lugar, a inclinação para o perfilhamento de máximas más, i. e., a malignidade da natureza humana ou do coração humano6. (RGV, AA, 6:29)
5 Em um artigo publicado, em 2013, na revista Kant E-prints, defendo a hipótese de uma antropologia transcendental, porque a resposta à pergunta de como são possíveis as proposições sintéticas a priori determinam as características da natureza humana como um produto dessas operações judicativas. Isso significa que, as características antropológicas da natureza humana são derivadas das condições de possibilidade de formulação e de execução dos juízos sintéticos a priori em geral, pois essas características estabelecem as condições a priori do seu funcionamento.
6 Erstlich ist es die Schwäche des menschlichen Herzens in Befolgung genommener Maximen überhaupt, oder die Gebrechlichkeit der menschlichen Natur; zweitens der Hang zur Vermischung unmoralischer Triebfedern mit den moralischen (selbst wenn es in guter Absicht und unter Maximen des Guten geschähe),
d.i. die Unlauterkeit; drittens der Hang zur Annehmung böser Maximen, d.i. die Bösartigkeit der menschlichen Natur, oder des menschlichen Herzens.
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Os dois primeiros níveis de propensão para o mal são a fragilidade (fragilita) e a impureza (impuritas, improbitas), no primeiro nível de propensão a nossa vontade é fraca e no segundo as inclinações são mais forte do que a lei moral na determinação do princípio subjetivo do querer. Diferente dos dois primeiros níveis de propensão para o mal, no último cabe o dolus malus, porque no terceiro grau, a inclinação é admitida como causa da ação, na medida em que ela é incorporada na máxima. Segundo Kant, “a liberdade do arbítrio possui a característica peculiar de não poder ser determinada por nenhum móbil, a não ser na medida em que o ser humano admitiu na sua máxima (o transformou para si em uma regra universal de acordo com a qual se quer comportar) [...]7.” (RGV, AA, 6:24) Assim, em uma ação má, de acordo com o grau da malignidade, o agente moral necessariamente deverá incorporar a inclinação na sua máxima, ou seja, admiti-la como causa da sua ação.
Allison (1990) denomina esse argumento kantiana de tese da incorporação, porque “as inclinações e os desejos só constituem uma razão suficiente para agir, na medida em que são tomados ou incorporados na máxima do agente. Isso significa que um ato de espontaneidade ou autodeterminação está envolvido mesmo em ações baseadas em inclinações e desejos.” (ALLISON 1990, p.XVII) A tese da incorporação determina que toda ação moral é uma ação racional, mas a tese da incorporação não explica a vontade fraca e a inclinação mais forte que a lei moral. Diferentemente do pesquisador, Baron (1995) apresentou ressalvas à tese desenvolvida por Allison, ela formulou a tese da fraqueza da vontade, pois nos dois primeiros graus de propensões para o mal a inclinação não é incorporada na máxima, porque ocorre uma sobredeterminação de causas, com isso o arbítrio humano pode ser determinado por múltiplas causas e não exclusivamente pela lei moral.
Todavia, nosso objetivo aqui não é discorrer acerca das divergências dos trabalhos de Baron e de Allison, mas apenas reconstruir minimamente as interpretações relevantes sobre a temática do mal desenvolvida na Religião nos limites da simples razão. Uma ampliação interessante da tese da incorporação sugerida por Allison encontramos no trabalho de FRIERSON (2013, p.57-60), pois ele considera que certas características
7 die Freiheit der Willkür ist von der ganz eigentümlichen Beschaffenheit, daß sie durch keine Triebfeder zu einer Handlung bestimmt werden kann, als nur sofern der Mensch sie in seine Maxime aufgenommen hat (es sich zur allgemeinen Regel gemacht hat, nach der er sich verhalten will) [...].
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antropológicas e naturais dos seres humanos podem ser incorporadas na máxima, por exemplo, os diferentes temperamentos e caráteres dos povos, as disposições naturais, as emoções e os instintos podem ser incorporados pelo arbítrio humano na determinação do princípio subjetivo do querer. Esse pesquisador propõe uma junção entre a antropologia pragmática e a fisiológica 8 , pois ele sugere que certos determinantes biológicos são incorporados na máxima na deliberação do livre arbítrio. Em outras palavras, ele propõe investigar a moral kantiana através de preceitos da sociobiologia.
Uma ampliação interessante da tese da fraqueza da vontade encontramos nos trabalhos de Borges (2012;2017), uma vez que a autora destaca que a virtude pode realizar a conciliação entre a razão e as emoções. Ela destaca que nos textos tardios, principalmente na Religião nos limites da simples razão, na Metafísica dos Costumes e na Antropologia de um ponto de vista pragmático, Kant reconhece que os afetos e as paixões são incorporados na máxima pelo agente moral, no entanto, essa incorporação não é resultado de uma decisão racional, ao contrário, ela ocorre por causa da fraqueza da vontade humana. Esta perspectiva de leitura da fraqueza da vontade contrária a tese do formalismo moral, logo ele nos permite explicar ações tidas como irracionais na moral kantiana.
Na esfera das ações racionais, a teoria da incorporação consegue resolve o problema da ação má proposto na religião, na medida em que a inclinação somente é a causa da ação se ela for incorporada na máxima, porque o livre arbítrio humano só é determinado através da sua atividade de admitir um móbil como causa da ação. (RGV, AA, 6:24) No caso do terceiro nível de propensão para o mal, chamado por Kant de malignidade, o ser humano admite a inclinação como causa da sua ação, porque o
8 Num artigo publicado em 2016, discuto a tese defendida por Cohen (2008) de que a antropologia fisiológica é a base da antropologia pragmática, porque o ajuizamento do ser humano como um ser organizado, nos permite ajuizá-lo em conformidade a fins [Zweckmässigkeit]. Neste sentido, ainda de acordo com o pesquisador, a antropologia pragmática compartilha certas características metodológicas com os princípios de uma filosofia da biologia em Kant, pois a causalidade mecânica é insuficiente para explicar os seres vivos e, por isso é necessário um novo tipo de causalidade, que segundo Kant é a final (nexus finalis). ( KU, AA, §
65) Mas, este novo tipo de causalidade somente é possível mediante um princípio teleológico, todavia Kant adverte que a causalidade final não é aplicada diretamente ao organismo vivo, mas sim ao conjunto de leis empíricas que o regem, o que nos permite ajuizar qualquer ser vive segundo fins. Por essa razão, a antropologia fisiológica é a base da antropologia pragmática. Destarte, diferente de Cohen, propomos que a concepção de natureza humana é viável a partir dos efeitos sensíveis produzidos pelas condições de possibilidade e de execução das proposições sintéticas a priori práticas. Neste sentido, a nossa concepção de natureza humana é possível mediante um conjunto de efeitos, que neste caso é o sentimento moral [moralische Gefühl].
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fundamento do mal reside na incorporação dele na máxima como resultado da autodeterminação do agente moral. Destarte, BORGES (2012, p.47) defende que nem toda inclinação deve ser considerada como algo censurável, pois “tomadas em si mesmas, as inclinações são boas, ou seja, não repreensíveis, e querer extirpá-las seria não apenas fútil como censurável.” (RGV, AA, 6:58) As inclinações naturais não devem ser extirpadas, mas sim tomadas a fim de evitar que elas se aniquilem, uma vez que eliminadas inviabilizaríamos a possibilidade da felicidade. Segundo Kant, o que deve ser combatido é o terceiro nível de propensão, ou seja, a incorporação da inclinação na máxima como resultado da autodeterminação do agente moral. (RGV, AA, 6:58) Ainda de acordo com ele, a ciência que administra o conflito entre as inclinações boas e más é a prudência, pois ela é capaz de produzir a consonância num todo chamado felicidade.
Conforme BORGES (2012, p.47), o embate entre a teoria da fraqueza da vontade e a tese da incorporação evidencia que: por um lado, de acordo com a primeira, as inclinações podem impedir e dificultar a execução da máxima moral, porém não devem ser eliminadas, mas tomadas; por outro lado, quando a inclinação é incorporada na máxima, então temos o verdadeiro mal, pois a razão humana é pervertida e essa perversão é o terceiro nível de propensão para o mal. Em relação aos dois primeiros níveis de propensão para o mal, Borges defende a tese de que se nem toda inclinação é má em si mesma, então elas podem ser um reforço moral, esse argumento lhe permite sustentar a tese da teoria das emoções, uma vez que doutrina da virtude é a luta do agente moral contra as suas inclinações a fim de construir uma vontade forte.
Borges (2012) propõe que na doutrina da virtude, desenvolvida na Metafísica dos costumes, Kant amplia o domínio investigativo da ação moral em Kant, que até então era o da ação racional. Ela sugere haver um domínio da ação voluntária em Kant, na medida em que a virtude é definida como o esforço de construir uma vontade forte capaz de lutar contra a força das nossas inclinações. Assim, uma vontade livre não é necessariamente uma vontade autônoma, mas sim uma vontade que luta contra a força das inclinações. Dito isso nas palavras da pesquisadora:
o que eu sugiro é que, se eu decido realizar a ação Ar baseada em máximas previamente escolhidas, eu realmente deveria realizar a ação Ar, dentro do modelo kantiano. Mas, às vezes, eu faço Ad. Se a ação concreta não é a mesma que a ação decidida pelo agente, então eu caio fora do modelo kantiano. Não há outra possibilidade aqui, ainda que vários
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autores tenham tentado conciliar a fraqueza da vontade com a tese da incorporação, normalmente pela negação da fraqueza. (BORGES, 2012. p.175)
Como indicado pela autora, a teoria da incorporação exclui a influência dos afetos e das emoções na determinação do livre arbítrio do ser humano. Mas, a teoria da fraqueza da vontade nos permite pensar a doutrina da virtude como uma maneira de pensar um domínio das ações motivadas pelos afetos e emoções, mesmo que eles não sejam incorporados intencionalmente na máxima como ocorre no terceiro grau de propensão para o mal. Borges destaca que no segundo grau de propensão para o mal, o bem é admitido como o princípio determinante da máxima pelo arbítrio, porém a decisão racional é mais fraca que a inclinação na execução da ação, o que inviabiliza a execução da ação por dever. Por fim, através da ideia de um domínio voluntário da ação em Kant, Borges propõe uma teoria da emoção, na qual a doutrina da virtude se ocuparia de explicar as ações que não podem ser descritas pelo domínio da ação racional, assim a virtude é o nosso esforço de construir uma vontade forte capaz de lutar contra a força das nossas inclinações e emoções.
Em relação à interpretação da ação má em Kant, então podemos afirmar haver dois vieses interpretativo significantes, que são a tese da incorporação e a da fraqueza da vontade. Ambas as leituras partem da seguinte passagem:
a liberdade do arbítrio tem a qualidade inteiramente peculiar de ele não poder ser determinado a uma ação por móbil algum a não ser apenas enquanto o homem admitiu na sua máxima (o transformou para si em regra universal de acordo com a qual se quer comportar); só assim é que um móbil, seja ele qual for, pode subsistir juntamente com a absoluta espontaneidade do arbítrio (a liberdade)9. (RGV, AA, 6:24)
A tese da incorporação defende que o arbítrio humano é determinado por um motivo intencionalmente incorporado na máxima, indiferente se o mesmo é uma inclinação ou a lei moral, pois, caso contrário, esse tipo de causalidade seria incombatível com a ideia de liberdade. Baron (1995) e Borges (2012) destacam a incompatibilidade dessa tese da incorporação com os dois primeiros graus de propensão ao mal, porque neles o agente moral não admitiu a inclinação como um elemento determinante da sua máxima, ao invés
9 die Freiheit der Willkür ist von der ganz eigenthümlichen Beschaf|fenheit, daß sie durch keine Triebfeder zu einer Handlung bestimmt werden kann, als nur sofern der Mensch sie in seine Maxime aufgenommen hat (es sich zur allgemeinen Regel gemacht hat, nach der er sich verhalten will); so allein kann eine Triebfeder, welche sie auch sei, mit der absoluten Spontaneität der Willkür (der Freiheit) zusammen bestehen.
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disso, ocorre a fraqueza da vontade, isto é, a vontade do agente não é forte o bastante para realizar a ação por respeito à lei moral.
Em relação à fragilidade da vontade, o primeiro grau de propensão para o mal, Kant escreveu o seguinte:
a fragilidade (fragilitas) da natureza humana encontra-se, inclusive, expressa na queixa de um Apostolo: tenho, sem dúvida, o querer, mas falta o cumprir, isto é, admito o bem (a lei) na máxima do meu arbítrio; mas o que objetivamente na ideia (in thesi) é um móbil insuperável é, subjetivamente (in hypothesi) quando a máxima deve ser seguida, o mais fraco (em comparação com a inclinação)10. (RGV, AA,6:19)
Em linhas gerais, nesse caso, o agente moral admite o bem em sua máxima, mas por causa da fragilidade da sua vontade, a execução da ação não ocorre segundo o princípio incorporado na máxima através da determinação do arbítrio, mas sim segundo a inclinação. De acordo com as pesquisadoras, a teoria desenvolvida por Allison não contempla esse tipo de ação, porque para o pesquisador uma ação é má, se somente se houver a incorporação da inclinação na máxima, pois sem essa condição, a ação é inimputável.
Borges (2012) defende que a conciliação entre a teoria da incorporação e da fraqueza da vontade é inviável e concordamos com ela. Por isso, a pesquisadora propõe uma teoria da emoção. Em linhas gerais, a teoria da emoção considera que as nossas inclinações podem ser mais forte que a lei moral na execução da ação. Por isso, o objetivo da doutrina da prudência é construir uma vontade forte, que consiga resistir a força das inclinações. Um dos pilares da tese de Borges é a definição de virtude apresentada por Kant na Metafísica dos Costumes, nessa obra o autor afirmar o seguinte: “virtude é a fortaleza moral da vontade de um homem no cumprimento do seu dever, que é uma coerção da sua própria razão legisladora, na medida em que esta se constitui a si mesma como poder executivo da lei.” (MS, AA, 6:405) Dito isso, a autora sugere uma conciliação entre a razão e a emoção, posto que a doutrina da virtude investiga as condições empíricas que favorecem e obstaculizam a realização da lei moral e uma dessas condições são os
10 die Gebrechlichkeit (fragilitas) der menschlichen Natur ist selbst in der Klage eines Apostels ausgedrückt: Wollen habe ich wohl, aber das Vollbringen fehlt, d.i. ich nehme das Gute (das Gesetz) in die Maxime meiner Willkür auf; aber dieses, welches objectiv in der Idee (in thesi) eine unüberwindliche Triebfeder ist, ist subjectiv (in hypothesi), wenn die Maxime befolgt werden soll, die schwächere (in Vergleichung mit der Neigung).
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nossos afetos e emoções. Conforme a autora, “numa analogia com Aristóteles, apenas a virtude pode curar o acrático. Mas, a virtude, em Kant, diversamente de Aristóteles, não será baseada no habitus e no cultivo de um bom caráter, mas no esforço de construir uma vontade forte que possa lutar conta a força das inclinações.” (BORGES 2012, p.176)
Em relação às teses da fraqueza da vontade e da incorporação, queremos propor um viés interpretativo alternativo, na medida em que analisaremos o problema do mal na Religião nos limites da simples razão através de uma leitura antropológica. Para validar a nossa proposta interpretativa citamos um trecho da obra em questão:
que, porém, estejamos autorizados a entender por homem, cujo propósito afirmamos que é bom ou mau por natureza, não o indivíduo particular (pois então um poderia considerar- se bom por natureza, e outro mau), mas toda a espécie, só mais a frente se pode demonstrar, quando, na indagação antropológica, se mostra que as razões que nos permitem atribuir a um homem um dos dois caracteres como inatos são tais que não há fundamento algum para dele executar em um só homem, e ele se aplica à espécie11. (RGV, AA, 6:25)
De acordo com Kant, a proposição “o homem é mau por natureza”, o predicado não se refere ao indivíduo particular, mas sim para toda a espécie humana. As razões disso são duas: a primeira é lógica, pois o predicado contém o sujeito e, a segundo é antropológica. Em relação às razões antropológicas, a antropologia moral é a investigação da aplicação da lei moral a partir do conhecimento empírico que temos da nossa natureza humana. Segundo Kant, “por natureza do homem, se entenderá aqui apenas o fundamento subjetivo do uso da liberdade em geral (sob leis morais objetivas), que precede todo o fato que se apresenta aos sentidos, onde quer que tal fundamento resida12.” (RGV, AA, 6:21) Neste sentido, os conceitos de livre-arbítrio, propensão e disposição são características de uma natureza humana, que são derivadas das condições de possibilidade das proposições
11 Daß wir aber unter dem Menschen, von dem wir sagen, er sei von Natur gut oder böse, nicht den einzelnen verstehen (da alsdann einer als von Natur gut, der andere als böse angenommen werden könnte), sondern die ganze Gattung zu verstehen befugt sind: kann nur weiterhin bewiesen werden, wenn es sich in der anthropologischen Nachforschung zeigt, daß die Gründe, die uns berechtigen, einem Menschen einen von beiden Charaktern als angeboren beizulegen, so beschaffen sind, daß kein Grund ist, einen Menschen davon auszunehmen, und er also von der Gattung gelte.
12 daß hier unter der Natur des Menschen nur der subjective Grund des Gebrauchs seiner Freiheit überhaupt (unter objectiven moralischen Gesetzen), der vor aller in die Sinne fallenden That vorhergeht, verstanden werde; dieser Grund mag nun liegen, worin er wolle.
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sintéticas a priori práticas e essas características nos permitem predicar a natureza humana como boa ou má. Dito isso, agora examinaremos o sentido da proposição “o homem é mau por natureza”.
Loparic (2007) defende que Kant desenvolve uma antropologia moral, em A Religião nos limites da simples razão, esse discurso antropológico visa examinar de que maneira os predicados moralmente bom e moralmente mau podem ser aplicados à natureza humana. Nessa obra, Kant compreende por natureza humano a atividade do arbítrio em incorporar um princípio na máxima, que pode ser tanto a lei moral quanto uma inclinação. (RGV, AA, 6:21) O pesquisador defende que a ideia de ato do arbítrio introduz uma perspectiva antropológica nessa obra, porque ao analisar “[...] o que é implícito no conceito do ato sensível moralmente bom ou mau, Kant introduz na sua antropologia moral um conceito totalmente novo: o de uma práxis a priori que estabelece as condições a priori, não teóricas, mas práticas, de possibilidade desse tipo de ato.” (LOPARIC, 2007. p.89) Em outras palavras, de acordo com o pesquisador os três níveis de propensão para o mal, a fragilidade, a impureza e malignidade, são atos do arbítrio, pois tratam das condições que antecedem qualquer ato sensível e tratam da aquisição do mal pela natureza humana
De acordo com Loparic (2007), a explicação de que maneira houve a aquisição do mal pela natureza humana é produto de uma teodiceia da razão, visto que Kant utiliza a narrativa bíblica para explicar de que maneira isso ocorreu. É importante observar, que essa narrativa não é composta por eventos naturais, porque a narrativa bíblica de Adão e de Eva é uma ficção da nossa razão, logo a causa da aquisição do mal pela natureza humana não é um acontecimento físico, ou seja, o nascimento do homem não é capaz de explicar isso, mas uma teodiceia da razão.
Em seu trabalho, Loparic se limita em apenas demonstrar que a propensão para o mal e a disposição para o bem constituem uma história moral pura, por causa da impossibilidade de demostramos temporalmente de que maneiras essas características antropológicas foram adquiridas pela natureza humana, mas podemos evidenciá-las a partir dos efeitos produzidos pela liberdade humana no mundo sensível. Assim, para o pesquisador, o terceiro grau de propensão para o mal é condição a priori de qualquer ato mau, uma vez que tal nos permite predicar a natureza humana como má, porque trata de
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um ato inteligível e cognoscível apenas pela razão. Isso significa que, o terceiro grau de propensão para o mal, a malignidade, é um atributo do caráter inteligível do ser racional finito e que essa característica antropológica nos permite demonstrar de que maneira a natureza humana adquiriu o mal, mesmo que a prova disso seja uma narrativa histórica moral a priori, uma vez que os seus fatos históricos são uma ficção da razão.
Frierson (2013) também defende que a doutrina do mal radical desenvolvida na Religião nos limites da simples razão conduz à antropologia moral, mas ele sugere que nessa obra também encontramos elementos de uma antropologia transcendental. Ele a define da seguinte maneira:
a antropologia transcendental da vontade fornece em particular uma prova (prática) que é um “homo noumenon" transcendental livre é capaz de atuar em áreas que são indeterminadas por causas empíricas. A antropologia transcendental da cognição garante que a expressão empírica de suas escolhas transcendentalmente livres serão sempre um "homo phenomenon", suscetível com a descrição empírica em termos de leis naturais13. (FRIERSON 2013, p.42)
Conforme o pesquisador, a característica da antropologia transcendental é fornecer provas práticas de que o homo noumenon é capaz de atuar livre de causas empíricas. Dito isso, a terceiro grau de propensão para o mal, a malignidade, visa demonstrar de que maneira esse homem inteligível é capaz de determinar o seu arbítrio independente de causas empíricas. Em outras palavras, a malignidade da natureza humana é tida como um peccatum originarium, porque ela trata da condição a priori de todo ato mau, que consiste em admitir uma inclinação como uma regra universal. Todavia, esse ato do arbítrio não é temporal, mas um ato cognoscível apenas pela razão. Por esse motivo, Frierson defende que o terceiro nível de propensão pertence à antropologia transcendental, na medida em que determinar as condições a priori de todo ato mau, que é a incorporação da inclinação na máxima como resultado da autodeterminação do arbítrio humano. Em outras palavras, a antropologia transcendental evidência quais são as características antropológicas do sujeito
13 […] the transcendental anthropology of volition in particular provides a (practical) proof that one is a transcendentally free “homo noumenon”, capable of acting on grounds that are undetermined by empirical causes. The transcendental anthropology of cognition ensures that the empirical expression of one’s transcendentally free choices will always be a “homo phenomenon”, susceptible to empirical description in terms of natural laws.
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numênico, que fundamentam a pesquisa empírica da natureza humana. Em outras palavras, a antropologia transcendental prática fornece as características antropológicas universais da espécie humana, na medida em que tais não podem ser abstraídas da experiência, mas são deduzidas como necessárias, mas podem ser descritas do ponto de vista fenomênico.
De acordo com Loparic (2007) e Frierson (2013), a malignidade, o terceiro grau de propensão para o mal, trata de um ato formal do arbítrio inteligível do ser racional finito, porque estabelece as condições a priori da possibilidade de uma ação má. Concordamos com os pesquisadores, mas defendemos que os dois primeiros graus de propensão para o mal, a fragilidade e a impureza, são tematizados a partir do nosso conhecimento empírico acerca da nossa natureza humana, ou seja, são problematizados através do que fomenta ou obstaculiza a execução da lei moral pelo ser humano e, por isso, a fragilidade e a impureza pertencem à antropologia moral. Em outras palavras, os dois primeiros graus de propensão pertencem à antropologia moral, porque inclui o conhecimento do nosso mundo sensível e a faculdade moral é investigada a partir do conhecimento empírico que temos dos seres humanos.
Em contrapartida à fragilidade e à impureza, a malignidade trata de um ato formal do arbítrio, porque o ser humano conscientemente admite a inclinação como causa da sua ação moral. Essa característica antropológica diz respeito à condição formal de todo ato mal e, além disso, ela é uma característica do caráter inteligível do ser racional finito. Assim, ao atribuímos o predicado “mau por natureza” ao sujeito do juízo, estamos asserindo que a espécie humana é má devido a condição formal do arbítrio inteligível em admitir uma inclinação como causa da ação. Mas, esse ato formal do arbítrio não contrária o conceito positivo de liberdade, entendido aqui como autonomia da vontade. Em outras palavras, o mal é resultado de uma escolha livre, que subordina a lei moral aos desejos não-morais. Por essa razão, defendemos que a malignidade (a doutrina do mal radical) estabelece as condições a priori de todo ato mau, porque trata de uma característica antropológica do caráter inteligível do ser racional finito.
Em A Religião nos limites da simples razão, Kant esclarece que o mal deve ser compreendido como uma propensão constitutiva da natureza humana, pois ele é algo radicado nela. De acordo com Kant, “por propensão (propensio) se entende o fundamento
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subjetivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concupsicentia), na medida em que ela é contingente para a humanidade em geral14.” (RGV, AA, 6: 28) É importante observar, que a inclinação é uma condição subjetiva, ela ilustra uma característica antropologia da espécie, que é a tendência dos seres humanos incorporam a inclinação em suas máximas. Por isso, essa condição antropológica da natureza humana é chamada por Kant de mal radical, ela é radical porque está enraizada na natureza humana como uma característica do gênero humano e não pode ser totalmente neutralizada. Em vista disso, o mal não é uma entidade ontológica, ele é definido através de um ato do arbítrio, que admite uma inclinação como um princípio determinante do querer.
Em relação à ideia da transformação de uma inclinação em uma regra universal pelo arbítrio, Kant elenca três níveis dessa corrupção da máxima, que são os seguintes:
primeiro é a debilidade do coração humano na observância das máximas adotadas em geral, ou fragilidade da natureza humana; em segundo lugar, a inclinação para misturar móbiles imorais com morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem), isto é, a impureza; em terceiro lugar, a inclinação para o perfilhamento de máximas más, isto é, a malignidade da natureza humana ou do coração humano15. (RGV, AA, 6:29)
O primeiro nível de propensão é a fragilidade (fragilitas) da natureza humana, que pode ser expressa pela queixa do Apostolo Paulo: “efetivamente, eu não compreendo nada do que faço: o que eu quero, não faço, mas o que odeio, faço-o. Ora, se faço o que não quero, estou de acordo com a lei e reconheço que ela é boa, não sou eu, pois, quem age assim, mas o pecado que habita em mim.” (Romanos 7, 15-16) Em sua queixa, Paulo afirma desejar realizar o bem enquanto uma decisão racional sua, mas em comparação com a inclinação, a lei moral é mais fraca, porque o agente moral satisfaz a sua inclinação em detrimento ao seu dever moral. Apesar disso, a vontade do seu espírito é de realizar o dever por respeito à lei moral, contudo, devido a fragilidade da sua natureza, ele realiza o mal que não deseja. Em outras palavras, o homem objetiva realizar o bem, mas a lei moral
14 Unter dem Hange (propensio) verstehe ich den subjectiven Grund der Möglichkeit einer Neigung (habituellen Begierde, concupiscentia), sofern sie für die Menschheit überhaupt zufällig ist.
15 Erstlich ist es die Schwäche des menschlichen Herzens in Befolgung genommener Maximen überhaupt,
oder die Gebrechlichkeit der menschlichen Natur; zweitens der Hang zur Vermischung unmoralischer Triebfedern mit den moralischen (selbst wenn es in guter Absicht und unter Maximen des Guten | geschähe),
d.i. die Unlauterkeit; drittens der Hang zur Annehmung böser Maximen, d.i. die Bösartigkeit der menschlichen Natur, oder des menschlichen Herzens.
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em comparação com a inclinação é mais fraca por causa da fragilidade da sua vontade, por consequência disso, o agente realiza a fruição de uma inclinação que não estava admitida na máxima. Segundo Baron (1995) e Borges (2012), nesse grau de propensão a inclinação não é admitida pelo arbítrio humano como o princípio determinante da máxima, mas, por causa da fraqueza da vontade humana, o homem executa a ação segunda as suas inclinações e não de acordo com o bem admitido na máxima.
O segundo nível de propensão é a impureza (impuritas, improbitas), nesse caso a máxima é considerada boa segundo o seu resultado e não de acordo com o princípio subjetivo do querer, porque a lei moral não foi admitida como o motivo suficiente da ação. Parafraseando Kant, muitas ações conforme ao dever não são realizadas por dever. Por razão disso, o respeito à lei não é o que motiva suficiente do arbítrio, mas sim uma inclinação. Neste grau de propensão para o mal, o resultado alcançado na ação pode até ser bom, mas o princípio subjetivo motivador da ação não é a lei moral, mas uma inclinação. Deste modo, o agente moral até realiza ações conforme ao dever, porém a lei moral não é o motivo determinante do seu arbítrio. Diferentemente do que acontece na fragilidade, na impureza o efeito da ação pode ser considerado bom, mas essa ação é conforme o dever e não por dever, porque o bem não foi admitido pelo livre arbítrio como o princípio determinante da máxima. Assim, podemos afirmar que nesse grau de propensão a lei moral fica subordinada às inclinações.
O terceiro nível de propensão para o mal é a malignidade (vitiositas, pravitas), o estado de corrupção (corruptio), que segundo Kant é a deflexão da ordem moral, pois o ser racional finito incorpora a inclinação na sua máxima, isto significa que o mal é admitido pelo arbítrio como um princípio determinante do querer. Diferente dos dois primeiros graus de propensão para o mal, no terceiro cabe a responsabilização moral do homem, porque a inclinação é incorporada conscientemente como fundamento da máxima moral, ou seja, essa incorporação é resultado da autodeterminação do agente moral. Enquanto nos dois primeiros níveis de propensões para o mal cabe apenas a culpa, no último cabe a dolus malus, porque o agente moral admite intencionalmente a inclinação como o princípio subjetivo do querer, que não ocorre nos dois primeiros graus. Assim, diferente dos dois primeiros graus, no terceiro a máxima moral é corrompida na sua raiz, porque o agente moral intencionalmente admite o mal como o princípio determinante do seu arbítrio.
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Segundo Kant, “o que o homem em sentido moral é ou deve chegar a ser, bom ou mau, deve ele próprio fazê-lo ou tê-lo feito. Uma ou outra coisa tem de ser um efeito do seu livre arbítrio [...]16.” (RGV, AA, 6:44) Em uma nota de rodapé (RGV, AA, 6:50), Kant esclarece que o conceito de liberdade do arbítrio é derivado da nossa consciência da lei moral, porque deduzimos o conceito de arbítrio da nossa própria consciência da lei moral. Mas, isso não significa que o nosso arbítrio é determinado exclusivamente pela lei moral, pelo contrário, ele também é determinado pelas nossas inclinações. Assim, a adjetivação da natureza humana como boa ou má é efeito da atividade do nosso livre arbítrio, pois devemos admitir a lei moral ou a inclinação como princípio fundante da nossa ação. Isso implica em aceitar, que a decisão de como devemos agir não é exclusivamente racional, pois há forças em nossa natureza humana que nos impulsiona na ação. Deste modo, nos dois primeiros graus de propensões ocorrem uma sobredeterminação entre a lei moral e a inclinação, porque as ações voluntárias têm os seus fundamentos determinantes no tempo que as precede, porém muitas vezes isso dificulta a capacidade de deliberação do sujeito, que não consegue discernir entre a lei moral e as inclinações (paixões e afetos). Para entendemos essa questão, precisamos analisar dois conceitos chaves, que são o de propensão e de ato do livre arbítrio.
Conforme Kant, “toda a propensão ou é física, isto é, pertence ao arbítrio como ser natural, ou é moral, isto é, pertence ao arbítrio do mesmo como ser racional17.” (RGV, AA, 6:31) A propensão em sentido moral trata de uma propriedade do caráter inteligível do ser racional finito, porque ela “é entendida como o fundamento subjetivo da adoção da máxima que fundamenta a ação; logo, a inclinação não é um ato moral, mas a condição precedente de todo o ato.18” (RGV, AA, 6:31) Em outras palavras, a propensão deve ser entendida como o princípio subjetivo determinante da ação, na medida em que a inclinação é incorporada na máxima. Por isso, a inclinação deve ser entendida como uma condição formal de determinação do arbítrio, enquanto uma propriedade do caráter inteligível do ser racional finito. Dito de outro modo, a inclinação é tematizada como a condição formal de
16 Was der Mensch im moralischen Sinne ist oder werden soll, gut oder böse, dazu muß er sich selbst machen oder gemacht haben. Beides muß eine Wirkung seiner freien Willkür sein [...].
17 Aller Hang ist entweder physisch, d.i. er gehört zur Willkür des Menschen als Naturwesens; oder er ist moralisch, d.i. zur Willkür desselben als moralischen Wesens gehörig.
18 [...] versteht man unter dem Begriffe eines Hanges einen subjectiven Bestimmungsgrund der Willkür, der
vor jeder That vorhergeht, mithin selbst noch nicht That ist [...]
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todo ato mau, ou seja, a ação moral má deve ser resultado de um ato do livre arbítrio, uma vez que o agente moral admite a lei moral ou a inclinação como uma regra universal do seu querer.
Para compreendemos de que maneira a inclinação para o mal se estrutura, é necessário analisarmos a ideia de ato do arbítrio desenvolvido na Religião nos limites da simples razão. Conforme Kant,
a expressão um ato [Tat] em geral pode aplicar-se tanto ao uso da liberdade, pelo qual é acolhida no arbítrio a máxima suprema (conforme ou adversa à lei), como também àquele em que as próprias ações (segundo a sua matéria, isto é, no tocante aos objetos do arbítrio) se levam a caba de acordo com aquela máxima19. (RGV, AA, 6:31)
O conceito de ato indica a ação livre do agente moral, que que admite como motivo da sua ação a lei moral ou uma inclinação. Por razão disso, a expressão “um ato” possui dois significados qualitativamente distintos. O primeiro significado trata da ação do livre arbítrio em acolher como motivo determinante da máxima um princípio conforme ou adverso a lei moral, por isso, essa acepção de ato ocupa-se da atividade do livre arbítrio no sentido formal. O segundo significado ocupa-se da determinação do livre arbítrio segundo os fins postulados pelas nossas inclinações e desejos, em razão disso, essa acepção trata da execução da ação segundo os objetos dos nossos sentidos.
Em relação à designação de ato vinculada ao caráter inteligível do ser humano, Kant afirma que "a inclinação para o mal é, pois, um ato no primeiro significado (peccatum originarium) e, ao mesmo tempo, o fundamento formal de todo o ato - tomado na segunda acepção - contrário à lei, ato que, quanto à matéria, é antagônico à mesma lei e se chama vício (peccatum derivativum)20." (RGV, AA, 6:31) A inclinação tida como uma peccatum originarium ocupa-se da condição formal de determinação do arbítrio humano, pois devido a força que lei moral exerce na vontade do ser racional finito, o homem intui a si mesmo como um ser livre, que pode admitir a lei moral ou a inclinação como o princípio subjetivo do querer. Por causa disso, o peccatum originarium é o fundamento subjetivo universal da
19 Es kann aber der Ausdruck von einer That überhaupt sowohl von demjenigen Gebrauch der Freiheit gelten, wodurch die oberste Maxime (dem Gesetze gemäß oder zuwider) in die Willkür aufgenommen, als auch von demjenigen, da die Handlungen selbst (ihrer Materie nach, d.i. die Objecte der Willkür betreffend) jener Maxime gemäß ausgeübt werden.
20 der Hang zum Bösen ist nun That in der ersten Bedeutung (peccatum originarium) und zugleich der formale Grund aller gesetzwidrigen That im zweiten Sinne genommen, welche der Materie nach demselben widerstreitet und Laster (peccatum derivativum) genannt wird.
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admissão de uma transgressão na nossa máxima e o que nos permite predicar a natureza humana como má, porque essa transgressão demarca uma característica da espécie humana e não apenas do indivíduo.
O ato enquanto um peccatum originarium é uma característica antropológica do caráter inteligível do ser racional finito. Do ponto de vista lógico, no caso da proposição “o homem é mau por natureza”, o predicado contém o sujeito-conceito, por isso podemos afirmar que esse juízo é assertórico. Além disso, o predicado expressa uma característica antropológica do sujeito-conceito, que é a capacidade do agente moral em incorporar uma inclinação na sua máxima e, por isso, ela torna-se a causa da ação. Segundo Kant, “não devemos perguntar pela origem temporal deste ato, mas devemos indagar somente a sua origem racional, a fim de determinar e, se possível, explicar por ele a propensão, isto é, o fundamento subjetivo universal da admissão de uma transgressão na nossa máxima, se é que existe tal fundamento21.” (RGV, AA, 6:41) Assim, o terceiro grau de propensão, a malignidade é classificada como um peccatum originarium, porque trata do fundamento formal de todo ato mau, que neste caso diz respeito às ações contrárias a lei moral. Em outras palavras, o peccatum originarium é a característica antropológica da natureza humana que nos permite atribuir o predicado mau para toda a espécie humana. Por essa razão, esse ato deve ser compreendido como um ato formal e cognoscível apenas pela razão e trata de um ato atemporal.
A malignidade é o fundamento de toda ação má e uma característica antropologia do caráter inteligível do ser racional finito. Kant chama essa característica antropologia de mal radical, porque ela está entretecida na humanidade, então “[...] podemos chamar a esta propensão uma inclinação natural para o mal, e, visto que humanidade deve ser, no entanto, sempre auto culpada, podemos denominá-la como um mal radical inato (mas nem por isso mesmo contraídos por nós próprios) na natureza humana22.” (RGV, AA, 6:32) Essa característica antropologia é chamada por Kant de mal radical e, por isso, deve ser tida
21 Wir können also nicht nach dem Zeitursprunge, sondern müssen bloß nach dem Vernunftursprunge dieser fragen, um darnach den Hang, d.i. den allgemeinen Grund der einer Übertretung in unsere Maxime, wenn ein solcher ist, zu bestimm allgemeinen Grund der Aufnehmung einer Übertretung in unsere Maxime, wenn ein solcher ist, zu bestimmen und wo möglich zu erklären.
22 (...) so werden wir diesen einen natürlichen Hang zum Bösen, und da er doch immer selbstverschuldet sein muß, ihn selbst ein radikales, angeborenes, (nichts desto weniger aber uns von uns selbst zugezogenes) Böse in der menschlichen Natur nennen können.
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como inata, na medida em que é uma característica antropológica da espécie humana. Assim, o terceiro grau de propensão ocupa-se do fundamento formal determinante do arbítrio e trata da corrupção do fundamento determinante da máxima, o que nos permite afirmar que o mal está radicado na natureza humana.
Diferentemente do terceiro nível, os dois primeiros são derivados analiticamente do terceiro, pois eles tratam de que maneira o arbítrio é determinado do ponto de vista da constituição da nossa natureza humana, ou seja, do nosso caráter empírico. Assim, os dois primeiros graus de propensão para o mau ocupam-se da investigação da aplicação da lei moral a partir das condições de exequibilidade dela pelos seres racionais finitos. Em contrapartida, a malignidade trata do fundamento formal de determinação do arbítrio do ser racional, na medida em que arbítrio admite uma inclinação como uma lei universal. Por fim, se investigarmos os três níveis de propensão do ponto de vista antropológico, compreendemos que os dois primeiros graus de propensão para o mal tratam da investigação do problema da ação má do ponto de vista do nosso caráter empírico, o que inviabiliza a predicação da espécie humana como má, mas apenas o caráter particular do ser racional finito.
O terceiro nível de propensão, a malignidade, ocupa-se da condição formal de determinação do arbítrio, chamamos o ato do arbítrio em acolher a inclinação como causa da ação de uma característica antropológica do caráter inteligível do ser racional. Por essa razão, defendemos que a malignidade pertence à antropologia transcendental, pois esse grau de propensão se ocupa das condições a priori de toda a ação má, o que nos permite afirmar que o homem é mau por natureza.
Ao problematizarmos a questão da imputabilidade da ação má em Kant, o problema central entre os comentadores se delimita em torno da seguinte questão: como conciliar o rigorismo moral e a doutrina do mal radical? Na perspectiva dos pesquisadores, por exemplo, para Allison (1996) isso é possível, pois a malignidade trata de um ato formal do arbítrio, na medida em que o arbítrio incorpora a inclinação na máxima. Desta maneira, subordinando a lei moral a desejos não-morais. Esse ato não contraria a ideia de liberdade positiva desenvolvida na Fundamentação da metafísica dos costumes, porque ele trata da
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capacidade da vontade em dar a si mesma uma lei, ou seja, a ação má é uma ação autônoma e não heterônoma. Em contrapartida, Baron (1995) e Borges (2012) sugerem a tese da fraqueza da vontade, pois nos dois primeiros níveis de propensão, a fragilidade e a impureza, não ocorrem a incorporação da inclinação na máxima, mas devido a fraqueza da natureza humana, o bem almejado na ação não é realizado. A tese da incorporação e a da fraqueza da vontade são vieses interpretativos inconciliáveis, por isso propomos um viés alternativo, que é interpretar os três níveis de propensão por intermédio de uma indagação antropológica.
Loparic (2007) e Frierson (2013) defendem que a redução da religião à moral possibilitou o desenvolvimento de uma antropologia moral, porque segundo o primeiro a doutrina do mal radical introduz o conceito de ato do livre arbítrio, que estabelece as condições a priori de qualquer ato empírico do arbítrio. Por essa razão, Loparic sugere que a doutrina do mal radical articula os elementos de uma antropologia moral, na medida em que problematiza o que viabiliza ou inviabiliza a realização da lei moral por seres humanos. Para Loparic, a análise dessas condições a priori de todo ato do arbítrio fundamenta uma história moral a priori, essa narrativa resolve o problema da aquisição do mal pela natureza humana. Frierson defende que as condições a priori de execução de qualquer ato mau (a doutrina do mal radical) pertencem ao domínio de uma antropologia transcendental, na medida em que estabelece as leis a priori da ação moral. Ambos os comentadores defendem que a doutrina do mal radical estabelece as condições normativas da ação má em Kant, por essa razão defendemos que a proposição “o homem é mau por natureza” é um juízo sintética a priori prático.
Defendemos que a proposição "o homem é mau por natureza" é um juízo sintético a priori prático, uma vez que Kant compreende por natureza humano o fundamento subjetivo do uso da liberdade em geral, o que deverá preceder qualquer ato que se apresente aos sentidos. Por causa disso, a condição formal de determinação do arbítrio é explicada pela teoria da incorporação da inclinação na máxima, que é o terceiro grau de propensão para o mal. Assim, a malignidade apenas explica a condição formal determinante do arbítrio e isso nos autoriza afirmar existir uma propensão inata na espécie humana para o mal, que foi chamada por Kant de mal radical. Destarte, esse viés interpretativo não explica a fragilidade e a impureza, na medida em que nesses graus de
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propensão não ocorre a inclusão da inclinação na máxima como destaca a teoria da fraqueza da vontade desenvolvida por Baron (1992). Dito isso, indicaremos uma alternativa aos dois vieses interpretativos, proporemos tematizar a questão do mal por intermédio da indagação kantiana de como são possíveis os juízos sintéticos a priori, pois indicamos que a concepção de natureza humana na Religião nos limites da simples razão é derivada analiticamente dessas condições. Isso implica em defender a tese de que no texto em questão Kant desenvolve, por um lado, uma antropologia moral, a qual nos permite demonstrar a aplicabilidade dos conceitos religiosos à natureza humana e, por outro lado, uma antropologia transcendental que estabelece as condições normativas a priori de todo ação má.
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