CON-TEXTOS KANTIANOS.

International Journal of Philosophy N.o 7, Junio 2018, pp. 252-274

ISSN: 2386-7655

Doi: 10.5281/zenodo.1299112


O problema do mal na Religião nos limites da simples razão

The problem of evil in the Religion in the limits of the simple reason


JORGE VANDERLEI COSTA DA CONCEIÇÃO

Unicamp-SP, Brasil


Resumo


O presente artigo objetiva demonstrar que a proposição "o homem é mau por natureza" é sintética a priori prática, uma vez que, o terceiro grau de propensão, a malignidade, trata de uma caraterística antropológica do caráter inteligível do ser racional finito. Para validar a nossa hipótese interpretativa, afirmaremos que os dois primeiros graus de propensão, a fragilidade e a impureza, se ocupam do caráter sensível do ser humano, pois ele é sobredeterminado tanto pela inclinação quanto pela lei moral, mas isso não significa que o homem admitiu a inclinação como uma regra do seu arbítrio, mas apenas a sua dificuldade de lidar com esses diferentes motivos na execução da ação. Diferente desses níveis, a malignidade pressupõe admissão da inclinação como uma regra universal do arbítrio e conforme Kant esse ato do arbítrio é inteligível e cognoscível apenas pela razão, pois ele visa viabilizar a predicação da natureza humana como má, o que não pode ocorrer mediante qualquer característica antropológica empírica, mas apenas mediante a predicação do caráter inteligível do ser racional finito. Por essa razão, defenderemos que a proposição "o homem é mau por natureza" é sintética a priori prática.

Palavras-chaves


Propensão; Fraqueza da vontade; Tese da incorporação; Mal radical; Inclinação.


Abstract


The present article aims to demonstrate that the proposition "the man is evil by nature" is synthetic to the practical a priori, once that, the third degree of propensity, the malignancy is about a


Em A Religião nos limites da simples razão, Kant esclarece que o mal deve ser compreendido como uma propensão constitutiva da natureza humana, pois ele é algo radicado nela. De acordo com Kant, “por propensão (propensio) se entende o fundamento

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subjetivo da possibilidade de uma inclinação (desejo habitual, concupsicentia), na medida em que ela é contingente para a humanidade em geral14.” (RGV, AA, 6: 28) É importante observar, que a inclinação é uma condição subjetiva, ela ilustra uma característica antropologia da espécie, que é a tendência dos seres humanos incorporam a inclinação em suas máximas. Por isso, essa condição antropológica da natureza humana é chamada por Kant de mal radical, ela é radical porque está enraizada na natureza humana como uma característica do gênero humano e não pode ser totalmente neutralizada. Em vista disso, o mal não é uma entidade ontológica, ele é definido através de um ato do arbítrio, que admite uma inclinação como um princípio determinante do querer.

Em relação à ideia da transformação de uma inclinação em uma regra universal pelo arbítrio, Kant elenca três níveis dessa corrupção da máxima, que são os seguintes:


primeiro é a debilidade do coração humano na observância das máximas adotadas em geral, ou fragilidade da natureza humana; em segundo lugar, a inclinação para misturar móbiles imorais com morais (ainda que tal acontecesse com boa intenção e sob as máximas do bem), isto é, a impureza; em terceiro lugar, a inclinação para o perfilhamento de máximas más, isto é, a malignidade da natureza humana ou do coração humano15. (RGV, AA, 6:29)


O primeiro nível de propensão é a fragilidade (fragilitas) da natureza humana, que pode ser expressa pela queixa do Apostolo Paulo: “efetivamente, eu não compreendo nada do que faço: o que eu quero, não faço, mas o que odeio, faço-o. Ora, se faço o que não quero, estou de acordo com a lei e reconheço que ela é boa, não sou eu, pois, quem age assim, mas o pecado que habita em mim.” (Romanos 7, 15-16) Em sua queixa, Paulo afirma desejar realizar o bem enquanto uma decisão racional sua, mas em comparação com a inclinação, a lei moral é mais fraca, porque o agente moral satisfaz a sua inclinação em detrimento ao seu dever moral. Apesar disso, a vontade do seu espírito é de realizar o dever por respeito à lei moral, contudo, devido a fragilidade da sua natureza, ele realiza o mal que não deseja. Em outras palavras, o homem objetiva realizar o bem, mas a lei moral


14 Unter dem Hange (propensio) verstehe ich den subjectiven Grund der Möglichkeit einer Neigung (habituellen Begierde, concupiscentia), sofern sie für die Menschheit überhaupt zufällig ist.

15 Erstlich ist es die Schwäche des menschlichen Herzens in Befolgung genommener Maximen überhaupt,

oder die Gebrechlichkeit der menschlichen Natur; zweitens der Hang zur Vermischung unmoralischer Triebfedern mit den moralischen (selbst wenn es in guter Absicht und unter Maximen des Guten | geschähe),

d.i. die Unlauterkeit; drittens der Hang zur Annehmung böser Maximen, d.i. die Bösartigkeit der menschlichen Natur, oder des menschlichen Herzens.


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em comparação com a inclinação é mais fraca por causa da fragilidade da sua vontade, por consequência disso, o agente realiza a fruição de uma inclinação que não estava admitida na máxima. Segundo Baron (1995) e Borges (2012), nesse grau de propensão a inclinação não é admitida pelo arbítrio humano como o princípio determinante da máxima, mas, por causa da fraqueza da vontade humana, o homem executa a ação segunda as suas inclinações e não de acordo com o bem admitido na máxima.

O segundo nível de propensão é a impureza (impuritas, improbitas), nesse caso a máxima é considerada boa segundo o seu resultado e não de acordo com o princípio subjetivo do querer, porque a lei moral não foi admitida como o motivo suficiente da ação. Parafraseando Kant, muitas ações conforme ao dever não são realizadas por dever. Por razão disso, o respeito à lei não é o que motiva suficiente do arbítrio, mas sim uma inclinação. Neste grau de propensão para o mal, o resultado alcançado na ação pode até ser bom, mas o princípio subjetivo motivador da ação não é a lei moral, mas uma inclinação. Deste modo, o agente moral até realiza ações conforme ao dever, porém a lei moral não é o motivo determinante do seu arbítrio. Diferentemente do que acontece na fragilidade, na impureza o efeito da ação pode ser considerado bom, mas essa ação é conforme o dever e não por dever, porque o bem não foi admitido pelo livre arbítrio como o princípio determinante da máxima. Assim, podemos afirmar que nesse grau de propensão a lei moral fica subordinada às inclinações.

O terceiro nível de propensão para o mal é a malignidade (vitiositas, pravitas), o estado de corrupção (corruptio), que segundo Kant é a deflexão da ordem moral, pois o ser racional finito incorpora a inclinação na sua máxima, isto significa que o mal é admitido pelo arbítrio como um princípio determinante do querer. Diferente dos dois primeiros graus de propensão para o mal, no terceiro cabe a responsabilização moral do homem, porque a inclinação é incorporada conscientemente como fundamento da máxima moral, ou seja, essa incorporação é resultado da autodeterminação do agente moral. Enquanto nos dois primeiros níveis de propensões para o mal cabe apenas a culpa, no último cabe a dolus malus, porque o agente moral admite intencionalmente a inclinação como o princípio subjetivo do querer, que não ocorre nos dois primeiros graus. Assim, diferente dos dois primeiros graus, no terceiro a máxima moral é corrompida na sua raiz, porque o agente moral intencionalmente admite o mal como o princípio determinante do seu arbítrio.


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Segundo Kant, “o que o homem em sentido moral é ou deve chegar a ser, bom ou mau, deve ele próprio fazê-lo ou tê-lo feito. Uma ou outra coisa tem de ser um efeito do seu livre arbítrio [...]16.” (RGV, AA, 6:44) Em uma nota de rodapé (RGV, AA, 6:50), Kant esclarece que o conceito de liberdade do arbítrio é derivado da nossa consciência da lei moral, porque deduzimos o conceito de arbítrio da nossa própria consciência da lei moral. Mas, isso não significa que o nosso arbítrio é determinado exclusivamente pela lei moral, pelo contrário, ele também é determinado pelas nossas inclinações. Assim, a adjetivação da natureza humana como boa ou má é efeito da atividade do nosso livre arbítrio, pois devemos admitir a lei moral ou a inclinação como princípio fundante da nossa ação. Isso implica em aceitar, que a decisão de como devemos agir não é exclusivamente racional, pois há forças em nossa natureza humana que nos impulsiona na ação. Deste modo, nos dois primeiros graus de propensões ocorrem uma sobredeterminação entre a lei moral e a inclinação, porque as ações voluntárias têm os seus fundamentos determinantes no tempo que as precede, porém muitas vezes isso dificulta a capacidade de deliberação do sujeito, que não consegue discernir entre a lei moral e as inclinações (paixões e afetos). Para entendemos essa questão, precisamos analisar dois conceitos chaves, que são o de propensão e de ato do livre arbítrio.

Conforme Kant, “toda a propensão ou é física, isto é, pertence ao arbítrio como ser natural, ou é moral, isto é, pertence ao arbítrio do mesmo como ser racional17.” (RGV, AA, 6:31) A propensão em sentido moral trata de uma propriedade do caráter inteligível do ser racional finito, porque ela “é entendida como o fundamento subjetivo da adoção da máxima que fundamenta a ação; logo, a inclinação não é um ato moral, mas a condição precedente de todo o ato.18” (RGV, AA, 6:31) Em outras palavras, a propensão deve ser entendida como o princípio subjetivo determinante da ação, na medida em que a inclinação é incorporada na máxima. Por isso, a inclinação deve ser entendida como uma condição formal de determinação do arbítrio, enquanto uma propriedade do caráter inteligível do ser racional finito. Dito de outro modo, a inclinação é tematizada como a condição formal de


16 Was der Mensch im moralischen Sinne ist oder werden soll, gut oder böse, dazu muß er sich selbst machen oder gemacht haben. Beides muß eine Wirkung seiner freien Willkür sein [...].


17 Aller Hang ist entweder physisch, d.i. er gehört zur Willkür des Menschen als Naturwesens; oder er ist moralisch, d.i. zur Willkür desselben als moralischen Wesens gehörig.

18 [...] versteht man unter dem Begriffe eines Hanges einen subjectiven Bestimmungsgrund der Willkür, der

vor jeder That vorhergeht, mithin selbst noch nicht That ist [...]

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todo ato mau, ou seja, a ação moral má deve ser resultado de um ato do livre arbítrio, uma vez que o agente moral admite a lei moral ou a inclinação como uma regra universal do seu querer.

Para compreendemos de que maneira a inclinação para o mal se estrutura, é necessário analisarmos a ideia de ato do arbítrio desenvolvido na Religião nos limites da simples razão. Conforme Kant,


a expressão um ato [Tat] em geral pode aplicar-se tanto ao uso da liberdade, pelo qual é acolhida no arbítrio a máxima suprema (conforme ou adversa à lei), como também àquele em que as próprias ações (segundo a sua matéria, isto é, no tocante aos objetos do arbítrio) se levam a caba de acordo com aquela máxima19. (RGV, AA, 6:31)


O conceito de ato indica a ação livre do agente moral, que que admite como motivo da sua ação a lei moral ou uma inclinação. Por razão disso, a expressão “um ato” possui dois significados qualitativamente distintos. O primeiro significado trata da ação do livre arbítrio em acolher como motivo determinante da máxima um princípio conforme ou adverso a lei moral, por isso, essa acepção de ato ocupa-se da atividade do livre arbítrio no sentido formal. O segundo significado ocupa-se da determinação do livre arbítrio segundo os fins postulados pelas nossas inclinações e desejos, em razão disso, essa acepção trata da execução da ação segundo os objetos dos nossos sentidos.

Em relação à designação de ato vinculada ao caráter inteligível do ser humano, Kant afirma que "a inclinação para o mal é, pois, um ato no primeiro significado (peccatum originarium) e, ao mesmo tempo, o fundamento formal de todo o ato - tomado na segunda acepção - contrário à lei, ato que, quanto à matéria, é antagônico à mesma lei e se chama vício (peccatum derivativum)20." (RGV, AA, 6:31) A inclinação tida como uma peccatum originarium ocupa-se da condição formal de determinação do arbítrio humano, pois devido a força que lei moral exerce na vontade do ser racional finito, o homem intui a si mesmo como um ser livre, que pode admitir a lei moral ou a inclinação como o princípio subjetivo do querer. Por causa disso, o peccatum originarium é o fundamento subjetivo universal da


19 Es kann aber der Ausdruck von einer That überhaupt sowohl von demjenigen Gebrauch der Freiheit gelten, wodurch die oberste Maxime (dem Gesetze gemäß oder zuwider) in die Willkür aufgenommen, als auch von demjenigen, da die Handlungen selbst (ihrer Materie nach, d.i. die Objecte der Willkür betreffend) jener Maxime gemäß ausgeübt werden.

20 der Hang zum Bösen ist nun That in der ersten Bedeutung (peccatum originarium) und zugleich der formale Grund aller gesetzwidrigen That im zweiten Sinne genommen, welche der Materie nach demselben widerstreitet und Laster (peccatum derivativum) genannt wird.

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admissão de uma transgressão na nossa máxima e o que nos permite predicar a natureza humana como má, porque essa transgressão demarca uma característica da espécie humana e não apenas do indivíduo.

O ato enquanto um peccatum originarium é uma característica antropológica do caráter inteligível do ser racional finito. Do ponto de vista lógico, no caso da proposição “o homem é mau por natureza”, o predicado contém o sujeito-conceito, por isso podemos afirmar que esse juízo é assertórico. Além disso, o predicado expressa uma característica antropológica do sujeito-conceito, que é a capacidade do agente moral em incorporar uma inclinação na sua máxima e, por isso, ela torna-se a causa da ação. Segundo Kant, “não devemos perguntar pela origem temporal deste ato, mas devemos indagar somente a sua origem racional, a fim de determinar e, se possível, explicar por ele a propensão, isto é, o fundamento subjetivo universal da admissão de uma transgressão na nossa máxima, se é que existe tal fundamento21.” (RGV, AA, 6:41) Assim, o terceiro grau de propensão, a malignidade é classificada como um peccatum originarium, porque trata do fundamento formal de todo ato mau, que neste caso diz respeito às ações contrárias a lei moral. Em outras palavras, o peccatum originarium é a característica antropológica da natureza humana que nos permite atribuir o predicado mau para toda a espécie humana. Por essa razão, esse ato deve ser compreendido como um ato formal e cognoscível apenas pela razão e trata de um ato atemporal.

A malignidade é o fundamento de toda ação má e uma característica antropologia do caráter inteligível do ser racional finito. Kant chama essa característica antropologia de mal radical, porque ela está entretecida na humanidade, então “[...] podemos chamar a esta propensão uma inclinação natural para o mal, e, visto que humanidade deve ser, no entanto, sempre auto culpada, podemos denominá-la como um mal radical inato (mas nem por isso mesmo contraídos por nós próprios) na natureza humana22.” (RGV, AA, 6:32) Essa característica antropologia é chamada por Kant de mal radical e, por isso, deve ser tida



21 Wir können also nicht nach dem Zeitursprunge, sondern müssen bloß nach dem Vernunftursprunge dieser fragen, um darnach den Hang, d.i. den allgemeinen Grund der einer Übertretung in unsere Maxime, wenn ein solcher ist, zu bestimm allgemeinen Grund der Aufnehmung einer Übertretung in unsere Maxime, wenn ein solcher ist, zu bestimmen und wo möglich zu erklären.

22 (...) so werden wir diesen einen natürlichen Hang zum Bösen, und da er doch immer selbstverschuldet sein muß, ihn selbst ein radikales, angeborenes, (nichts desto weniger aber uns von uns selbst zugezogenes) Böse in der menschlichen Natur nennen können.

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como inata, na medida em que é uma característica antropológica da espécie humana. Assim, o terceiro grau de propensão ocupa-se do fundamento formal determinante do arbítrio e trata da corrupção do fundamento determinante da máxima, o que nos permite afirmar que o mal está radicado na natureza humana.

Diferentemente do terceiro nível, os dois primeiros são derivados analiticamente do terceiro, pois eles tratam de que maneira o arbítrio é determinado do ponto de vista da constituição da nossa natureza humana, ou seja, do nosso caráter empírico. Assim, os dois primeiros graus de propensão para o mau ocupam-se da investigação da aplicação da lei moral a partir das condições de exequibilidade dela pelos seres racionais finitos. Em contrapartida, a malignidade trata do fundamento formal de determinação do arbítrio do ser racional, na medida em que arbítrio admite uma inclinação como uma lei universal. Por fim, se investigarmos os três níveis de propensão do ponto de vista antropológico, compreendemos que os dois primeiros graus de propensão para o mal tratam da investigação do problema da ação má do ponto de vista do nosso caráter empírico, o que inviabiliza a predicação da espécie humana como má, mas apenas o caráter particular do ser racional finito.

O terceiro nível de propensão, a malignidade, ocupa-se da condição formal de determinação do arbítrio, chamamos o ato do arbítrio em acolher a inclinação como causa da ação de uma característica antropológica do caráter inteligível do ser racional. Por essa razão, defendemos que a malignidade pertence à antropologia transcendental, pois esse grau de propensão se ocupa das condições a priori de toda a ação má, o que nos permite afirmar que o homem é mau por natureza.

Considerações finais


Ao problematizarmos a questão da imputabilidade da ação má em Kant, o problema central entre os comentadores se delimita em torno da seguinte questão: como conciliar o rigorismo moral e a doutrina do mal radical? Na perspectiva dos pesquisadores, por exemplo, para Allison (1996) isso é possível, pois a malignidade trata de um ato formal do arbítrio, na medida em que o arbítrio incorpora a inclinação na máxima. Desta maneira, subordinando a lei moral a desejos não-morais. Esse ato não contraria a ideia de liberdade positiva desenvolvida na Fundamentação da metafísica dos costumes, porque ele trata da


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capacidade da vontade em dar a si mesma uma lei, ou seja, a ação má é uma ação autônoma e não heterônoma. Em contrapartida, Baron (1995) e Borges (2012) sugerem a tese da fraqueza da vontade, pois nos dois primeiros níveis de propensão, a fragilidade e a impureza, não ocorrem a incorporação da inclinação na máxima, mas devido a fraqueza da natureza humana, o bem almejado na ação não é realizado. A tese da incorporação e a da fraqueza da vontade são vieses interpretativos inconciliáveis, por isso propomos um viés alternativo, que é interpretar os três níveis de propensão por intermédio de uma indagação antropológica.

Loparic (2007) e Frierson (2013) defendem que a redução da religião à moral possibilitou o desenvolvimento de uma antropologia moral, porque segundo o primeiro a doutrina do mal radical introduz o conceito de ato do livre arbítrio, que estabelece as condições a priori de qualquer ato empírico do arbítrio. Por essa razão, Loparic sugere que a doutrina do mal radical articula os elementos de uma antropologia moral, na medida em que problematiza o que viabiliza ou inviabiliza a realização da lei moral por seres humanos. Para Loparic, a análise dessas condições a priori de todo ato do arbítrio fundamenta uma história moral a priori, essa narrativa resolve o problema da aquisição do mal pela natureza humana. Frierson defende que as condições a priori de execução de qualquer ato mau (a doutrina do mal radical) pertencem ao domínio de uma antropologia transcendental, na medida em que estabelece as leis a priori da ação moral. Ambos os comentadores defendem que a doutrina do mal radical estabelece as condições normativas da ação má em Kant, por essa razão defendemos que a proposição “o homem é mau por natureza” é um juízo sintética a priori prático.

Defendemos que a proposição "o homem é mau por natureza" é um juízo sintético a priori prático, uma vez que Kant compreende por natureza humano o fundamento subjetivo do uso da liberdade em geral, o que deverá preceder qualquer ato que se apresente aos sentidos. Por causa disso, a condição formal de determinação do arbítrio é explicada pela teoria da incorporação da inclinação na máxima, que é o terceiro grau de propensão para o mal. Assim, a malignidade apenas explica a condição formal determinante do arbítrio e isso nos autoriza afirmar existir uma propensão inata na espécie humana para o mal, que foi chamada por Kant de mal radical. Destarte, esse viés interpretativo não explica a fragilidade e a impureza, na medida em que nesses graus de

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propensão não ocorre a inclusão da inclinação na máxima como destaca a teoria da fraqueza da vontade desenvolvida por Baron (1992). Dito isso, indicaremos uma alternativa aos dois vieses interpretativos, proporemos tematizar a questão do mal por intermédio da indagação kantiana de como são possíveis os juízos sintéticos a priori, pois indicamos que a concepção de natureza humana na Religião nos limites da simples razão é derivada analiticamente dessas condições. Isso implica em defender a tese de que no texto em questão Kant desenvolve, por um lado, uma antropologia moral, a qual nos permite demonstrar a aplicabilidade dos conceitos religiosos à natureza humana e, por outro lado, uma antropologia transcendental que estabelece as condições normativas a priori de todo ação má.

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