CON-TEXTOS KANTIANOS.

International Journal of Philosophy N.o 7, Junio 2018, pp. 293-320

ISSN: 2386-7655

Doi: 10.5281/zenodo.1299138


Kant, filósofo da linguagem?


Kant, philosopher of language?1


FERNANDO M. F. SILVA


Centro de Filosofia. Universidade de Lisboa, Portugal


Resumo


Tem-se por um facto indelével que Kant não pensou a questão da linguagem, ou os seus problemas adjacentes, e que a questão não era para o grande filósofo de grande relevância. O presente ensaio propõe-se oferecer um contributo para uma opinião contrária. O objecto da nossa reflexão é a abordagem kantiana ao tópico antropológico da faculdade de designação (Bezeichnungsvermögen, Facultas Signatrix). A saber, propomo-nos abordar a oposição kantiana entre palavra e símbolo, enquanto diferentes aplicações da faculdade de designação; pensar as diferentes disposições das faculdades do ânimo por estas requeridas, e suas diferentes potencialidades de dizer o Eu no mundo; e, uma vez pensada até ao extremo a diferença entre estas, pensar a sugestão kantiana de uma possível cooperação entre palavra e símbolo, como ela tem lugar na metáfora poética.


Palavras-chave


Kant, faculdade de designação, linguagem, palavra, símbolo


Abstract


It is commonly accepted that Kant did not reflect on the question of language, or on its adjacent problems, and that the question was of little relevance for the great philosopher. The present article intends to offer a contribution towards a contrary opinion. The object of our investigation is Kant’s approach to the anthropological topic of the faculty of designation (Bezeichnungsvermögen, Facultas Signatrix). Namely, we propose to approach Kant’s opposition between word and symbol


1 Fernando M. F. Silva. Investigador de Pós-Doutoramento do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. Endereço electrónico: fmfsilva@yahoo.com.


[Recibido: 17 de abril 2018

Aceptado: 16 de mayo 2018]


Fernando Silva


as different applications of the faculty of designation; to reflect on the different dispositions of the faculties of the spirit required by such applications, and their different potentialities of saying the I in the world; and, once we think the difference between the latter to its limit, to present Kant’s suggestion of a possible cooperation between word and symbol, as it takes place in the poetic metaphor.


Keywords


Kant, faculty of designation, language, word, symbol


  1. Introdução. Kant e a questão da linguagem


    A questão da relação entre Kant e a linguagem é ainda hoje uma aparente não- questão, tão pouco se debateu sobre a mesma, e tanto mais univocamente se concluiu que Kant nunca terá dado à questão, e suas múltiplas formas, devida atenção.

    As precoces ressalvas de Hamann e Herder, então dirigidas especialmente ao método crítico do grande filósofo 2 , parecem ter feito mais do que acusar a pretensa omissão de tal vertente do pensamento kantiano. Muito mais do que isso, e a despeito da sua maior ou menor justiça, elas parecem ter traçado o destino da mesma; algo que, aliado ao facto de Kant nunca ter expressamente devotado um escrito à questão da linguagem em época tão fulcral para a filosofia da mesma3, ou se ter expressamente debruçado sobre um tão importante tópico de um ponto de vista filosófico, levou a que durante dois séculos a questão nunca fosse verdadeiramente levantada a não ser com o intuito da sua negação, e


    2 Referência aos textos “Metakritik über den Purismum der Vernunft” (1784), de Johann Georg Hamann, e “Eine Metakritik zur Kritik der Reinen Vernunft” (1799), de Johann Gottfried Herder.

    3 Lembramos que, até meados do século XVIII, a linguagem é algo como um meta-tema em obras de índole antropológica, estética, psicológica ou filosófica. Significa isto, pois, que o tópico está omnipresente em obras eruditas, mas só raramente é nelas abordado por si só, enquanto problema de direito próprio ou como valência humana, antes é aí apenas subliminarmente introduzido. O ano de 1771, e a colocação a concurso da questão sobre a origem da linguagem humana (leia-se, sobre a origem humana ou divina da linguagem humana) por parte da Academia de Ciências de Berlim, muito ajudariam a alterar esta situação. A questão da linguagem, e seus múltiplos problemas inerentes, recebem então devido estímulo, quer mediante as respostas directas de Herder (Abhandlung über den Ursprung der Sprache) ou Michaelis à Preisfrage, quer mediante outros contributos imediatamente subsequentes, como são, por exemplo, os de Hamann (“Rezension der Herderschen Preisschrift über den Ursprung der Sprache” (1772), “Des Ritters von Rosencreuz letzte Willensmeynung über den göttlichen und menschlichen Ursprung der Sprache” (1772)), Rousseau (Essai sur l’origine des langues (1781, póstumo)), Fichte (“Von dem Sprachfähigkeit und dem Ursprung der Sprache” (1795)) ou Forberg (“Über den Ursprung der Sprache” (1795)).

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    nem hoje ela seja encarada como um tema pertinente no edifício de pensamento do grande filósofo4.

    Não raras vezes, porém, o aparente não-tratamento, ou o tratamento não-específico, ou não-expresso, de uma questão, não significa que essa questão não se tenha contado entre as preocupações de um autor. Kant, aliás, não é disso exemplo único, mas é certamente um dos melhores exemplos. Tanto assim que, segundo cremos, as questões da linguagem da filosofia, e da filosofia da linguagem, não só sempre estiveram entre as preocupações do filósofo, mas o próprio uso da linguagem, e suas necessárias e heterogéneas metáforas, foram para este de grande importância na exposição e subsequente compartimentação das diferentes divisões do seu edifício de pensamento. Exemplos disto, se não mesmo de uma reflexão expressa sobre a linguagem, podem ser aliás aventados em vários pontos da obra kantiana, e, no fundo, só eles podem explicar as singulares circunstâncias que apresentam; como o são, por exemplo, a notória diferença de registo entre a exposição de tópicos em filosofia, física, lógica ou metafísica, por um lado, e em astronomia, antropologia, geografia ou estética, por outro; uma vincada diferença entre a linguagem do Eu antropólogo, como ela surge na Antropologia de 1798, e a do Eu crítico, como ela surgiria a partir da década de 805; uma persistente busca por um registo


    4 A questão da linguagem, quer de Kant, quer em Kant, vem concitando ainda hoje pouca recepção crítica, e entre esta, recepção negativa. Aqui se contam, por exemplo, os casos de LIEBRUCKS, Bruno, Sprache und Bewusstsein, Band IV, Frankfurt a.M., 1868, ou MARKIS, Dimitrios, “Das Problem der Sprache bei Kant”, in: B. Scheer/G. Wohlfart (ed.), Dimensionen der Sprache in der Philosophie der Deutschen Idealismus, Würzburg, 1982, pp.110-154. As excepções a esta regra são muito poucas, das quais salientamos aqui apenas algumas: SIMON, Josef, Kant. Die fremde Vernunft und die Sprache der Philosophie, Berlin, New York: Walter de Gruyter, 2003; RAHDEN, Wolfert von, “Sprachursprungsentwürfe im Schatten von Kant und Herder”, in GESSINGER, Joachim; RAHDEN, Wolfert von, Theorien vom Ursprung der Sprache, Berlin, New York: Walter de Gruyter, 1989 (pp. 421-467); PISKE, Irmgard, Offenbarung. Sprach. Vernunft. Zur Auseinandersetzung Hamanns mit Kant, Peter Lang, 1989; TAKEDA, Sueo, Kant und das Problem der Analogie. Eine Forschung nach dem Logos der Kantischen Philosophie, Den Haag: Martinus Nijhoff, 1969; FORSTER, Michael N., “Kant’s Philosophy of Language?”, in Tijdschrift voor Filosofie 74, pp. 485-511, 2012. Especial referência neste importante tópico do pensamento kantiano, com especial enfoque no trabalho kantiano na própria linguagem da filosofia, merecem os trabalhos de Leonel Ribeiro dos Santos, a saber: SANTOS, Leonel Ribeiro dos, «Kant e o problema da linguagem da Filosofia», in Pensar radicalmente a humanidade. Ensaios em Homenagem ao Prof.Doutor Acílio Estanqueiro Rocha, Famalicão: Húmus, 2011, pp. 407-421; SANTOS, Leonel R, Metáforas da Razão ou Economia Poética do Pensar Kantiano, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1994; e vários ensaios em SANTOS, Leonel R., A Razão Sensível: Estudos Kantianos, Lisboa: Edições Colibri, 1994.

    5 Uma diferença clara, e que se explica na medida em que a existência natural do homem, a natural percepção de si mesmo, o natural pensamento sobre si mesmo e o natural uso das suas faculdades para isso exigido, os quais tão necessário uso fazem da linguagem humana, são a ante-câmara (a propedêutica antropológica) que conduz o homem a uma existência não-natural, ou de índole filosófico-crítica, onde, como vimos já, ele fará uso especulativo de todos os anteriores actos naturais – e portanto, não menor uso especulativo da linguagem. Isso mesmo, aliás, assume Kant nesta sua dupla dimensão de autor, o que se repercute na linguagem usada em cada uma dessas dimensões.

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    estético que se situasse entre o popular e o escolástico, e que, segundo Kant, tornaria a filosofia mais receptiva ao leitor6; ou até a ocorrência de circunstâncias aparentemente menos importantes, mas que demonstram a centralidade da linguagem para Kant, tais como o reiterado, e por vezes invertido, uso latino-germânico de terminologia-chave 7 , ou o complexo, e por vezes assistemático uso de vários termos-chave no pensamento de Kant8; entre outros exemplos possíveis.

    Kant foi, pois, um pensador da linguagem – um pensador da linguagem mediante a linguagem da filosofia, e um pensador da linguagem mediante a filosofia da linguagem. Da sua primeira condição, dão conta os bastos exemplos acima mencionados. Da segunda, embora mais raros, existem alguns exemplos 9 , vários deles presentes nas Lições de Antropologia do autor. Um deles, aquele que aqui nos propomos abordar – e isso não sem relação com os anteriores –, é o da muito importante questão do uso de sinais; a saber, o tópico da faculdade de designação (Bezeichnungsvermögen) humana, o qual é reiteradamente abordado nas Lições de Antropologia (1772-1796)10, nas Reflexões e na Antropologia num Enfoque Pragmático (1798), e que, enquanto tópico antropológico por excelência, e atinente a todos os restantes discursos humanos por inerência, traz à colação a questão da humana capacidade de nomear o mundo. A razão de ser do nosso ensaio é, pois, bastante simples. A saber, antes de mais, justificar a nossa asserção de Kant como pensador da linguagem. Depois, à luz dos anteriores pontos, entender a posição do filósofo sobre as diferentes ligações que a linguagem estabelece entre as faculdades do ânimo e o


    6 Sobre este desiderato kantiano, cf. a Introdução ao Curso de Lógica (1800) editado por Jaesche (AA 09: 36- 39).

    7Um método que passa por ora traduzir palavras latinas por alemãs, ora alemãs por latinas – ao invés de, como seria de esperar, adoptar apenas um destes dois métodos. Este singular fenómeno é sobretudo visível em Kant e Baumgarten, e não pode ser dissociado da progressiva afirmação do Alemão como língua escrita, em detrimento do Latim: uma mutação de que ambos os autores haviam sido testemunhas durante o século XVIII.

    8 Referimo-nos, por exemplo, ao uso aparentemente indiferenciado de “-kraft”, “-vermögen” ou “-fähigkeit”, como ele se dá nas palavras “Einbildungskraft”, “Einbildungsvermögen” ou “Einbildungsfähigkeit”; ou aos vários sentidos que Kant atribui a “Urtheilskraft”, ou “Einbildungskraft””, consoante a obra em que estes termos surjam; entre muitos outros exemplos que poderiam ser aqui mencionados.

    9 Indícios disto mesmo surgem sobretudo nos textos de natureza antropológica, a saber, no texto “Mutmaβlicher Anfang der Menschengeschichte” (1786), em alguns passos na Antropologia num Enfoque Pragmático e das Lições de Antropologia.

    10 “Da Facultate characteristica” (AA 25.1: 126); “Das imagens sensíveis propriamente ditas, ou símbolo” (AA 25.1: 126-132); Dos sinais dos quais o homem se serve” (AA 25.1: 338-341); “Da facultate characteristica” (AA 25.1: 536-537); “Dos sinais” (AA 25.2: 1023-1032); “A faculdade de designação” (AA 25.2: 1293-1296); “A faculdade de designação” (AA 25.2: 1473-1476); “Dos sinais. Facultas signatrix vel characteristica" (PH: 129-134). Excertos destas lições encontram-se traduzidos para língua portuguesa neste mesmo número da revista Con-textos Kantianos, e devem ser lidos como complemento deste contributo.

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    mundo; explicitar a posição kantiana sobre as diferentes potencialidades da capacidade sinalizadora da linguagem, ou, o que é o mesmo, sobre o maior ou menor, verdadeiro ou falso conhecimento adquirido por designação das coisas; e portanto, indagar sobre o papel da linguagem naquilo que, diz Kant, é a existência natural do homem. Em suma, compreender como Kant se posiciona com respeito a um tópico de tão grande influência sobre a própria comunicabilidade humana em geral, um sobre o qual o próprio Kant diria: “Toda a linguagem é designação de pensamentos, e, ao invés, o mais distinto modo de designação de pensamentos é aquele mediante linguagem, esse meio supremo de se entender a si mesmo e aos outros” (AA 7: 192)11.

    Os anteriores objectivos, que acima apenas aflorámos, são no fundo três. Estes, enunciamo-los do seguinte modo:

    1. Em primeiro lugar, compreender aquilo que, segundo Kant, é a pertinência natural da questão do uso de sinais.

    2. Em segundo lugar, investigar a natureza de palavra e símbolo, sinais humanos por excelência, e a sua diferente maneira de dizer o mundo. Isto, pretendemos fazê-lo mediante a análise da oposição entre estes dois, a diferente disposição das faculdades do ânimo por eles suscitadas e as diferentes representações por estes hauridas.

    3. Finalmente, intentar com Kant o pensamento de uma possível acção conjunta entre as vantagens e desvantagens de palavra e símbolo, e a aferição da influência de tal potencialidade híbrida da linguagem sobre o conhecimento humano.


  2. O problema da faculdade de designação humana


II. 1. A pertinência da questão do uso de sinais


“O uso dos sinais”, diz Kant em 1772/73, em Antropologia-Parow, na primeiríssima linha da primeira secção de Lições de Antropologia reunidas no volume 25 da Akademie- Ausgabe, “é uma questão de grande importância” (AA 25.1: 126).



11 Com respeito às citações de autor, recorremos ao método (Abreviatura da obra, número de volume, número de página), sendo que a abreviatura correspondente se encontra discriminada na bibliografia. Todas as citações foram traduzidas do original alemão para língua portuguesa. A tradução das mesmas é da minha autoria.

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A afirmação não se nos afigura estranha, e quase parece explicar-se por si própria

– e isso por várias razões. Em primeiro lugar, e antes de mais, porque a faculdade de designação – “facultate characteristica” (id.), “facultas signatrix” (AA 7: 191), “Bezeichnungsvermögen” (AA 25.2: 1293) – é “uma faculdade de produzir representações” (id.), a saber, uma “faculdade de conhecer” (AA 7: 191) objectos, coisas, outros seres humanos: atributos que desde logo a configuram como uma questão atinente à linguagem, ou à relação significante entre Eu e mundo, e portanto prontamente afiançam não só o interesse antropológico, mas também o cariz intimamente humano de tal questão.

Em segundo lugar, porque, para além de uma faculdade de produzir representações, a faculdade de designação é “uma faculdade de produzir representações que são meio para a produção de outras representações” (AA 25.2: 1293, it. meus). A saber, a faculdade de designação opera mediante sinais, sinalizando, designando e nisso conhecendo coisas, estados, homens. Mas porque a linguagem, o conhecimento humanos – que esta faculdade trata de pôr em aplicação – não se tratam aqui de um processo cristalizado, antes de um processo em constante transformação, e porque a faculdade de designação tem de estar no epicentro desse mesmo processo produtivo, então também ela não só ostenta, como adquire esses traços de continuidade e necessária renovação imaginativa, produzindo ela mesma, de braço dado com a faculdade de imaginar, novas e mais significantes representações. A saber, dir-se-ia, enquanto linguagem, enquanto instrumento do conhecer, a faculdade de designação é pois necessariamente imaginante, pois ela actua no âmago do humano processo de formação de imagens mediante imagens; e é mediante essa produção de imagens, ou palavras, ou representações, que ela dá sentido à relação significante entre Eu e mundo, não apenas para que entre estes haja um sentido, mas para que entre estes sempre possa haver mais e mais produtivo sentido, e portanto se crie entre estes sempre nova e constante ligação: “É bom de ver: a nossa imaginação liga representações de tal modo que as nossas representações se associam entre si, e na medida em que as ligámos de várias maneiras, uma serve para a produção da outra. Para isto servem os sinais, os quais existem para designar a existência das coisas” (AA 25.2: 1023). Talvez por isso – a saber, por força do carácter imaginante, ou directamente aplicativo da imaginação humana, da faculdade de designação –, Kant não só não separa esta faculdade


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da temática da faculdade de imaginação em nenhum ponto da sua obra12, como aliás as identifica, e pensa até em conjunto: ora aplicando à faculdade de designação a mesma divisão temporal que sempre aplica à faculdade de imaginação; a saber, faculdade de imaginação (Einbildungsvermögen), faculdade de reimaginação (Nachbildungsvermögen) e faculdade de preimaginação (Vorbildungsvermögen)13: “ou demonstratio, se eles forem sinais da existência real das coisas no tempo presente, ou rememoratio, se eles mostrarem a existência das coisas no tempo passado, ou prognostica, os quais são sinais de coisas no tempo futuro” (AA 25.2: 1023); ora fazendo dela, como da faculdade de imaginação, o foco, o elo de ligação, o agente da (passada e futura) representatividade e conhecimento humanos: “A faculdade de conhecimento do presente enquanto meio de ligação das representações do previsto com o passado é a faculdade de designação” (AA 7: 191). No fundo, razões que seriam já por si mais do que suficientes para que se atestasse a referida importância do uso de sinais, enquanto factor decisivo no curso do sempre activo progresso da linguagem humana e subsequente ampliação do conhecimento humano.

Acontece, porém, que cremos que a importância maior da questão do uso dos sinais

– e sua respectiva pertinência – não está para Kant na mera asserção da posição activa e criadora destes no processo da humana imaginação; na mera asserção do papel central destes na teoria da representatividade em geral, ou na mera asserção da sua ligação essencial com a linguagem, e com o conhecimento, e possíveis progressos destes. Pois estas asserções, mesmo que apenas enunciadas, são apesar de tudo óbvias, tal como óbvio é também que, estando a faculdade de designação no processo criador do discurso humano em geral, então, ela esteja também em directa relação com a constituição dos diversos registos que compõem o discurso humano, como o filosófico, o matemático, o literário ou o poético. Bem pelo contrário, era a visão de Kant que a importância da questão da faculdade de designação está antes no modo de compor – designar, significar – da linguagem humana, o qual, esse sim, pode justificar o diferente uso das faculdades do ânimo, e assim atestar os diferentes graus de validade da capacidade de designar. A saber, pois, verdadeiramente importante para Kant não é o fenómeno morto da faculdade de designação, antes o processo de produzir – o como e o porquê da produção de – sinais.



12 Nas Lições de Antropologia, aliás, o tema é quase sempre inscrito entre as inferiores e as superiores faculdades do ânimo; e na Antropologia num Enfoque Pragmático, Kant, fá-la figurar logo após o tratamento da faculdade de imaginação, da memória, do sonho, e antes da superior faculdade do entendimento.

13 Cf. AA 25.1: 76-78.

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Isto é, mais do que a faculdade de designar como faculdade, interessa analisar a faculdade de designar como uma força sempre em movimento, como energeia, em vez de como ergon: uma força que utiliza diferentes sinais, os quais significam diferentemente as coisas e têm por isso diferentes potencialidades de designação do mundo (diferentes graus de arbitrariedade); e portanto uma força que, consoante o modo de discurso em questão, assume também ela diferentes metamorfoses, e diz o mundo de modo diferente, mediante mais eficazes ou menos eficazes representações, mais-criação imaginativa (ou não) de representações. Disto sim, diz Kant – isto é, desta compreensão da heterogeneidade de uma mesma faculdade de designação humana –, pode vir a depreender-se aquilo que é filosoficamente pertinente na questão do uso dos sinais.

Esta questão, que tem por todas estas razões inegável relevância, está pois no âmago da teoria kantiana sobre o papel da formação e desenvolvimento da linguagem humana, e seu papel como eterna mediadora entre Eu e mundo. Dela dependem, aliás, outras questões posteriores, não menos importantes para Kant, como a formação de filosofemas, a relação entre objectos e conceitos filosóficos e a própria natureza da exposição linguística (filosófica, ou antropológica, ou estética) do homem que pensa e sente. Fazendo fé nisto, e respeitando tal encadeamento de coisas, partamos pois em busca de uma mais específica opinião de Kant sobre os diversos usos, potencialidades e eficácias dos sinais, na esperança de que, ao pensarmos de que maneira Kant vê a faculdade de designação nas suas diferentes aplicações no mundo, nos não quedemos pela certeza da indelével importância do tópico, antes a possamos também explicar.


II. 2. A palavra e o símbolo, diferentes modos de dizer o mundo


A “faculdade característica do uso dos sinais” (AA 25.2: 1023), diz Kant, obedece a uma grã-subdivisão. Esta surge exposta na Antropologia num Enfoque Pragmático (1798), e, segundo ela, esta divide-se em “sinais naturais” (natürliche Zeichen), “sinais prodigiosos” (Wunderzeichen) ou “sinais arbitrários” (Kunstzeichen). Os sinais naturais – a pulsação indicando o estado febril de um paciente, ou um mausoléu lembrando grandes feitos –, bem como os sinais prodigiosos – a passagem de um cometa ou um eclipse lunar (cf. AA 7: 192-194) –, são por certo indicadores de eventos, e poderão até significar muito, mas não podem ser directamente relacionados, nem têm que ver realmente, com a questão

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da linguagem. São, pois, os sinais arbitrários – esses sim, directamente atinentes ao processo de formação da linguagem – que nos interessam. E, não por acaso, seria também a eles que Kant dedicaria maior atenção nas referidas lições sobre a faculdade de designação.

Segundo Kant, a faculdade de designar por sinais arbitrários manifesta-se sob muito diferentes formas: gestos, sinais escritos, sinais sonoros, cifras, sinais de estatuto nobre ou servil, símbolos, entre outras. Em todas elas, sem excepção, se estabelece uma ligação entre objecto, ou coisa designada, e o sujeito que de tais sinais é operador ou receptor – e, nessa ligação, se produz linguagem. Isto, aliás, é bem visível, e até se poderia dizer que, independentemente do objecto designado, independentemente do processo de formação do sinal – da sua relação com o conceito –, e independentemente da sua ulterior eficácia enquanto veículo linguístico; isto é, independentemente de factores inerentes aos próprios sinais, estes sinais, quer sejam eles letras, notas musicais, cifras, brasões, uniformes, marcas de ordem ou símbolos, designam de facto o seu objecto, e assim promovem uma ligação possível – porque apesar de tudo arbitrária – do homem com o mundo.

Acontece, porém, que para Kant esta ligação possível não é sempre igual, e é aqui que os anteriores factores não mais são independentes da questão, e agem de facto sobre a faculdade de designação e sua maior ou menor arbitrariedade. Passamos a explicar. Há, entre o sinal escrito – a letra, a palavra, o pensamento – e o seu objecto, assim como entre o sinal pictórico – a cifra, a figura geométrica ou o símbolo – e o seu objecto, uma qualquer ligação. Essa ligação é, em ambos os casos, uma ligação mediante associação (Vergesellschaftung): associação entre representação e objecto, e associação de tal representação a outras, mediante o procedimento eminentemente imaginativo da faculdade de imaginação. Pois assim se liga o Eu ao mundo, e assim se constitui, entre objecto sinalizado, sinal e sinalizador, a linguagem. Contudo, diz Kant, o facto de essa ligação existir não significa que ela seja igual em ambos os casos, tal como iguais não são os diferentes usos e potencialidades da faculdade de designar, nem a linguagem que destes se deriva. Bem pelo contrário, sugere Kant, ambos estes casos são diametralmente opostos, ainda que dentro da mesma faculdade, e isso porque eles representam as duas espécies diferentes de sinais arbitrários que compõem a faculdade de designação: a saber,


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por um lado, no primeiro caso, os caracteres, ou palavras, as quais são designações indirectas, pois muito arbitrárias, dos objectos por si designados. As palavras são fruto do processo de associação de que nasce toda a linguagem, e, ao operarem por assemelhação14, comprovam a sua natureza imaginativa 15 ; elas que, na sua aplicação ao objecto, acompanham, ou medeiam, o conceito do objecto, e estão com este em máxima possível semelhança, não logrando porém designá-lo directamente, ou substituí-lo: “Palavras são meros sinais concomitantes, e não substituem um conceito” (AA 25.2: 1024).

e, por outro lado, no segundo caso, os símbolos (Symbola), ou imagens sensíveis (Sinnbilder), os quais, ao contrário das palavras, são designações tanto quanto possível directas, pois muito pouco arbitrárias – sensíveis –, dos objectos por si designados. Símbolos que por assim dizer logram transformar o processo de imaginação que lhes dá o ser, e que, ao fazê-lo, evitam a mediaticidade que aí lhes é conferida, e surgem no lugar do conceito do objecto: “Uma representação cujo lugar uma outra possa tomar, designa-se por um símbolo” (AA 25.1: 126).

Sigamos, pois, o fio condutor da reflexão kantiana, e consideremos em maior detalhe estes dois modos de designar humanos, até que da sua comparação possa surgir aquele que é, para Kant, o verdadeiro problema na análise ao tópico da faculdade de designação.

Kant compreende a escada da designação, ou, o que é o mesmo, da formação da linguagem humana, de modo bastante linear, e esta estende-se desde a sua unidade mínima, o caractere e/ou palavra (ou sinal da representação), passando pelo pensamento (enquanto mais-produção de representações), até à sua unidade máxima, o símbolo. Todos estes estão, naturalmente, em alguma espécie de relação com o objecto. Mas, por essa mesma razão, todos eles designam o mundo de modo diferente.

Assim, o caractere, diz Kant a este respeito, “é apenas uma designação” (AA 25.1: 536). Isto é, ele está perante o seu objecto numa relação arbitrária, e isso porque ele designa – dá o sinal, significa – o seu objecto, e isso mediatamente, não logrando ser esse objecto: “Caractere nada significa em si mesmo, antes é apenas um meio para designar algo, como o são, por exemplo, as cifras, as letras” (id.).


14 “Os sinais concomitantes são comummente muito arbitrários, eles são signa illustrantia, quando têm de ser um meio para entender melhor a coisa, e têm de estar sempre com a coisa em semelhança.” (AA 25.2: 1024). 15 Algo que Kant confirma reiteradamente, por exemplo, ao se referir às palavras nos seguintes termos: “(…) as palavras, mediante as quais a nossa faculdade de imaginação é animada (…)” (AA 25.1: 126).

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Kant, filósofo da linguagem?


O mesmo, aliás, pode ser aplicado às palavras, as quais, segundo Kant, não são os objectos que por elas se fazem significar, antes acompanham as representações desses mesmos objectos. Elas são, diz Kant, a escolta dos conceitos do conhecimento; “elas servem para realçar outras representações como que mediante um custos” (ibid.), como se da sua guarda se tratassem, ainda que, no fundo, não o sejam, e mais não façam do que “reproduzir casualmente” (AA 7: 191) esse conhecimento ou representação. Elas não são, pois, o objecto, nem significam todo o objecto; antes operam mediante semelhança (cf. AA 25.2: 1024), e por isso são um “meio de entender melhor a coisa” (id.) e, mediante a faculdade de imaginação (reprodutiva), reproduzirem essa mesma coisa16. Mas – diz Kant

–, talvez por isso, porque são de facto metáforas de coisas, mas metáforas consabidas, já instituídas – “signa illustrantia” (ibid.) –, as palavras têm por bom atributo o facto de serem ideais para o salutar (o sistemático) funcionamento do nosso entendimento. Pois, diz Kant, “para os nossos conhecimentos, enquanto sinais do entendimento, nada se presta tão bem quanto palavras, pois em si elas não significam outra coisa; assim, o entendimento pode associar a isso o devido conceito” (AA 25.1: 536). A razão de ser disto, aliás, é simples. Pois as palavras poderão até ser meros sinais das coisas; e, portanto, elas poderão permitir que “nada se pense a não ser o mero conceito” (AA 25.2: 1023). Mas, ao mesmo tempo, aduz Kant, ao acompanharem os conceitos sem uma relação causal directa, mas mediante uma relação causal pelo menos indirecta – uma qualquer semelhança intelectual que permite que tal palavra seja o sinal para aquela coisa, e não outra – então, dir-se-ia que “se eu tenho disso [da coisa] uma palavra, então eu tenho também disso [da coisa] o conceito” (id.: 1024). A saber, o processo, diz Kant, é um de mera sinalização, mas o resultado dá o conceito certo, sob a forma do pensamento correcto: “o resultado dá-me o pensamento por inteiro” (id.: 1023).

Algo diferente é o caso dos símbolos. Dada a sua natureza sensível, e portanto contrária à das palavras, os símbolos nada parecem ter que ver com o dizer linguístico daquelas. Eles não acompanham os conceitos, não os escoltam, não os representam enquanto tal, e por conseguinte tão-pouco os complementam, ou associam, ou ligam, nem mediante eles se parece poder constituir pensamentos. Aliás, diz Kant, nos símbolos nada há de propriamente discursivo, antes eles actuam por intuição (cf. AA 7: 191), e nos


16 Kant, aliás, ilustra isto mesmo mediante o exemplo consumado de nomes próprios (cf. AA 25.1: 536).

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símbolos nada há de intelectualidade, antes eles operam por um outro meio, aparentemente pouco caro ao entendimento: a dissemelhança.

A explicação de tão grande diferença é, no fundo, bastante simples. As palavras servem para dizer coisas. Elas designam, pois associam-se a conceitos, e ao assim agirem, elas impedem que os pensamentos se dispersem17. A sua discursividade vem, pois, do facto de que elas não apenas designam objectos, mas de que elas o fazem trazendo atrás de si novas associações, e com isso novas representações, as quais – e apenas elas – nos fazem seres de linguagem. Isso o determina o já referido processo imaginante da constituição da linguagem humana, o qual funciona mediante um saudável, sempre preparado, sempre esperado, tão sistemático quanto possível funcionamento conjunto das várias faculdades do ânimo, as quais justamente existem não só para gerir as representações, mas também para afiançar que esses construtos de representações ulteriormente promovem o fácil e salutar procedimento do entendimento. Daí, pois, a eminente intelectualidade das palavras. Ora, o símbolo quebra com todos estes preceitos tão queridos ao intelecto humano. Pois o símbolo não diz coisas, ele não se associa a coisas, antes parece separar-se delas, dizendo-as por dissemelhança, apenas para no fim de novo a elas se unir, tendo já, pois, substituído essas mesmas coisas – pois coisas que o originem, ele tem de ter, mas o que as coisas são, não parece ele dizê-lo. O símbolo, dir-se-ia pois, como que se desliga da própria coisa, ou substitui a sua necessária falta (cf. AA 25.1: 126), e fá-lo não mediante meras palavras, ou mera discursividade, antes mediante o que ele próprio é: uma imagem intuitiva, sensível, das coisas: mas, justamente, uma outra imagem que não as imagens intelectuais, já instituídas, das palavras, ou uma intuição que não a habitual ligação sistemática das palavras às coisas que ocorre no uso meramente linguístico da linguagem e do pensar humanos.

Assim, sobre a visão kantiana de símbolo poder-se-ia dizer o seguinte:

em primeiro lugar, que o símbolo está para com o objecto não numa relação de sua mera sinalização, ou designação, isto é, da sua ordenação, ou sistematização, mas numa estranha demanda de o singularizar, ou reconstituir fora de si, como se o objecto pudesse reaparecer fora de si, mas agora sob roupagens a si mesmo estranhas, e até aparentemente contrárias à sua real natureza: e como se logo isso, essa ilogicidade, pudesse passar por

17 “Elas [as palavras] são o que melhor se presta para a designação de conceitos, na medida em que visam apenas associações, e não semelhanças; mediante palavras que são mera reverberação os pensamentos não se dispersam, daí elas servirem melhor para o pensar” (AA 25.2: 1474).

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uma imagem do próprio objecto, ou sequer por uma forma de relação intelectual entre Eu e objecto. Isto, pelo menos, o parece propor essa tão intuitiva, e, dir-se-ia, silenciosa, capacidade de designar que é a do símbolo – o que parece ser provado pelo facto de o símbolo apresentar o objecto em aparente dissemelhança deste com a sua imagem, e nisto, nesta estranha forma de linguagem, desfasar o objecto de si próprio, afastá-lo do seu real significado, e assim confundir e dispersar o ânimo humano.

Em segundo lugar, tal singular proposta de designação do objecto, como é esta do símbolo, tem de ter evidentes repercussões sobre aquilo que atrás designámos como um salutar funcionamento das faculdades do ânimo humano. E tem, de facto. Pois, diz sobre isto Kant, o símbolo não é uma mera imagem da coisa, como o são as palavras. E porque ele não acompanha uma e a mesma designação (universalmente aceite) da coisa, antes a substitui; e porque, para substituir, ele tem de proceder não justamente por associação, como o fazem as palavras, mas por dissemelhança, então isso significa que o símbolo trabalha não com uma, mas com duas, ou mais, imagens da mesma coisa – a que acompanha, mediante a qual a coisa se faz evocar, e a que substitui, mediante a qual a coisa ressurge na sua forma reformulada: “Mas quando são imagens, as quais significam outra coisa, o entendimento queda-se confuso, ele tem então 2 imagens, em vez de ter uma” (AA 25.1: 536). Ora, o que isto significa é que a memória, a faculdade de imaginação, o entendimento; numa palavra, a faculdade de designar, vêem-se aqui distorcidas no seu normal, expectável funcionamento. Pois aqui, não é o caso de acoplar uma palavra, ou representação, a cada objecto, como é o caso com as palavras, ou os pensamentos, antes há que submeter a cada uma destas faculdades duas imagens, a do objecto e a do símbolo estranho do objecto. Pois “O símbolo é uma indicação estranha, e um sinal do sinal” (AA 25.2: 1474). E, portanto, o que esta dupla dimensão, ou alteridade do símbolo significa, é duas coisas: primeiro, que cada uma destas faculdades é deixada em constrangimento perante uma tão singular e heterogeneizante operação da faculdade de designar (pelo menos, em maior constrangimento, ou esforço, do que seria o caso com as unívocas palavras); segundo, que, dadas tais dificuldades suplementares, não só tais faculdades terão de transformar o seu normal proceder, como aliás outras faculdades terão certamente de ser chamadas à colação, a fim de dar devido tratamento à multiplicidade de sentidos posta em marcha pelo símbolo: faculdades como a fantasia, o engenho ou o génio.


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Por ora, porém, não aprofundemos isto. Concluamos antes: o símbolo pede toda uma outra disposição do ânimo, toda uma outra capacidade de designação, toda uma outra forma de linguagem humana; mas uma que, diz Kant, parece ser abertamente contrária àquela que é tida por boa pelo entendimento, uma que, por conseguinte, parece impedir o bom acesso dos seus produtos às esferas superiores do ânimo – justamente ao pensamento, e à própria linguagem –, e definitivamente contrapor o símbolo, e suas criações, a uma racionalidade do discurso. Os exemplos disto mesmo, aliás, são para Kant numerosos e evidentes; e Kant não se coíbe de os apresentar enquanto tal. Um deles, diz o filósofo, é o dos recém-nascidos, os quais, despojados de capacidade de pensar, ou de discursar racionalmente, recorrem à simplicidade substitutiva dos símbolos, para se fazerem expressar: “Os homens estão tão dispostos para estas [imagens sensíveis], que só mediante imagens as crianças podem aceder precocemente ao conhecimento” (AA 25.1: 126). Um outro exemplo, diz Kant, é o das imagens, ou hieróglifos, como os que caracterizam a filosofia e o pensar dos egípcios. Estes “são sinais da insipiência da nação” (id.: 127); pois, diz Kant, “Quem fala mediante símbolos, mostra que lhe falta entendimento” (id.: 536). A saber, as imagens, no seu carácter substitutivo das coisas, no seu dizer as coisas sem conceito, no seu alienar do objecto, e do subsequente pensamento intelectual sobre as coisas, são prova de menoridade intelectual, são identificativas de um clima quente, e uma ainda mais fogosa imaginação, e nisso opõem-se pois ao saudável uso do entendimento: “Uma tal nação que tem uma língua simbólica: nessa [nação] os correctos conceitos do entendimento são muito raros. Se eles pudessem representar algo mediante conceitos, não precisariam de nenhumas imagens” (ibid.). E um outro exemplo, prova mais que provada das anteriores, é o exemplo de todos quantos tomam o símbolo por mais do que o próprio objecto, de que são exemplo várias patologias do espírito, contrários ao estado saudável da razão (a superstição, o fanatismo, entre outros (cf. AA 25.2: 1474)).


  1. 3. A palavra, “reverberação arbitrária da coisa”. Os símbolos, “characteres vicarii”


    Assim, dir-se-ia, a oposição entre as capacidades sinalizadoras de palavra e símbolo parece inequívoca, tal como inequívoca é a sua maior ou menor ligação à imaginação e ao entendimento, enquanto os dois esteios do sentir e do pensar humanos. Menos inequívocos,

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    porém, são outros passos da análise kantiana a estes dois modos da faculdade de designar, contidos entre aqueles que enunciámos já, e que não só nos levam a repensar a ligação de tais modos com os objectos, e as diferentes disposições das faculdades do ânimo assim postas em marcha, como talvez nos obriguem a ver, para além da oposição, também união entre tais modos, e uma outra dimensão da visão kantiana sobre este tema.

    Comecemos, pois, por rever a posição kantiana sobre a palavra. A palavra existe para acompanhar o conceito, de tal modo que “se eu tenho disso uma palavra, recebo também do mesmo o conceito” (AA 25.2: 1024). Daí, aliás, a sua óptima capacidade sinalizadora, sem a qual o entendimento se sentiria perdido na sua gestão dos diferentes elementos do conhecimento. Sem ela, dir-se-ia em jeito de exemplo, o entendimento poderia tomar uma árvore por um mar, e até talvez, do mesmo modo, um mar por uma árvore, sem que com isso notasse estar a incorrer em erro na sinalização de ambas as coisas. Justamente por isso, parece dizer Kant, mar significa mar, e árvore significa árvore, e assim o quer o entendimento, que tem de ter de cada conceito uma palavra que o acompanhe, e por cada palavra um conhecimento. Ora, isto, parece dizer Kant, é por certo da conveniência do entendimento, e, portanto, necessário à expressão e comunicação do espírito humano; isto é, aliás, condição sine qua non do anteriormente descrito funcionamento das diferentes faculdades do ânimo, e portanto base da relação discursiva entre Eu e mundo. Mas, não obstante – aduz Kant –, isto não significa de modo algum que entre as coisas e as palavras haja completa, ou real, ou verdadeira concordância, tal como não significa que o próprio entendimento humano possa fazer inteira fé nelas aquando dos seus procedimentos essenciais. A questão é para Kant pertinente, e inscreve-o entre tantos outros autores anteriores e posteriores que notaram a insuficiência da palavra humana no dizer das coisas18. Pois, a saber, as palavras humanas não consistem em sinais divinamente insuflados no espírito humano, mediante os quais o homem possa dizer o mundo à sua volta, e o mundo, como que por magia, ressurgir na palavra que assim o evoca; se assim fosse, então talvez pudesse haver uma só língua universal, e as próprias palavras dessa língua teriam elas mesmas validade universal. Mas não é esse o caso com a linguagem humana. Bem pelo contrário, as palavras, sugere Kant, são sinais humanamente criados justamente para conveniência dos homens e do seu entendimento, a fim de auxiliar na melhor compreensão das coisas (cf. AA 25.2: 1024); humanamente criados significando


    18 Heinrich von Kleist, Friedrich Nietzsche, Hugo von Hofmannsthal, apenas para citar alguns.

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    aqui, porém, originariamente criados mediante uma semelhança humanamente percebida entre a coisa e a impressão dessa coisa no espírito, e posteriormente mantidos pela aceitação reiterada dessa semelhança entre objecto e palavra. E, por conseguinte, de modo algum as palavras podem ser verdadeiras, antes têm de ser puras metáforas das coisas. Assim, dir-se-ia, as palavras mar, árvore, designam de facto os conceitos mar, árvore; mas, porque são destes conceitos meras metáforas, e porque elas foram humanamente hauridas a partir de uma semelhança tida como próxima, e inegável – por analogia – com a coisa, então tão depressa tais palavras designam, ou acompanham, tais conceitos, como bem poderiam acompanhar quaisquer outros, na medida em que elas significam, dizem por certo, mas não são os objectos que dizem ser. As palavras, conclui por isso Kant, são meras “reverberações arbitrárias” (id.) – das coisas.

    A melhor prova da anterior insuficiência das palavras humanas, e suas nefastas repercussões no conhecimento humano, dá-a aliás Kant mediante um exemplo muito simples: o da tradução. Pede o filósofo que se tente ler algo numa língua estrangeira, e empreender a tradução do que se leu. O acto, diz Kant, afigurar-se-á já por si difícil – mas exequível. Mas tente-se agora traduzir o mesmo da língua materna para uma língua que se desconhece: e, naturalmente, muito mais difícil se revelará a tarefa, pois traduzir para uma língua que não se conhece é muito mais árduo do que para uma conhecida. A razão é simples, diz Kant. Pois, perante a coisa, poder-se-á pensar facilmente na palavra que lhe corresponde na língua materna – pois há só uma palavra para esse efeito. Mas, porque numa língua desconhecida “a uma coisa bem poderiam estar ligadas 100 palavras” (ibid.), então a tarefa revela-se mais tortuosa – o que se explica porque para o leitor em causa “A palavra estrangeira, que é um certo sinal arbitrário, não está tão exactamente ligada com o conceito da coisa quanto o está a coisa com a palavra a que eu me habituei na minha língua materna” (ibid.). Isto é, conclui Kant, “porque a palavra em si nada significa, antes é apenas uma reverberação arbitrária, então ela não pode ser ligada com nada a não ser com o conceito da coisa” (ibid.) – o que, como era de esperar, desde logo obsta à afirmação de uma possível validade universal das palavras, antes afirma a sua total aleatoriedade em relação ao objecto. Ora, vertamos agora nós próprios este exemplo para aqueles que acima demos, e facilmente se verá que ele ilustra bastante bem a visão que das palavras, e sua potencialidade sinalizadora, tinha Kant. Para o fazermos, bastará que se pense a tradução como o acto de designar; a tradução para língua materna como o uso sinalizador que da

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    linguagem faz o entendimento, e a tradução para uma língua desconhecida, que apresenta uma outra dimensão da linguagem, e nos permite aferir as reais capacidades sinalizadoras desta, a outra visão que da linguagem Kant nos vem apresentando; e, uma vez isto feito, não será difícil concluir que, tal como no caso anterior, uma coisa é atentar na inegável capacidade de designar das palavras, no seu necessário dizer humano das coisas e no interesse que nisto tem o entendimento e as faculdades reprodutivas da imaginação, os quais, operando aqui sempre na sua língua materna (que justamente é apenas reprodutiva), gere a seu bel-prazer o conhecimento humano das coisas por semelhança com as mesmas. Mas outra coisa bem diferente, parece dizer Kant, é olhar para as palavras, e esta sua capacidade de designar, e inquiri-la a fundo, para lá do seu uso de língua materna no espírito humano: ocasião em que se notará que as palavras são afinal, para além de veículo necessário, porém veículo erróneo das coisas do mundo: no fundo, algo como uma autêntica língua estranha no seio da língua materna, uma que não é falada pela habitual disposição reprodutiva das faculdades do ânimo, e em vista da qual, por conseguinte, nenhuma universalidade pode ser reclamada para além daquela que pode ter uma reverberação arbitrária – a de um feliz acaso, que afinal são todas as palavras, e no qual afinal está assente toda a linguagem humana.

    Ora, posto tudo isto, como considerar o conceito kantiano de palavra – sendo que ele aparenta ter um lado necessariamente bom, e um lado incontornavelmente menos bom; uma potencialidade de designar eficaz, e, porém, no reverso, uma ineficaz potencialidade de designar o mundo? A resposta, creio, é dada pela ambivalência da própria pergunta. Assim, dir-se-ia, a linguagem designa as coisas do mundo, e pôr isso, e o seu proceder sistemático em causa, seria com efeito corromper uma natural ordem das coisas, uma natural disposição do espírito, e assim atacar no seu âmago o entendimento, o qual sem esta capacidade de operar por semelhança vogaria para sempre perdido. O que há que fazer, pois, não é negar isto. Mas sim, como diz Kant, pensar que, para além disto, um tal proceder ordenado, sistemático, por semelhança – por aquilo que está próximo, e que tem analogia – tem afinal um reverso da medalha, a saber, que ele se baseia justamente sobre algo arbitrário, meramente ilustrativo, e não universal, e não reflecte mais do que a mera aparência (humanamente criada) da coisa. Assim, o que Kant parece dizer é que, quanto maior for a semelhança, melhor a eficácia do entendimento. Mas, por outro lado, quanto maior for a semelhança, também maior será a arbitrariedade da própria palavra. Isto


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    significa, por outras palavras, que a maior arbitrariedade das palavras se revela por certo conveniente ao trabalho essencial, em língua materna, do entendimento. Mas, em contrapartida, isto, esta conveniência, esta língua única do entendimento, terá ulteriormente a nefasta consequência de que, por trabalhar o entendimento apenas com reverberações das coisas, e pior ainda, sempre com as mesmas reverberações, na sua língua materna, o entendimento em realidade não se renova, não progride enquanto tal, antes está ocultamente a tornar-se inerte e ressequido nos seus procedimentos e conhecimentos, em favor do seu próprio conforto e habitual sistematicidade. Ora, se o que Kant aqui sugere tiver algum fundamento de verdade; isto é, se a pouca arbitrariedade das palavras, tal como ela é requerida pelo entendimento, e sobre a qual ele faz assentar o seu normal procedimento por directa ou próxima assemelhação, não o é porém senão para o próprio entendimento, e se assim se comprova que tal pouca arbitrariedade é afinal muita arbitrariedade, e corre em desfavor do próprio entendimento, então isso significa que para Kant ambos os fenómenos da palavra são reais, como o são as diferentes potencialidades da própria palavra humana, e outra solução não nos resta senão inquirir pela possibilidade de evitar o anterior declínio do entendimento sem que, porém, ele deixe de designar correctamente as coisas – o que vê-se já, terá de ocorrer mediante uma outra relação do Eu com o objecto, uma diferente disposição das faculdades do ânimo, uma outra postura, certamente contrária à anterior, do entendimento; em suma, mediante o discernir de uma língua estranha à das palavras, uma língua estranha até mesmo à própria linguagem – mas uma forma de linguagem, não obstante.

    Trazemos agora à colação, pois, a concepção kantiana de símbolo. Deles, dos símbolos, se disse atrás que são contrários às palavras por serem não-discursivos, e malfazejos ao entendimento por serem não-intelectuais, ou intuitivos. A saber, pois, os símbolos são não-discursivos pois parecem transgredir uma das leis fundamentais da linguagem, e falar na vez do objecto, assumindo imediatamente – e não mediatamente, como as palavras – a posição do objecto que expressam, e assim fazendo surgir no ânimo humano, de súbito e sem mais, intuitivamente, uma segunda imagem do objecto em causa. Assim acontece, por exemplo, com a representação pictórica de uma lua, a escultura de um objecto, um monumento; mas também, diz Kant, com uma simples metáfora como “a águia de Júpiter com o relâmpago entre as garras”, “um atributo do poderoso rei celestial” (AA


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    5: 315), ou “um mar tempestuoso” enquanto “imagem de um homem inquieto” (AA 25.1: 126).

    Tudo isto, cremos, é para Kant inegável. Mas, porque pretendemos comparar a potencialidade sinalizadora de palavra e símbolo, tratemos de dar espaço à possibilidade de que, tal como a palavra tem para Kant um reverso da medalha, uma fiança bem como uma insegurança, também o símbolo pode reclamar isto mesmo. E, para o fazermos, resgatemos os exemplos atrás mencionados, e comparemo-los entre si. Assim, disse-se, a palavra mar designa unicamente o conceito mar. A palavra mar, dir-se-ia até, vale para todos os mares, e fruto dela conhecemos todos os mares enquanto mares – pois através de tal palavra se forma uma conexão entre o conceito de mar e o nosso conhecimento do mesmo. Recordando as lições de antropologia de Kant sobre as diferentes faculdades do ânimo, aliás, a formação desta conexão é de simples reconstituição, e um simples encadeamento entre determinadas faculdades, como o são a memória racional, ou judiciosa, a faculdade de imaginação reprodutiva, a faculdade de julgar e o entendimento parece poder explicá-la sem mais – ela que é, no fundo, a conexão de que o entendimento precisa para o seu salutar funcionamento. A palavra mar, e as palavras em geral, diz porém Kant, são não obstante meras reverberações arbitrárias dos objectos, e isso justamente devido ao facto de elas apenas mediarem o momento entre o objecto e o surgimento do mesmo no espírito humano. E isto, por sua vez, se explica pelo encadeamento das faculdades acima descrito, o qual é a própria mediação, posta em marcha pela imaginação reprodutiva: a saber, a acção racional da memória, a qual resgata a representação sempre conhecida do objecto mar e a traz à faculdade de imaginação; e a faculdade de imaginação, a qual lhe confere a imagem que habitualmente acompanha esse objecto, e por fim a submete à apreciação da faculdade de julgar, que a aceita sem qualquer oposição, por a conhecer sobejamente bem, e saber que nela reconhece o objecto em questão. Assim, pois, por habituação, por ordenação infalível, por humana reconstrução do já conhecido, funciona o entendimento – como vimos, para seu bem, mas também para seu mal.

    Ora, algo diferente acontece com o símbolo – e sobretudo, com o exemplo linguístico de um “mar tempestuoso” como símbolo de um “homem inquieto” (AA 25.1: 126). Pois, com efeito, o símbolo linguístico tem por característico ser, também ele, constituído por palavras, e, por conseguinte, também ele ter de ser metafórico; de outro modo, estaríamos a lidar não com o dizer de objectos, mas com o ser dos objectos, no que


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    poderia ser visto como o cumprimento do ideal descritivo da linguagem – uma palavra que fosse o objecto; algo que, todavia, não seria já linguagem. E portanto, também o símbolo linguístico, por se ancorar nelas, não pode vencer por completo a noção de que as palavras são reverberações arbitrárias das coisas. O que acontece com o símbolo, porém, é algo que permite corrigir a insuficiência da palavra, e senão suplantá-la por completo, pelo menos levá-la a um seu novo, superior estado. Pois – e para focar o exemplo em questão – as palavras “mar tempestuoso”, tomadas em si, nada mais dizem do que aquilo que efectivamente sinalizam: um mar, e um mar tumultuoso. Poderemos a isto associar o fragor da maré, o ensurdecedor marulhar das ondas, e outras representações reconhecidamente afins – pois assim procede a faculdade de imaginação reprodutiva –, mas, no fim de contas, um mar tempestuoso será sempre… um mar tempestuoso. Ao pretendermos qualificar, porém, um espírito inquieto, designando-o como um mar tempestuoso, o que acontece é algo diferente: do espírito inquieto de um homem, é criada, não por semelhança, mas por dissemelhança – pois, naturalmente, um espírito nada tem que ver com um mar – uma segunda imagem, mais sensível, e por isso de todo em todo inabitual, e até estranha, para o espírito – e ao acontecer isto, essa nova imagem sensível põe em marcha toda uma outra ordem das faculdades do ânimo; a saber: por acção da memória engenhosa, essa nova imagem sensível traz ao ânimo toda uma torrente de outras imagens – perturbação, opressão, convulsão, agitação de espírito, inquietude, etc. –, as quais são ligadas à imagem originária do objecto; depois, por acção da faculdade de imaginação produtiva, e sobretudo do engenho – que justamente promove a ligação de duas representações até então estranhas – e do génio – que traz à execução a forma final destas duas imagens – de tal turbilhão de imagens é formada uma única imagem; e, por fim, essa imagem é levada à presença do entendimento, que, apesar do seu constrangimento, a tem de julgar válida, por não ser ela falsa, antes verdadeira, apenas de um modo para si novo. Assim, dir-se-ia, o símbolo, e sua ocorrência, alteram o figurino de todo o espírito humano, recriando a palavra e ampliando exponencialmente o raio de acção, a pungência e, o que não é de somenos, a veracidade desta. Mas isto, fá-lo o espírito não mediante mais palavras19, ou sequer meras palavras; isto é, não é próprio do símbolo proceder por aquilo que é tido por semelhança, que se julga aproximar o objecto da sua representação, mas na verdade os

    19 “Se os conceitos são abstractos, então tem de se empregar muitas palavras. Por exemplo, temperança, modéstia, equidade, brandura. Mas com respeito às representações que caem nos sentidos, pode-se poupar nas palavras” (AA 25.1: 126).

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    afasta; em suma, não é próprio do símbolo reenviar metaforicamente a palavra para o objecto. Antes pelo contrário, ele procede por dissemelhança – pelo inesperado, o não-dito, o não-pensado –, assim minguando a arbitrariedade da designação, e por consequência aumentando a justa e vera aplicação linguística, e lançando tal metaforicidade, e tal cepticismo a que esta metaforicidade se expõe, em sentido inverso, não para onde ela apenas pode acumular e, dir-se-ia, toldar a visão do objecto, o que legitima a desconfiança na palavra, mas para onde ela pode ser livre. Tanto assim, aliás, que isto parece clarear a imagem do objecto, e apresentar uma sua nova, até então impensada imagem – e isso, de uma maneira afinal mais nítida, mais cristalina ainda do que as próprias palavras. Pois, note-se, isso mesmo faz segundo Kant o símbolo: ele é a palavra, mas não apenas a palavra. Ele é não natural discursividade, mas silêncio criativo, criador de mais-linguagem. Ele alberga em si, pois, as deficiências da palavra, que derivam da sua eminente intelectualidade, e ultrapassa-as, tanto quanto possível, mediante a sua intuitividade, o seu carácter inovador, fazendo das fraquezas da palavra, e das suas próprias fraquezas – que existem, e são reais –, as suas maiores forças20.

    Uma melhor prova do que aqui se disse, dá-a aliás o próprio Kant, uma vez mais mediante o exemplo de tradução – o mesmo exemplo que dera para a palavra (cf. AA 25.2: 1024). Atrás concluíra Kant que, ao se tentar traduzir algo para uma língua que se desconhece, enfrenta-se a dificuldade de serem aí todas as palavras desconhecidas, de cada uma poder ter vários símiles, e ínfimas nuances; o que, no fundo, é a dificuldade essencial do acto de designar, onde se percebe que as palavras são, de facto, meros sinais das coisas,

    20 Tais considerações como aqui as dispomos seriam reiteradas por Kant não só no § 49 da Kritik der Urteilskraft (cf. Secção III deste artigo), mas também no § 59 da mesma obra, dedicado à comprovação da realidade [objectiva, racional] dos conceitos mediante intuições. Esta, diz Kant, é impossível (cf. AA 5: 254). Como alternativas a isto, estão o esquema e o símbolo, cujos papéis neste respeito, e respectivas potencialidades, Kant diferencia. Kant distingue aqui, pois, entre uma hipotipose esquemática – a sensibilização do conceito mediante correspondência de uma intuição a priori directa – e uma hipotipose simbólica (intuitiva) – a sensibilização do conceito mediante correspondência de uma intuição a priori indirecta; mas atribui apenas à última, não à primeira, uma capacidade especial: a capacidade de fazer subjazer a um conceito “que só a razão pode pensar e ao qual nenhuma intuição sensível pode ser adequada” (id.: 255) algo como um substituto, dir-se-ia, para recuperar palavras das Lições de Kant, uma segunda imagem, ou uma intuição que é meramente analógica em relação ao que é observado no esquematismo, a saber, que “concorda meramente com a forma da reflexão, não com o conteúdo” (ibid.). Ora, esta especial concordância segundo a forma, não o conteúdo; esta capacidade intuitiva de ordem analógica e associativa que o símbolo tem, de que Kant dá novos exemplos neste mesmo § (id.: 257), e a sua não-existência nos esquemas dos conceitos do entendimento, são comprovadores de uma potencialidade metafórica que Kant atribui ao símbolo e que, por adição, o filósofo pressente na linguagem. Algo que, no fundo, apenas é provado (como se verá na última secção deste artigo) na ligação expressa que Kant estabelece entre o poder analógico-metafórico dos símbolos e o seu papel na formação de ideias estéticas, a saber, no exercício da faculdade de poetar humana, e sua capacidade de “exprimir o inefável, (...) e torná-lo universalmente comunicável” (id.: 198).

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    mas sinais sobremaneira arbitrários, “reverberações arbitrárias” das coisas. O foco de tal problema comum, salientamos, reside no próprio procedimento por assemelhação da palavra, o qual, ao pugnar por nos aproximar das coisas, e por as dizer enquanto tal, antes nos torna estranhos a elas, e, se sobre isso se pensar bem, a nós próprios. Mas, aduz Kant, onde a palavra não é mera palavra; isto é, onde a palavra não pretende dizer o objecto mediante semelhança, onde a palavra não põe em marcha uma disposição meramente intelectual, ou reprodutiva, das faculdades do ânimo; numa palavra, onde houver símbolos, “characteres vicarii” (id.: 1023), algo muito diferente ocorre, e nenhuma das anteriores dificuldades se coloca. Pois, diz sobre isto Kant, ao se tentar traduzir uma palavra, ela muda de língua para língua; e isso porque, justamente, as palavras são sinais arbitrários, humanamente criados, falíveis das coisas: no fundo, sinais que expressam diferentemente as coisas, e o fazem também diferentemente nos espíritos que as usam. Mas o mesmo não acontece com a imagem por certas palavras veiculada – o símbolo –, o qual, diz Kant, é igual de língua para língua, ou, se quisermos, é aqui, afinal, não língua estranha, mas como que uma língua materna, dentro da própria estranheza da linguagem; e isso porque o símbolo não procede linguisticamente, mas antes intuitivamente, sensivelmente, por meio de uma imagem, imagem essa que é comummente reconhecida enquanto tal. Kant dá o exemplo: “Se se quiser exprimir em uma outra língua a paz de espírito, tem de se usar uma outra palavra; mas a imagem disto pode manter-se a mesma em uma língua estrangeira” (AA 25.1: 126)

    Ora, a explicitação disto mesmo obriga-nos a, uma última vez, transpor o problema para a questão da designação humana, e perguntar: o que significa, pois, isto, e o que diz este exemplo sobre a concepção kantiana de símbolo? A resposta é agora evidente. O que este exemplo ilustra é que Kant vê justamente na palavra uma aleatoriedade que, a despeito de beneficiar a acção quotidiana do entendimento, e parecer universal, é, porém, meramente individual, e portanto é para o entendimento perigosa – como o demonstra, aliás, a prova dos nove da possível mutabilidade do exercício tradutório. Já no símbolo, e na sua irrefutável singularidade, vê Kant também incerteza, e perigosidade para o uso natural do entendimento; e isso, provámo-lo já. Mas, reiteramos, o símbolo tem por próprio que a sua inegável individualidade se ancora na sua novidade, e também na nova imagem do objecto por si veiculada; e portanto, essa novidade, justamente por ser nova, como que evita a metaforicidade pela palavra interposta entre objecto e espírito (daí a sua boa

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    traduzibilidade), e, ao invés, solta-a onde ela é mais proveitosa: no próprio espírito humano, e na nova concepção que este tem de um objecto. A saber, dir-se-ia pois, objecto e espírito são assim postos em ligação não já mediante a mera palavra (uma tradução, um estrangeirismo), mas mediante o símbolo linguístico (uma directa relação, uma língua materna), que consiste em palavras, mas palavras como que magicamente dispostas, assim directamente espelhando, passe a redundância, simbolicamente, o objecto no espírito humano. O que ocorre, pois, aquando da supressão – ou melhor, do emudecimento – do mediador que é a palavra, é que a precariedade, a aleatoriedade desta, se desvanecem, dando lugar a uma metaforicidade invertida: um sentimento da linguagem 21 , uma linguagem da intuição, ou, se se quiser, uma dimensão propriamente sensível ou estética do símbolo, enquanto sinal linguístico, no espírito humano – uma linguagem universal por todos os seres humanos disfrutada enquanto um prazer, e portanto por todos entendida enquanto tal: “Em primeiro lugar, temos de notar uma diferença entre símbolos e caracteres. Aqueles são representações que substituem outras, e, portanto, podem ser empregues de igual forma em todas as línguas; mas as últimas não podem ser usadas para serem universalmente válidas. Elas são palavras (…)” (AA 25.1: 126).


  2. As palavras, os símbolos e a poesia


Analisados que estão os dois modos de operação da faculdade de designar, a palavra e o símbolo; aferidas que estão as relações de ambos com os seus objectos, e a disposição da faculdade de ânimo por eles ocasionada no Eu; numa palavra, medidos que estão os alcances do designar de ambos, e sua maior ou menor potencialidade, que nos sejam permitidas algumas considerações finais, de índole mais geral, sobre aquele para Kant seria um possível campo de actuação mútuo para a eficácia de palavra e símbolo.

Consideramos, pois, um uso designador das palavras que, mediante semelhança, ou reprodução, favorece a sistematicidade do entendimento – o que não é possível com o símbolo22; e um uso designador dos símbolos que, mediante dissemelhança, ou produção,



21 “O conhecimento simbólico não se opõe pois ao intuitivo (mediante intuição sensível), mas sim ao intelectual (mediante conceitos). Símbolos são mero meio do entendimento, mas apenas indirectamente, mediante uma analogia com certas intuições às quais o conceito das mesmas pode ser aplicado a fim de, mediante apresentação de um objecto, granjear para si significado” (AA 7: 191).

22 “Quem sempre se exprime de modo meramente simbólico, esse tem ainda poucos conceitos do entendimento” (AA 7: 191).

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favorece a inventividade da imaginação – o que não é possível com a palavra; e isto, ainda que, por detrás destes actos principais, se escondam os perigos dos mesmos: a saber, o empedernimento do entendimento, trazido pela contínua sistematicidade das palavras do mesmo, e o ensandecimento, ou fanatismo do mesmo, trazido pela persistente inovação dos símbolos da imaginação. Entre palavra e símbolo, e seus usos, forma-se pois como que uma quadratura ora formada pelos dois benefícios, ora pelos dois perigos intimamente interligados; e uma quadratura de termos dificilmente coadunáveis, pois que aqui os perigos advêm dos benefícios, e os próprios benefícios carecem dos perigos para subsistirem: de tal modo que, como vimos já, ao auxiliar o entendimento com a sua certeza, e aparente universalidade, o uso discursivo-intelectual das palavras, que é em verdade algo muito arbitrário e individual, prejudica o entendimento; e, ao mesmo tempo, ao prejudicar o entendimento com a sua incerteza, e aparente individualidade, o uso intuitivo dos símbolos, que é em verdade algo pouco arbitrário e universal, beneficia o entendimento.

Perguntamo-nos, pois, se haverá uma qualquer forma de discurso humano que possa trazer a uma possível cooperação palavra e símbolo, e suas duplas dimensões – e o que significa essa mera possibilidade para a linguagem humana em geral. Pensamos, a saber, numa forma híbrida de linguagem que traga a melhor uso as singulares características de palavra e símbolo: de tal modo que, por conseguinte, do uso individual, não-universal, das palavras, e da sua consequente grande arbitrariedade, possa não advir – por acção do símbolo – a total aridez do entendimento; ou que do uso universal dos símbolos, e da sua consequente pouca arbitrariedade, possa não advir – por acção da palavra – a ilusão do entendimento. Ou, o que é dizer o mesmo, que pelo uso do símbolo, sua sensibilidade e forte ligação ao objecto, não se transtorne – com o auxílio da palavra – o bom procedimento do entendimento; e que pelo uso da palavra, sua intelectualidade e fraca ligação ao objecto, não se sonegue – com o auxílio de símbolos – a possível renovação e fortalecimento do entendimento. Numa palavra, dir-se-ia pois, importa pensar se há entre a arbitrariedade, a intelectualidade da palavra, e a universalidade, a intuitividade do símbolo, uma fina linha de contacto: isto é, se há um dizer humano em que a palavra possa beneficiar do símbolo, e o símbolo da palavra.

Ora, não é difícil de ver que o dizer lógico, o dizer moral, o dizer físico, o dizer filosófico, o dizer antropológico, o dizer estritamente literário, não são o dizer a que Kant

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aqui se refere; pois em qualquer um destes se faz maior uso ora do conceito, e da sistematicidade que ele pode oferecer, ora do símbolo, e da intuitividade que ele traz consigo. Isto é, em nenhum destes registos palavra e símbolo parecem coexistir igualitariamente – quanto mais, deste modo, produzir algo disruptivo, mas benéfico para o entendimento. Bem pelo contrário, o discurso em causa pede real hibridez: pois nele se trava uma medição de forças, um diálogo, no dizer de Kant, um jogo [Spiel] entre os referidos atributos contrários, entre palavra e símbolo, entre entendimento e imaginação: e consoante o resultado desse jogo, o que aqui se decide é a própria representabilidade do objecto por palavra e/ou símbolo, e sua generalização como conhecimento humano: a linguagem e o saber humanos. A saber, pois, nesse discurso híbrido, composto por palavra e símbolo, se coloca o eterno problema da difícil, mas necessária conciliação das duas principais dimensões da discursividade humana: a possível ou impossível dizibilidade do objecto, e a possível ou impossível comunicabilidade do dizer esse objecto: a qual está justamente dependente do jogo, e esta da questão da possível hibridez palavra-símbolo.

Este problema, cremos, é por Kant levantado não só aqui, mas também no § 49 da Kritik der Urteilskraft (AA 5: 313-319). Ele põe-se na medida em que, na linguagem humana, dizibilidade e comunicabilidade têm uma relação múltipla, e dificilmente coadunável. A saber, onde totalmente juntos, eles trazem consigo conhecimento-total; onde totalmente separados, eles não trazem consigo nenhum conhecimento; o que é em qualquer dos casos ora impossível, ora indesejável. Mas mesmo onde eles variam na sua posição, eles apenas assumem vertentes igualmente problemáticas, aliás, já nossas conhecidas: pois onde há dizibilidade, mas nenhuma comunicabilidade universal, isso é a palavra como atrás a vimos, e onde há indizibilidade, mas comunicabilidade universal, isso é o símbolo como atrás o vimos. Ora, como sabemos, o problema é propriamente este: que nenhum destes, nem palavra nem símbolo, logra ser benéfico sem ser prejudicial entre si. Mas – afirmamos nós com Kant – onde houver cruzamento – o referido diálogo, ou jogo – entre palavra e símbolo, poderá haver solução para o problema. A alternativa passa, pois, por pensar não o óbvio, mas o impensável: a saber, a possibilidade de algo indizível que seja, ao mesmo tempo, universalmente comunicável. Ou, se quisermos, a possibilidade de pensar aquilo que no símbolo é indizível, sensível, intuitivo – mas omnidizente, e universalmente comunicável – e agregá-lo àquilo que na palavra é dizível, ordenado,


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discursivo, mas apenas ilusoriamente universalmente comunicável – tornando, pois, o que é neles é mau em bom, e unindo isso ao que neles sempre foi bom.

Assim, pergunta-se por fim: que discurso é este que permite ao homem jogar o jogo entre entendimento e imaginação, na sua designação do mundo; e como se dá este jogo, ele que é também jogo entre palavra e símbolo, no espírito designador? Numa palavra, o que transmite para Kant aquilo que é inefável, e ao mesmo tempo universalmente comunicável, na linguagem humana? A resposta é para Kant a seguinte: um determinado uso das palavras, e sua universal incomunicabilidade, que produz certos símbolos universalmente comunicáveis, e um determinado uso dos símbolos, e sua indizibilidade, que reconduza a certas palavras e sua dizibilidade. A resposta é a poesia, faculdade criadora de ideias estéticas – diz o Kant da Terceira Crítica; ou a poesia, o jogo entre entendimento e imaginação, reitera o Kant da Antropologia de 1798; ou, diz ainda o Kant das lições de antropologia que vimos tratando, as próprias criações poéticas, “as imagens pictóricas dos poetas” (AA 25.1: 126), as quais Kant apelida de facto como símbolo, mas que são tal espécie de símbolo que justamente garante a universal comunicabilidade do inomeável, e com isso promove o discurso conciliador, ora potenciador, ora atenuador, entre palavra e símbolo.

A razão para isto, cremos, é simples; e pode ser procurada na própria concepção kantiana de poesia, como ela surge não só nas próprias lições sobre a faculdade de designar, mas em outros pontos da sua obra23. Pois, a saber, é evidente que as imagens dos poetas são uma espécie de símbolos cuja eficácia depende de palavras; e as palavras dos poetas são uma espécie de palavras que promovem elas mesmas símbolos. E isso é claro, pois isso mesmo é a poesia. Mas, para além desta interdependência natural, diz Kant que, justamente, as imagens dos poetas têm em si algo de único, e que isso sim, essa sua capacidade única de designação, é aquilo que logra trazer à luz o melhor que há em ambos os contrários, e os torna um só. Pois, diz sobre isto Kant, as imagens dos poetas não são como os conceitos abstractos – das ciências atrás mencionadas –, em cuja designação “se tem de usar muitas palavras” (id.), e onde símbolo se subjuga à palavra, ou vice-versa. Bem pelo contrário, porque as imagens poéticas são sensíveis, então elas não são verborreicas, elas não têm por próprio criar ruído discursivo entre objecto e palavra (como

23 As lições de antropologia sobre a faculdade de poetar, as secções sobre o mesmo tópico na Antropologia num Enfoque Pragmático ou o texto «Entwurf zu einer Opponenten-Rede» (AA 15.2: 903-935) são disto exemplo.

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o é o do cepticismo linguístico), antes com elas “pode poupar-se nas palavras” (ibid.). Mas, justamente devido a essa poupança nas palavras – esse silêncio cumulativo –, que torna as próprias palavras mais precisas, mais vivas e pungentes, porque mais sensíveis, ao caírem estas enquanto representações nos sentidos, elas não só não se quedam mudas, mas, dir-se- ia, antes soltam a sua singular pregnância antes amarrada, e, enquanto símbolo, dizem mais do que de outro modo poderiam dizer; aliás, mais do que de facto lhes seria possível dizer em qualquer outro contexto: elas, dir-se-ia pois, “ocasionam muito que pensar” (AA 5:

314) ao entendimento – mais, pois, do que seria possível mediante um mero símbolo sem palavra (o qual é indizível, mas universalmente comunicável), ou uma mera palavra sem símbolo (a qual é dizível, mas universalmente incomunicável), os quais antes logram empedernir o entendimento. Ora, assim sendo, então o que a imagem poética logra é não ressequir, mas tão-pouco ludibriar o entendimento – e isso porque ela é o indizível na sua universal comunicabilidade. E se o é, então isso significa que o que a imagem poética cria, e põe em marcha com este silencio omnidizente, é justamente uma estimulação, mas uma estimulação regrada do entendimento, através da acção refreada, precisa, contida da imaginação: um jogo que ocorre mediante uma acção conjunta, única, singularmente fértil das valências contrárias, e duplamente benéficas e prejudiciais, de símbolo e palavra. E isto sim, diz Kant, é verdadeiramente único nas criações poéticas, e na paleta de potencialidades designativas que elas oferecem ao espírito humano.

A poesia, concluímos pois, é um jogo entre contrários que nela o não são. Pois a poesia tem de facto algo de discursivo e intelectual – a sua dizibilidade, e, portanto, a sua incomunicabilidade universal, que lhe é conferida pelas palavras que a ocasionam; e algo de não-discursivo, intuitivo – a sua indizibilidade, e portanto a sua comunicabilidade universal, que lhe é legada pelos símbolos que ela produz. Mas, porque assim é, e porque ela é linguisticamente produtiva, não reprodutiva, então o jogo da poesia consiste em que, por um lado, ela compense a indigência linguística das palavras que a compõem mediante os símbolos que estas produzem, e, dir-se-ia, faça com que as suas palavras ganhem asas no símbolo, e digam mais do que estas mesmas diriam em outra disposição do ânimo; e, por outro lado, em que na poesia se refreie este mesmo voo do símbolo mediante as próprias palavras, tornando-o cognoscível e entendível ao entendimento: assim unindo a indizibilidade das suas imagens simbólicas, aqui criadas por palavras, com a comunicabilidade universal dos símbolos, aqui para isso impulsionadas por palavras. O


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mesmo é dizer: a poesia logra usar as palavras de tal modo que estas não correm o risco, como outras, de ressequir e uniformizar os movimentos do entendimento – o que ocorre mediante a sua simbolização, e a sua designação do objecto, e da verdade do mesmo, sob cores mais vivas; e ao fazê-lo, ela recorre aos símbolos de tal modo que estes não transgridem mais do que momentaneamente as regras do entendimento, o que leva o entendimento a ulteriormente aceitá-las e entendê-las como boas. A saber, pois, a poesia logra de facto anular os pontos fracos, e acentuar os fortes, de palavra e símbolo: a indizibilidade dos símbolos pode e deve pois ser universalmente comunicada por palavras, e é aliás a produção dessa mesma indizibilidade – por dissemelhança – que mais estanca a seca do entendimento, e mais nele estimula o mais-pensar: “Quanto mais as imagens sensíveis tomarem os sentidos, tanto mais se exige entendimento para descobrir a coisa correcta” (AA 25.1: 127; id.: 339); tal como é a comunicação por palavras de tal indizibilidade do símbolo que refreia o sentimento desabrido da imaginação, e que alinha as suas produções com o entendimento, e o leva a ter de as aceitar: desvantagens e vantagens sinalizadoras de palavra e símbolo estando aqui, enfim, em mútuo e interdependente serviço da eterna renovação do espírito, e do contínuo progresso do conhecimento humano.


Bibliografia


KANT, Immanuel (1901ff.), Gesammelte Schriften. Hrsg. von der Königlich-Preussischen Akademie der Wissenschaften zu Berlin (Akademie-Ausgabe), Berlin: Georg Reimer. (AA)


KANT, Immanuel (1965), Die Philosophischen Hauptvorlesungen Immanuel Kants. Nach den neu aufgefundenen Kollegheften des Grafen Heinrich zu Dohna-Wundlacken, hrsg. Arnold Kowalewski, Hildesheim: Georg Olms Verlag. (PH)



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