“uma certa falta de urbanidade”.
As hesitações de Kant a respeito da música
“a certain lack of urbanity”.
Kant’s Hesitations About Music
Maria João Mayer Branco·
Universidade Nova de Lisboa / Ifilnova, Portugal
Resumo
O presente artigo explora a ambivalência das posições de
Kant a respeito da música. Procura-se mostrar, por um lado, o modo como elas se
enquadram no contexto da reflexão filosófica moderna acerca desta arte e, por
outro, a sua pertinência no contexto da estética kantiana, que justifica as
hesitações de Kant em classificar a música como bela ou agradável, arte ou mero
entretenimento, beleza livre ou beleza aderente, cultura ou natureza.
Palavras-chave
música, arte, linguagem,
subjectividade, cultura
Abstract
This paper explores Kant’s ambivalent views on music.
It aims to show, on the one hand, how these ambivalences are in line with the
modern philosophical reflection on this art; on the other hand, to show their
place within Kantian aesthetics, a place that justifies Kant’s hesitations as
whether to classify music as beautiful or agreeable, art or mere enjoyment,
free or dependent beauty, culture or nature.
Key
words
music,
art, language, subjectivity, culture
1.
As considerações de
Kant a respeito da música são escassas, e dão conta de um conjunto de
ambivalências que se procurará explorar aqui. Elas manifestam-se, por exemplo,
na hesitação de Kant quanto ao valor estético da música quando comparada com o
das outras artes, ou ainda quanto aos efeitos da música sobre o sujeito, ou os
sujeitos, que a escutam. Se, por vezes, Kant elogia a música e a componente
formal que faz dela uma bela arte, outras vezes condena-a como um simples jogo
de sensações que pertence apenas ao domínio do que é agradável. Do mesmo modo,
na terceira Crítica, Kant tanto escreve que a música “move o ânimo do
modo mais variado”, como declara que da música “não sobra nada para reflexão”
porque as suas impressões são “transitórias”
(KdU, §53, AA 05: 329-330).[1] Sobre a música parece, assim, cair continuamente uma
série de suspeitas que procuraremos esclarecer neste artigo: a suspeita de que
a música não é uma arte, a suspeita de que a música remete o sujeito para o
universo privado das suas sensações, a suspeita de que a música é vazia de
sentido, a suspeita de que ela é perigosa porque ameaça a liberdade dos
ouvintes.
As reservas de Kant
têm motivações filosóficas profundas, que vão muito para além de meras
idiossincrasias biográficas do autor das três Críticas, e que Kant
partilha com outros autores, antigos e modernos. É certo que, a crer nos seus
biógrafos, Kant nunca mostrou especial gosto pela música, não tocava nenhum
instrumento e parecia preferir fanfarras militares e canções populares à música
erudita (Parret 1992); sabemos também, pelo testemunho de Borowski, confirmado
pelo próprio Kant (Borowski / Jachmann / Wasianski 1985, pp. 18-19), que os
cantos dos reclusos da prisão vizinha à sua casa o perturbavam ao ponto de ter
exigido à polícia que os presos fossem obrigados a fechar as janelas sempre que
cantavam; e é também verdade que Kant não faz qualquer menção a compositores
como Haydn ou Mozart, que foram seus contemporâneos e cujas obras se tornaram
célebres durante o seu tempo de vida. No entanto, como se procurará mostrar,
apesar da reconhecida ignorância musical de Kant, do episódio algo impiedoso com
os prisioneiros e da reduzida atenção que dedica a esta arte, as suas considerações
sobre ela justificam a influência que Kant exerceu, e continua a exercer, no
interesse da filosofia por esta arte, e também na tendência que tem sido
ultimamente designada como “filosofia da música”. Mais precisamente, como se
irá esclarecer, apesar da “desproporção” entre o espaço dedicado à música na
terceira Crítica e a influência dessas páginas, em especial, na
tendência conhecida por “formalismo musical” (Kivy 1991), as hesitações,
reservas ou mesmo suspeitas de Kant acerca da música dão conta da ambivalência
essencial que parece ser constitutiva desta arte, e que Kant não foi de modo
algum o único a problematizar. Assim, e a despeito das relevantes diferenças
que separam o seu pensamento sobre a música do de outros filósofos, as
considerações de Kant parecem estar em linha, não apenas com a interpretação,
digamos, mais estrita e dita “formalista” da música, mas com as preocupações e
o interesse que a filosofia dedicou a esta arte, e muito em particular a
filosofia moderna.
Esse interesse —
inédito na história da filosofia — deveu-se certamente a razões de ordem histórica,
que apenas podemos aqui indicar de modo muito sucinto e necessariamente
incompleto, mas que convém ter em mente quando se considera o que Kant diz da
música e a influência directa ou indirecta das suas considerações, quer sobre
os filósofos, quer sobre os musicólogos ou mesmo sobre os compositores que se
lhe seguiram. São razões que dizem respeito, por um lado, aos desenvolvimentos
da história da música ocidental dita clássica ou erudita (Johnson 2015), entre
os quais cumpre destacar a tendência para a composição de peças exclusivamente
instrumentais, ou seja, de obras que, ao contrário das obras de música sacra, escrita
para acompanhar rituais religiosos, ou da música operática, indissociável de um
libreto, não recorria a textos cantados ou recitados. A importância crescente
desta tendência — não praticada, como é sabido, na Antiguidade —, pareceu
legitimar as pretensões da música a afirmar-se como uma arte autónoma porque independente
de sentidos ou conteúdos religiosos, políticos ou outros, de tal modo que a
música puramente instrumental ou, como também veio a ser chamada, a “música
absoluta”, acabou sendo considerada como uma manifestação da liberdade ou da emancipação
desta arte em relação a ideias, projectos ou poderes extra-musicais, e portanto
como uma expressão da verdadeira essência da música (Dahlhaus 2006; Bonds 2014;
Ginsborg 2017).
Por outro lado, é
também certo que a ideia da emancipação ou autonomização da música se enquadra
no entendimento filosófico mais alargado da arte e das artes na modernidade,
entendimento esse que consagrou a Estética como disciplina, e do qual se pode
dizer que Kant foi, em grande medida, o fundador. Assim, às razões relativas ao
desenvolvimento da história da música ocidental moderna que justificaram um
interesse filosófico sem precedentes por esta arte, acrescem ainda razões
relativas à própria história da filosofia deste período (Hermand/Richter 2006),
tais como a referida emergência da Estética, mas também o protagonismo de dois
problemas centrais para a reflexão filosófica moderna, a saber, o problema da
linguagem e o problema da subjectividade (Bowie 2009; Steinberg 2004; Johnson
2015).
No que diz respeito à
linguagem, a sua problematização filosófica na modernidade decorreu em grande
medida, como é bem sabido, da exploração da ideia de que as línguas
são criações humanas, compostas por uma pluralidade de convenções arbitrárias,
sujeitas a mudanças históricas e a particularidades culturais, geográficas ou
outras, e, portanto, insusceptíveis de fornecer uma adequação exacta aos
fenómenos que as palavras nomeiam, exprimem ou comunicam (Bowie 2007, pp. 46-78). É neste contexto que filósofos como Schopenhauer, por
exemplo, se voltam para a música e para a possibilidade de esta arte fornecer a
solução para uma comunicação ou expressão mais adequada, menos arbitrária ou
até mais verdadeira de sentidos e realidades que não são linguisticamente transmissíveis.
A música, e muito em especial, mais uma vez, a música puramente instrumental ou
desprovida de palavras, textos ou discurso verbal, ganha, portanto, um valor
expressivo, e até cognitivo, sem precedentes na história da nossa cultura. Esse
valor assenta, porém, num estranho paradoxo, pois é porque a música não fala que
ela parece conseguir dizer aquilo que a linguagem não é capaz de exprimir (por
exemplo, no caso de Schopenhauer, a verdade inefável, conceptual ou
linguisticamente indizível, e até filosoficamente inexprimível, da Vontade). O
paradoxo consiste, então, no facto de a compreensão da natureza não linguística
da música implicar a ideia de que a música é uma linguagem (Johnson 2015, pp.
236-274), seja ela uma linguagem dos afectos (Kant), uma linguagem metafísica
(Schopenhauer) ou um jogo de linguagem (Wittgenstein).
Quanto ao problema da
subjectividade, ele implica tanto a problematização do cogito
cartesiano, quanto da noção de indivíduo (Steinberg 2004, pp. 4-7). Pois,
embora Descartes tenha contribuído de modo decisivo para a compreensão do
contraste entre a interioridade subjectiva e a realidade externa, a teorização
filosófica moderna acerca da experiência subjectiva revelou a inadequação da
ideia de um sujeito auto-consciente, transparente apenas para si próprio e totalmente
independente do mundo exterior. De facto, à consideração da experiência de uma
existência separada em relação à totalidade do mundo empírico, a filosofia moderna
pós-cartesiana acrescenta a descoberta da subjectividade como um âmbito ainda inexplorado, senão mesmo
desconhecido, composto por elementos não conscientes e não transparentes, mas
opacos à racionalidade e à introspecção, e continuamente vulnerável a mudanças
e influências exteriores. A reflexão filosófica moderna acerca da subjectividade
irá tematizar esta descoberta e explorar o seu potencial crítico da categoria
cartesiana do ego cogito, e pensará o sujeito como uma entidade dinâmica,
instável e difícil de determinar com clareza, irredutível a uma descrição
objectiva, factual ou conceptual, de modo nenhum imune ao mundo que o rodeia, e
que, em grande medida, o determina. Em vez de idêntico a si próprio e acessível
por um exercício de introspecção, o sujeito filosófico moderno constitui-se,
portanto, como um contínuo esforço de auto-determinação que é, ao mesmo tempo, um
processo contínuo de auto-descoberta composto por movimentos e estados anímicos
como o desejo, o questionamento, o sentimento, a expectativa, a angústia, etc.
Ora, um dos motivos
da atenção inédita que a filosofia moderna concedeu à música foi a crescente
convicção de que, ao contrário das outras artes, a música expressava justamente
esta vida subjectiva problemática e dificilmente racionalizável e categorizável.
A música surge, neste contexto, como a arte que acede e exprime de modo
adequado o mundo e a verdade interior do sujeito, ou seja, aquele mundo e
verdade que não encontram uma correspondência fiel em cada um dos diferentes
domínios da existência e da experiência, e que parece susceptível de um
incessante alargamento ou expansão. É também neste contexto que a defesa da
autonomia da música contribui para estabelecer, por exemplo, entre os autores
do Romantismo Alemão ou nas obras de Beethoven, a ideia de que a música é a
única expressão adequada da vida subjectiva, quer dizer, das experiências
dificilmente definíveis de sentir, pensar ou querer, e de uma cada vez mais
complexa relação entre o Eu e o mundo. Para estes e outros pensadores modernos,
a música torna-se, então, tanto a linguagem, como a experiência da
subjectividade, o que não significa apenas que a música fala (ao sujeito e do
sujeito), mas também, por assim dizer, que ela pensa, reflecte, recorda e até se
escuta a si mesma.
Todo este contexto
histórico-filosófico onde a música ganha um protagonismo sem precedentes pode,
então, resumir-se do seguinte modo: a música desestabiliza as fixações linguísticas,
culturais, racionais e filosóficas estabelecidas, fazendo-nos experimentar os
limites destas últimas e, apresentando-nos, simultaneamente, a possibilidade de
alargar esses mesmos limites no interior da experiência possível.
2.
Ao
contexto histórico-filosófico que determinou o interesse da filosofia moderna
pela música, acresce, evidentemente, e para o que aqui nos importa, o próprio
contexto da estética kantiana, que procura fornecer um enquadramento conceptual
ao já referido estatuto ambivalente da música. É nesse contexto que Kant parece
hesitar, na terceira Crítica, em classificar a música como bela ou
agradável, como beleza livre ou aderente, como arte ou mero entretenimento,
como cultura ou natureza, como composição formal ou mero jogo de sensações.
Para esclarecer o
alcance destas hesitações, importa começar por recordar a caracterização do
sentido da audição na Antropologia segundo um ponto de vista pragmático,
texto em que, como foi já assinalado (Reed 1980), a ambivalência das posições
de Kant relativamente à música encontra um relevante análogo. Kant parece aí
hesitar entre associar a audição aos sentidos “objectivos” do tacto e da visão ou
aos sentidos “subjectivos”, e, portanto, inferiores, do paladar e do olfacto (ApH,
§16, AA 07: 154). Por um lado, Kant considera — positivamente — que a audição partilha
com a visão uma natureza mediata, pois em ambas as sensações dependem de um medium
(a luz, no caso da visão, o ar, no caso da audição), estando, por isso, menos
dependentes ou mais livres das afecções do órgão sensorial (olho e ouvido) do
que o que acontece nos casos do tacto, do paladar e do olfacto. Por outro lado,
e também positiva ou objectivamente, tal como a visão, a audição é capaz de
percepcionar objectos à distância, não carecendo de grande proximidade ou mesmo
de um contacto físico directo do nosso corpo com eles: os sons são “objectivos”
porque a sua presença “se espalha em todas as direcções” (ApH, §19, AA 07: 156).
No entanto, a objectividade da audição revela simultaneamente a sua proximidade
com o sentido mais subjectivo, o olfacto, que Kant considera como sendo “o mais
ingrato” e “mais dispensável” de todos os sentidos (ApH, §22, AA 07: 158). São
três as razões deste juízo sobre o olfacto: por um lado, as sensações
olfactivas são intrusivas ou mesmo impositivas e, assim, “contrárias à liberdade”
e à sociabilidade (ApH, §21, AA 07: 158), não podendo o sujeito escolher ser ou
não afectado por elas; em segundo lugar, elas são “passageiras” e
“transitórias”, o que faz do olfacto um sentido “indigno de ser cultivado ou
refinado” (ApH, §22, AA 07: 158); em terceiro lugar, e mais gravemente, o
olfacto é um sentido eminentemente subjectivo porque não admite distância entre
as sensações e o órgão sensorial por elas afectado, e porque as sensações
olfactivas confinam o sujeito em si mesmo uma vez que, a seu respeito, é quase
impossível “entrar em acordo com outros”.
Ora, de acordo com
Kant, estes três aspectos negativos são comuns aos odores e às sensações
sonoras, pois, apesar da sua “objectividade”, também estas últimas são
contrárias à liberdade e à sociabilidade porque impõem a sua presença sobre o
sujeito, também elas são “passageiras” e “transitórias” e, por essa razão,
também elas dificultam qualquer “acordo com os outros”. Na Antropologia,
a audição parece, assim, oscilar entre objectividade e subjectividade, mediação
e imediatez, independência ou coincidência do sujeito com as sensações sonoras.
Se, por um lado, e tal como as impressões visuais “objectivas”, os sons indicam
um distanciamento do sujeito em relação aos objectos que impede a confusão
entre o mundo interno ou subjectivo e o mundo externo, garantindo a liberdade
do sujeito que escuta relativamente ao que é escutado, por outro lado, os
mesmos sons partilham com as sensações olfactivas uma natureza transitória e
passageira, intrusiva ou impositiva, não raro indesejada e contrária à liberdade,
à sociabilidade e à sua comunicabilidade.
A oscilação entre a
objectividade e a subjectividade das sensações sonoras é também manifesta na Crítica
da faculdade de julgar, onde o problema de saber se elas são uma indicação
de liberdade e sociabilidade ou da ausência destas últimas parece acompanhar
sempre as hesitações de Kant acerca da música e da escuta musical. Muito em
particular, e indo mais directamente ao encontro das preocupações centrais da
terceira Crítica, a discussão sobre a música e o seu valor estético
decorre, em grande medida, da discussão acerca da privacidade das sensações
sonoras ou da possibilidade de nelas poder, pelo contrário, estar em jogo algum
tipo de comunicabilidade, e, preferencialmente, uma comunicabilidade universal.
Nos termos da terceira Crítica, esta segunda possibilidade dependeria da
existência, na música, de um elemento formal acerca do qual fosse possível
reflectir e comunicar, garantindo que a música é, efectivamente, uma arte ou
uma bela arte, quer dizer, que a música é irredutível a um mero jogo de
sensações agradáveis. Contudo, é justamente esta ideia, a suspeita de que a música
pode consistir num simples jogo de sensações agradáveis, que Kant não parece conseguir
despedir completamente.
O problema de saber
se, na música, estão em causa sons entendidos como sensações que remetem o
sujeito para uma privacidade que o isola e sobre a qual não é possível nenhum
acordo com outros, ou se, ao invés, nela está em causa qualquer coisa de ordem
formal surge no contexto da distinção entre o belo e o agradável. Nos §§6 e 7,
Kant distingue os juízos do agradável e da beleza fundando os primeiros num
“sentimento privado” (KdU, §7, AA 05: 212) e os segundos num comprazimento que
é atribuível, e mesmo exigível, a outros. Como exemplo do juízo do agradável,
Kant refere a preferência pelo som dos instrumentos de sopro ou pelo som dos
instrumentos de corda, que agradam ora a um, ora a outro sujeito, sugerindo a
privacidade da sua percepção, quer dizer, remetendo essa preferência para os
sentidos e sensações do sujeito, e reduzindo o som dos instrumentos à sua mera
materialidade. No §14, Kant esclarece ainda que os juízos de agrado ou
desagrado são “juízos dos sentidos (juízos materiais)” ou “empíricos”, enquanto
os juízos de beleza são “formais” ou “puros”, constituindo estes últimos os
“autênticos juízos de gosto” (KdU, §14, AA 05: 223). Aqui, porém, e ao
contrário do que acontecia no §7, Kant admite a possibilidade de as sensações
sonoras (como a do som do violino) poderem ser julgadas belas se forem “puras”,
quer dizer, se disserem respeito, não à matéria das sensações, mas à sua
“forma”, que é aquilo que, delas, “com certeza pode comunicar-se
universalmente” (KdU, §14, AA 05: 224). Para apoiar esta possibilidade, Kant
considera o ponto de vista da Física e as teses de Euler[2], segundo as quais os sons não seriam “simples
sensações”, mas vibrações isócronas do ar com uma intensidade regular,
perceptíveis não apenas pelos seus efeitos sobre os nossos órgãos auditivos,
mas pelas faculdades cognitivas do entendimento e da imaginação e pelo modo
como estas atentariam nessa regularidade ou, como Kant prefere dizer, nesse
“jogo regular” (KdU, §14, AA 05: 224). De acordo com esta hipótese, “o elemento
puro” da sensação “significa que a uniformidade da mesma não é perturbada e
interrompida por nenhum modo estranho de sensação e pertence meramente à
forma”, ou seja, a pureza ou a regularidade das vibrações indicaria uma forma
invariável, pura e, portanto, não privada, sobre a qual seria possível exercer
uma “reflexão”, quer dizer, o jogo livre das faculdades (KdU, §14, AA 05: 224).
A esta possibilidade
acresce ainda, no mesmo parágrafo §14, um argumento que parece resgatar não
apenas os sons, mas também a música, do risco de resvalar para a esfera da mera
agradabilidade e, portanto, da mera materialidade, da mera sensorialidade e
correspondente privacidade. O mesmo argumento legitimaria, assim, a defesa de
que a música é susceptível de suscitar juízos de gosto ou de beleza, ou seja,
de que a música é, ou pode ser, arte ou de que a música pertence às belas
artes. O que distingue estas últimas, escreve Kant, “não é o que deleita na
sensação, mas simplesmente o que apraz pela sua forma” (KdU, §14, AA 05: 225).
E tal como, nas artes plásticas, o que apraz pela sua forma é o desenho e não
as cores, assim também, na música, não são os “tons agradáveis do instrumento”,
mas “a composição” que constitui “o verdadeiro objecto do juízo de gosto puro” (KdU,
§14, AA 05: 225). Quer isto dizer que, no que à música diz respeito, se ela é
uma arte bela, o que nela suscita a reflexão estética e o jogo livre do
entendimento e da imaginação é o seu elemento formal, ou seja, não os seus
efeitos sobre os nossos sentidos, mas aquilo a que Kant chama a “composição” e
que consiste num “jogo das sensações (no tempo)” (KdU, §14, AA 05: 225).
Admitindo, então, com
a ajuda do ponto de vista da Física, que os sons não são “simples sensações,
mas já determinações formais da unidade de um múltiplo” (KdU, §14, AA 05: 224),
e que há na música (no som do violino) um elemento formal ou puro, Kant parece
conseguir garantir à música uma dignidade estética e artística que a protege de
se degradar num mero entretenimento agradável aos sentidos insusceptível de uma
autêntica reflexão estética, dada a privacidade que o caracteriza. Dito de outro
modo, é a forma na música — a “composição” — que a impede de se reduzir a um
mero jogo de sensações agradável ao ouvido, um jogo que apenas entretém a audição
remetendo o ouvinte para a esfera privada e incomunicável das suas sensações. A
forma depura, se o podemos dizer assim, a música da mera sensorialidade e da
matéria das sensações, libertando-a do domínio dos sentidos e abrindo-a ao
exercício das faculdades cognitivas, que define os juízos reflexivos e os
distingue dos de agradabilidade.
No entanto, a
abertura da música à reflexão a partir de uma hipótese explicativa da Física
sobre os sons implica simultaneamente a conveniência da música, não apenas, ou
não tanto, ao uso reflexivo, mas ao uso determinante das faculdades cognitivas.
Ou seja, a possibilidade de a forma ou composição sonora corresponder a um jogo
regular e, portanto, invariável e constante, passível de ser conhecido de um
ponto de vista científico e até, como irá tornar-se mais claro, de um ponto de
vista matemático, torna o acesso a essa regularidade mais próximo de um acesso cognitivo
do que estético, no sentido que a terceira Crítica dá a estes termos. E
embora no §14 Kant pareça não considerar esta consequência do que aí defende a
respeito do elemento formal na música, a Observação Geral sobre a primeira
secção da Analítica do §22 sugere precisamente que, quando a forma bela — e
também a forma sonora bela ou a música — é concebida como um “jogo regular”, ela
presta-se preferencialmente ao uso cognitivo das faculdades da qual a Crítica
da faculdade de julgar se propõe separar os juízos estéticos.
Defende aí Kant que o
prazer na regularidade diz respeito ao entendimento e não ao gosto, e que, no jogo
livre das faculdades com a beleza, a conformidade a regras deve ser “evitada”,
na medida em que ela constitui uma coerção do entendimento sobre a imaginação (KdU,
§22, AA 05: 242). Ora, o que caracteriza o juízo estético ou de gosto é que,
nele, a reflexão não visa o conhecimento, mas a “simples contemplação do
objecto”, na qual “o entendimento está ao serviço da imaginação e não esta ao
serviço daquele” (KdU, §22, AA 05: 242). Assim, a liberdade e a pureza que a
forma, entendida como “jogo regular”, concedia à música e à beleza no §14
parecem agora comprometer a liberdade da imaginação e o próprio estatuto do
exercício das faculdades que a forma musical bela suscita. Pois agora Kant
mostra que uma regularidade pura ou, como ele escreve, “rígida” e “matemática”,
é sentida como uma coação do entendimento sobre a imaginação que impede o jogo
livre reflexivo entre as duas faculdades. Acresce ainda, como Kant não deixa de
precisar, que o efeito da regularidade sobre a imaginação é o exacto oposto do
comprazimento e da vivificação do ânimo que está em causa na reflexão:
Todo o
rigidamente regular (o que se aproxima da regularidade matemática) tem em si o
mau gosto de não proporcionar nenhum longo entretenimento com a sua
contemplação (...) [e] produz tédio. (KdU, §22, AA 05: 242)
Uma regularidade
formal rígida ou pura, torna-se, então, enfadonha do ponto estético pela
simples e boa razão de que ela apenas admite a sua própria repetição. No caso
da música isso parece tão claro, que Kant chega a admitir que há mais “beleza”,
porque há “mais liberdade”, no canto dos pássaros “que nós não podemos submeter
a nenhuma regra musical”, do que no canto humano “executado segundo todas as
regras da música; porque enfadamo-nos muito com o último, se ele é repetido
frequentemente e por longo tempo” (KdU, §22, AA 05: 243).
Assim, se a pureza da
forma liberta a música da impureza das sensações, como é defendido no §14,
demasiada pureza formal, demasiada exactidão matemática ameaça a liberdade do
juízo estético sobre ela, ameaça a reflexão com a determinação. Como a
declaração sobre o canto dos pássaros sugere, quase por absurdo, se os juízos
de beleza que a música suscita se fundam na forma ou na composição musical que
dota os sons de regularidade, quer dizer, de um padrão matematicamente
calculável ou determinável sobre o qual se exerce o entendimento, essa
regularidade não pode, contudo, ser absoluta ou rígida, sob pena de se tornar cansativa,
quer dizer, esteticamente desinteressante, maçadora, ou indiferente ao ouvinte,
que a deixa, simplesmente, de escutar. Dito ainda de outro modo, se a forma, a
composição ou o “jogo regular” implica uma ordenação rígida e matemática dos
sons e das sensações sonoras, se ela lhes confere invariabilidade,
calculabilidade, uma exactidão que garante que a sua percepção não é uma mera
sensação privada, mas algo objectivo e até passível de ser cientificamente
conhecido, Kant parece, contudo, reconhecer que deve haver limites para a
pureza do elemento formal na música, limites para a regularidade do “jogo de
sensações (no tempo)” em que a música bela consiste, limites para a matemática
na música.[3] Mais precisamente ainda, e como, uma vez mais, o exemplo
do canto dos pássaros convida a pensar, Kant parece reconhecer que, para ser bela,
e para ser arte, a música requer um certo grau de irregularidade ou de
liberdade formal, a qual, de acordo com este mesmo exemplo, pode ser
encontrada, não numa obra artística, numa qualquer peça ou composição musical,
mas numa sonoridade natural, na ordenação irregular e sempre cambiante, porque
viva, da natureza “livre”. A música parece, então, admitir, e até exigir, se
ela é bela, uma peculiar “liberdade” — uma liberdade análoga à “liberdade” dos
animais, quer dizer, da animalidade não matematizada e não matematizável, não
domesticada pelas regras do entendimento e, por essa mesma razão, tão livre e
aprazível quanto ameaçadora da racionalidade, e talvez da humanidade.
Resumindo, então, o
que foi dito até aqui, a hesitação da Antropologia entre considerar a
audição como um sentido objectivo ou subjectivo com as consequências indicadas
acima parece prolongar-se na terceira Crítica, onde Kant hesita entre
considerar que a música é agradável ou bela, que ela suscita apenas sensações
ou, pelo contrário, juízos puros de gosto e uma reflexão estética autêntica;
para dissolver (ou complicar) a hesitação, Kant recorre à noção de forma ou de
composição musical, a qual, por um lado, liberta a música da arbitrariedade e
da privacidade das sensações, enquanto, por outro lado, tolhe a liberdade da
imaginação no jogo reflexivo das faculdades; não satisfeito com estes
paradoxos, no §14 Kant admite ainda que essa mesma liberdade é favorecida na
escuta do canto dos pássaros, quer dizer, de uma “música” que é “bela” e “livre”,
mas que, de acordo com os argumentos avançados anteriormente, não é arte, pois
carece de composição ou de forma.
3.
As contradições
parecem não conhecer fim. E Kant prolonga-as quando, no seguimento do §14,
acrescenta ainda que se a forma liberta a música (e, em rigor, toda a arte) da
sua redução ao sensorial, a forma é também o que garante liberdade em relação a
qualquer determinação conceptual, ou seja, ela é o garante daquilo a que Kant
chama uma “beleza livre”. Assim, tal como o juízo do agradável se distingue do
do belo, também o juízo da “beleza livre” se distingue do da “beleza aderente”
porque é independente de qualquer conceito do que o objecto deva ser:
No
julgamento de uma beleza livre (segundo a mera forma) o juízo de gosto é puro.
Não é pressuposto nenhum conceito de qualquer fim (...) mediante o que seria
limitada a liberdade da faculdade da imaginação, que joga por assim dizer na
observação da figura. (KdU, §16, AA 05: 229-230)
A forma, portanto,
não apenas depura ou liberta a beleza em relação à matéria agradável das
sensações, como garante a sua liberdade de qualquer conteúdo conceptual
determinado.
Kant rejeita, então,
que os juízos de gosto puros, fundados na forma bela, que é, ou deve ser,
independente de todo e qualquer conceito — quer dizer, que não é uma
representação, uma ilustração, uma imitação ou uma expressão de outra coisa, e
por isso “apraz por si mesma”[4] —, que os juízos de gosto puros sejam conceptualmente
determinados e que o sentimento da beleza esteja subordinado a algo como o
reconhecimento e a identificação conceptual do que é representado ou exprimido na
forma bela. Contudo, a independência de uma determinação conceptual, quer
dizer, a pureza formal que garante a liberdade ou a autonomia do juízo estético,
parece trazer consigo uma nova ordem de riscos para a música e para a nossa
apreciação da música. Estes riscos são sugeridos — a-problematicamente — por
Kant quando fornece alguns exemplos de beleza livre “que aprazem livremente e
por si”, ou seja, independentemente de qualquer conceito:
Assim,
os desenhos à la grecque, a folhagem para molduras ou sobre papel de
parede etc., por si não significam nada: não representam nada, nenhum objecto
sob um conceito determinado, e são belezas livres. Também se pode contar como da
mesma espécie o que na música se denomina fantasias (sem tema), e até toda a
música sem texto.” (KdU, §16, AA 05: 229)
A surpreendente
sugestão de Kant é, aqui, a de que uma liberdade, digamos assim, absoluta ou
ilimitada da forma bela em relação a qualquer determinação conceptual torna
essa mesma forma insignificante. Ou seja, o que Kant sugere sem,
contudo, o problematizar, é que, quando independente ou autónoma em relação a
todo e qualquer conceito, a forma bela corre o risco de não se parecer com nada,
de não significar nada, de não representar nada. E embora esta consequência não
seja problematizada, parecendo, pelo contrário, ser até valorizada por Kant
nesta passagem, ela traz à luz uma nova suspeita em relação à música, e em
particular, em relação à música “sem tema” e “sem texto”, a saber, a de que a
música só é arte se for beleza livre e independente, ou pura, de determinações
conceptuais (de “temas” e “textos”), mas, uma vez livre de determinações
conceptuais, a música “não significa nada”, ou seja, torna-se vazia de sentido,
desprovida de significação, tão irrelevante quanto um simples elemento
decorativo.
Isto não significa,
porém, que Kant entenda que a música é inócua, quer dizer, que ela nos é
efectivamente indiferente ou que ela não tem quaisquer efeitos sobre nós. Muito
pelo contrário, como se procurará ainda esclarecer, Kant reconheceu que a
música tem efeitos sobre nós, e efeitos, na verdade, muito poderosos sobre o
nosso corpo e sobre o nosso espírito, aos quais não somos de modo nenhum imunes.
Mas acontece que esse poder é, ou pode chegar a ser, ambivalente, e nessa
medida ele constitui um problema ao qual toda a filosofia foi, desde Platão,
sensível, e com o qual a filosofia moderna não deixou de se confrontar, procurando
formulá-lo de diversos modos. É que se a música é, ou pode ser, libertadora — se
ela pode libertar-nos das necessidades físicas para as morais (Rousseau),
libertar-nos para a reflexão e o livre jogo das nossas faculdades (Kant),
libertar-nos das “dores da individuação” (Nietzsche), libertar-nos do idêntico
para a diferença (Adorno) —, ela é, ou pode tornar-se, igualmente coerciva para
a nossa liberdade, pode tornar-se impositiva e até autoritária — tratando-nos
como meros “corpos sonoros” (Rousseau), condicionando os nossos pensamentos e
movimentos (Kant), agindo sobre nós “demoniacamente” (Kierkegaard) ou como um
“narcótico” (Nietzsche), fazendo da escuta um movimento “regressivo” e assim
promovendo formas de “barbárie” (Adorno).
Ora, para esclarecer
o modo como esta contradição é tematizada por Kant, importa recordar o que foi
já indicado atrás acerca da comparação dos sons com os odores na Antropologia,
e muito em particular acerca do seu efeito intrusivo e “contrário à liberdade”
no sentido da audição. O que Kant ali sugere é que nós estamos sujeitos à
sonoridade porque, ao contrário dos nossos olhos, os nossos ouvidos não podem
simplesmente furtar-se aos sons que os afectam, pois, na bela formulação de
Pascal Quignard, “acontece que as nossas orelhas não têm pálpebras” (Quignard
2000, p. 105). Ao contrário das percepções visuais, os sons invadem-nos sem,
por assim dizer, serem convidados ou pedirem licença para entrar. E, neste
sentido, os sons, e também os sons musicais ou a música, podem ser sentidos
como uma ameaça à nossa liberdade e integridade psíquica, como um perigo de
invasão e ocupação do nosso espaço mental, agindo a despeito, ou mesmo
contrariamente, à nossa vontade de não ouvir, como Kant terá porventura sentido
que agia o canto dos presos seus vizinhos. Além disto, e como foi, aliás, desde
sempre sabido na nossa e em outras culturas, do mesmo modo que pode condicionar
a nossa liberdade psíquica, a música pode condicionar também a nossa liberdade
física, ou seja, os movimentos do nosso corpo. A música disciplina, controla,
orienta os movimentos e os gestos, regulando-os, limitando-os ou uniformizando-os,
quer dizer, intensificando, suavizando ou ritmando a energia natural do corpo
como acontece, por exemplo, na música militar, religiosa, de celebração política,
e também na música dita ‘comercial’.
Este aspecto
disciplinador, manipulador ou, numa versão mais edificante, e mais moderada, da
mesma questão, educador e até sociabilizador dos movimentos humanos é indicado
por Kant no §44 da terceira Crítica, quando refere aquilo a que chama a
“música de mesa” (Tafelmusik). Kant sugere aí um uso positivo da música,
no qual esta não é entendida como bela arte ou arte livre, mas como mera “arte
agradável” que suscita o prazer dos sentidos e que pertence à espécie que deleita
“a sociedade à mesa” (KdU, §44, AA 05: 305) (Ak V, 305; §44). Nessas ocasiões,
escreve Kant, o espírito dos convivas está disponível apenas para “o
entretenimento momentâneo e não para uma matéria sobre a qual se deva demorar
para reflectir ou repetir”, pelo que a música
deve
entreter, somente como um rumor agradável, a disposição dos ânimos à alegria e,
sem que ninguém lhe conceda a mínima atenção, favorece a livre conversação
entre um vizinho e outro. (KdU, §44, AA 05: 305)
De acordo, então, com
esta passagem, em vez de remeter o sujeito para a privacidade das suas
sensações, ou seja, em vez de isolar o sujeito e ameaçar a sua liberdade, Kant
admite que a música agradável pode ser útil como instrumento de sociabilização
desde que ela se reduza a um mero “rumor” ao qual “ninguém presta atenção”.
Dito de outro modo, a insignificância indigna de atenção — a pobreza formal,
poderíamos talvez dizer, ou a irrelevância estética da composição musical —
torna a “música de mesa” capaz de favorecer a conversação entre os convivas de
um banquete mantendo-os civilizadamente sentados à mesa, quer dizer, suscitando
e preservando uma certa disposição anímica e uma determinada contenção
corporal. A insignificância estética esconde, portanto, um poder: o poder de
condicionar os comportamentos e os pensamentos, o poder de impor e manter
determinados limites, os limites das chamadas ‘conveniências sociais’ no
interior das quais os indivíduos não excedem uma certa medida, a medida que
está inexplicitamente reservada a cada um — por exemplo, a medida do volume da
voz, da amplitude dos movimentos, do espaço que se ocupa, do tempo que se toma
e se concede a si e aos outros... Neste sentido, pode entender-se que a música
é civilizadora, pois ela regula os comportamentos domesticando ou impondo
limites às nossas tendências naturais, à liberdade instintiva dos nossos gestos
e dos nossos movimentos corpóreos e anímicos, tornando possível um convívio
pacífico, regrado ou moderado entre os indivíduos.
Acontece, porém, que
este poder, a acção civilizadora da música, corre sempre o risco de se
transformar no seu contrário, quer dizer, num condicionamento não apenas físico,
mas também psíquico ou mental, uma vez que, como Kant sublinha, distraindo ou
entretendo os ânimos e impedindo-os de se concentrarem nos seus pensamentos, a
música de mesa anula, ou pode anular, a possibilidade da reflexão. Não sendo
certamente esta a característica que Kant pretende pôr aqui em relevo, o §44
alude, porém, de modo aparentemente inadvertido, ao potencial coercivo da
música sobre os corpos e os espíritos quando acrescenta que a música de mesa
pertence àqueles “jogos que não comportam nenhum interesse para além de deixar
passar imperceptivelmente o tempo” (KdU, §44, AA 05: 306). O risco deste, como
dos outros jogos de sociedade que Kant tem em mente, quer dizer, dos jogos que
têm em vista a socialização e um convívio moderado pelas regras e convenções
que caracterizam e tornam possível a vida social, é o risco da perda da
consciência da passagem do tempo por parte do jogador, quer dizer, o risco da
sua alienação no interior de um tempo artificialmente regulado, que é, na
verdade, um tempo artificialmente suspenso.
Assim, se agora Kant
reconhece a virtude civilizadora da música quando esta não é arte ou bela arte
detentora de uma forma, mas um simples “rumor agradável” que disciplina ou
domestica os corpos e os espíritos tornando-os sociáveis ou educados, Kant
parece não deixar de pressentir, ainda que positivamente, um efeito
contraditório com este último, a saber, o efeito potencialmente alienante que a
mesma música pode ter sobre os ouvintes. A esta contradição podemos ainda
acrescentar uma outra, decorrente do que é dito no §14, e não menos
significativa para a compreensão da amplitude da ambivalência da música: se,
neste §44, a música é louvada pela sua acção civilizadora, e se nele Kant
destaca a utilidade da música quando esta se coloca ao serviço daquilo a que
podemos chamar uma certa ordem ou regularidade social, esta virtude contraria,
de modo muito evidente, aquela que Kant identificava, no §14, no canto dos
pássaros, ou seja, contraria a “liberdade” natural e animal que é o contrário
da disciplina e da acção reguladora da civilização, e por isso mesmo imprópria
para se sentar connosco à mesa num banquete.
Na Crítica da
faculdade de julgar, o canto dos pássaros parece, então, representar algo
como o avesso ou o pólo oposto da “música de mesa”, e os dois pólos parecem
perfazer a ambiguidade constitutiva da música e do pensamento de Kant sobre a
música. Pois se esta oscila sempre entre forma e sensação, beleza e agrado,
arte e entretenimento, sociabilidade e privacidade, dela é também própria a
oscilação entre natureza e cultura. Por isso mesmo, ao elogiar a “beleza” e
“liberdade” do canto dos pássaros, ao elogiar a beleza da música natural e
animal, Kant louva o que na música é contrário às convenções, contrário à ordem
e às regras estabelecidas, contrário às conveniências sociais e ao potencial
civilizador desta arte. E se este elogio é certamente conforme à ideia de belo
natural que Kant defende na terceira Crítica, ele não deixa de assinalar
o que, na música, é desregrado ou avesso a regras, o elemento excessivo que
nela de algum modo resiste ou desafia os limites, o seu lado, digamos,
inconveniente ou menos civilizado. Este elemento algo inquietante da música era,
de resto, já familiar aos antigos, e foi indicado na cultura grega através do
mito das sereias (que, como convém lembrar, não eram originalmente peixes, mas
aves). Mais perto de nós no tempo, e reflectindo sobre experiências que Kant
não poderia ter antecipado, Adorno foi o filósofo que mais atenção prestou ao
poder culturalmente desestabilizador da música, mostrando que se a música é
digna de figurar entre as artes, e se, enquanto tal, ela depende do
desenvolvimento de uma cultura, talvez não seja possível suprimir o seu sempre
latente potencial de barbárie, quer dizer, o elemento indomesticável, selvagem
e desregulador, a natureza excessiva e sem regra, na qual, provavelmente, toda a
música radica.
4.
Será, então, a música
uma arte?
Kant procura
responder a esta pergunta nos §§51 e 53 da terceira Crítica, onde retoma
a ideia de que a música é um mero jogo de sensações, e onde a ambivalência das
suas posições sobre a música parece atingir um paroxismo. Classificando as
artes a partir da definição de beleza como “expressão de ideias estéticas” (KdU,
§51, AA 05: 320), Kant propõe, no §51, que essa classificação deve ser feita
por analogia com o modo de expressão que os homens usam para comunicarem entre
si e com os elementos de que eles se servem para se exprimirem, a saber, a
palavra, o gesto e o tom. Kant estabelece assim uma hierarquia entre três
espécies de artes: as artes ligadas às palavras — a oratória e a poesia, que
ocupam o lugar cimeiro —, as artes figurativas — a pintura, a escultura e a arquitectura
— e, em terceiro lugar, a espécie que Kant designa como “a arte do belo jogo de
sensações” sonoras e visuais, que diz respeito “à proporção dos diversos graus
da disposição (tensão) do sentido a que a sensação pertence”, e à qual
pertencem a música e aquilo a que Kant chama a “arte das cores” (KdU, §51, AA 05:
324). Na definição desta terceira espécie de arte reaparece, então, a
ambivalência aparentemente irresolúvel acerca da subjectividade ou
objectividade das sensações auditivas de que a Antropologia dá conta, e
que Kant havia já problematizado nos §§6, 7 e 14 da terceira Crítica.
Assim, e uma vez mais, no §51 Kant reformula as suas hesitações sobre os sons,
declarando que sobre estas sensações
não se
pode decidir com certeza se têm por fundamento o sentido ou a reflexão [...]
Isto é, não se pode dizer com certeza se uma cor ou um tom (som) são
simplesmente sensações agradáveis, ou se é já em si um jogo belo de sensações e
se como tal traz consigo, no julgamento estético, um comprazimento na forma. (KdU,
§51, AA 05: 324)
As consequências
desta indecidibilidade são as que resultavam já das considerações dos
parágrafos anteriores: se o prazer na audição da música decorre dos efeitos da
vibração do ar sobre os órgãos sensoriais, então esse prazer é da ordem do
agrado e não de um juízo de beleza sobre uma forma; se, pelo contrário, o
prazer resulta do “matemático na música” e de um juízo “sobre a proporção
dessas vibrações”, então as sensações não são “simples impressão dos sentidos”,
mas o “efeito de um julgamento da forma no jogo de muitas sensações” (KdU, §51,
AA 05: 325). Da diferença entre estas possibilidades dependeria, mais uma vez,
a definição da música como “arte agradável” ou “inteiramente como bela arte”,
mas Kant volta a deixar a questão em aberto. Seja como for, a música não parece
sair muito favorecida desta classificação das artes, ocupando o último lugar da
hierarquia e voltando a cair sobre ela a suspeita de não passar de um mero
“jogo de sensações” e de pertencer mais à esfera privada do agradável do que à
esfera universal e universalmente comunicável da beleza. No entanto, no §53,
uma surpreendente interpretação desta comunicabilidade universal parece vir
contrariar as suspeitas acerca do valor estético da música e, não menos
surpreendentemente, resgatá-la da agradabilidade, da sensorialidade e da privacidade
que justificavam, no §51, a ocupação do último lugar na hierarquia das artes.
O §53 é dedicado à
comparação do valor estético das belas artes, e Kant considera dois critérios
de comparação diferentes, a saber, “o movimento do ânimo” que cada arte suscita
e “a cultura que elas alcançam para o ânimo”, ou seja, a promoção do
“alargamento das faculdades que na faculdade do juízo têm de concorrer para o
conhecimento” (KdU, §53, AA 05: 328 e 329). Kant começa por examinar a poesia,
justificando a sua posição no topo da hierarquia das artes com a ideia de que a
poesia “alarga o ânimo” e põe “em liberdade a faculdade da imaginação”, oferecendo-lhe
uma forma que
conecta
a apresentação [de um conceito dado] com uma profusão de pensamentos à qual
nenhuma expressão linguística é inteiramente adequada e portanto eleva
esteticamente às ideias (KdU, §53, AA 05: 327).
A poesia é, então, a
arte mais elevada, pois, mais do que todas as outras artes, ela suscita a
reflexão estética sobre uma forma, alargando e fortalecendo o ânimo na medida
em que “permite sentir a sua faculdade livre, espontânea e independente da
determinação da natureza” (KdU, §53, AA 05: 327) e também de determinações
linguísticas ou conceptuais. Acontece, porém, acrescenta Kant, que “se o que importa
é o movimento do ânimo”, a arte que se deve seguir à poesia é “a arte do som”,
a Tonkunst, quer dizer, a música (KdU, §53, AA 05: 328). A razão desta
súbita dignificação da arte sobre a qual pesava até agora a suspeita de se
reduzir a um simples jogo de sensações é a de que, “embora ela fale por meras
sensações sem conceitos [...] contudo, ela move o ânimo do modo mais variado” (KdU,
§53, AA 05: 328). Quer então dizer que, não comunicando conceitos porque não
recorre a palavras, mas apenas a sons, e mesmo correndo o risco de redundar num
mero jogo agradável com as sensações, a música cumpre o critério de suscitar o
movimento do ânimo porque a música fala. E que ela fale por meras
sensações não parece agora constituir um risco ou um problema, mas uma vantagem,
uma vez que é justamente porque não recorre à linguagem verbal ou conceptual que
a música está livre para exprimir aquilo a que Kant vai chamar neste parágrafo
“uma inominável profusão de pensamentos” [einer
unnenbaren Gedankenfülle] (KdU, §53, AA 05: 329). Este aspecto parece,
então, autorizar a hipótese de que, apesar de todas as suas hesitações, Kant
atribui à música algum valor e que esta arte tem um interesse maior do que
poderia parecer à partida porque, afinal, dela é própria uma comunicabilidade particular
que a dota de um valor estético comparável ao da poesia. Mais precisamente
ainda, Kant vai considerar aqui que a música é uma “linguagem”, e não uma
linguagem qualquer, mas uma “linguagem universal de sensações compreensível a
todos os homens” (KdU, §53, AA 05: 328).
Ora, dadas todas as
hesitações precedentes, a primeira questão que se coloca é, evidentemente, a de
saber, como é que uma linguagem universal pode ser composta por sensações, ou
como é que as sensações podem constituir uma linguagem universalmente
compreensível, se as sensações são privadas e, portanto, incomunicáveis. Por
outro lado, interessa também esclarecer como é que a música pode ser uma
linguagem, se ela não recorre, como a poesia, a conceitos, ou seja, se ela carece
de palavras. Dito de outro modo, neste contexto parece legítimo perguntar que tipo
de linguagem tem Kant em mente quando se refere a uma linguagem que não é
conceptual, que não é discursiva ou verbal, que é “linguagem de sensações” e mesmo
uma “linguagem dos afectos”.
As respostas devem
ser procuradas no entendimento que Kant dá aqui à noção de “linguagem
universal”. Esta universalidade explica-se por aquilo que Kant considera que a
música tem em comum com a linguagem discursiva, ou seja, não os conceitos ou as
palavras, mas a sonoridade ou a tonalidade, quer dizer, o som ou o tom que é
comum às notas musicais e à língua falada. Kant esclarece melhor o que tem
mente escrevendo que
cada
expressão da linguagem possui no conjunto um som que é adequado ao seu sentido;
este som denota mais ou menos um afecto daquele que fala e reciprocamente
também o produz no ouvinte, incitando também neste último a ideia que é
expressa na linguagem com tal som. (KdU, §53, AA 05: 328)
Ou seja, o que é
expresso na verbalização dos pensamentos, ou na tradução dos pensamentos em
palavras não se comunica apenas pela significação dos termos ou conceitos
utilizados, mas pelo afecto patente no som ou no tom com que aqueles são proferidos.
Ao sentido do que é verbalizado é, portanto, adequado, não apenas um conceito,
mas um som que, como Kant escreve, “denota um afecto daquele que fala”. Este
som ou tom, a sonoridade do discurso verbal possui, então, uma natureza musical
e Kant chama-lhe “modulação”, definindo-a como “uma linguagem universal das
sensações compreensível a cada homem”. E o que isto implica, em última análise,
é que a modulação sonora das palavras ou dos conceitos comunica ideias, comunica
um “sentido”, pois ela “produz no ouvinte” o “afecto daquele que fala” e
“incita [no ouvinte] a ideia que é expressa na linguagem por tal som”. Assim,
desta linguagem não propriamente verbal, mas sonora e afectiva, é própria uma
universalidade que não decorre do poder de conceptualizar, mas daquilo a que
poderíamos chamar a sua musicalidade, quer dizer, o poder de sonorizar, o poder
de modular uma ideia através da sonorização dos afectos. Dito ainda de outro
modo, Kant sugere que é a modulação ou a tonalidade que é expressiva do sentido
do que é dito e compreendida por quem escuta, pelo que essa mesma modulação ou
tonalidade é tão comunicável, e talvez até mais comunicável, talvez até
universalmente comunicável, quanto os conceitos. Por outro lado, é também a
modulação sonora que é responsável por suscitar o movimento do ânimo, pois, na
música, é ela que fomenta a reflexão, ou que suscita, como Kant escreve, “uma
inominável profusão de pensamentos”. Assim se explica, então, a analogia entre
a linguagem e a música a partir da sonorização dos afectos ou da modulação, e
assim torna-se também compreensível o valor que a música tão surpreendentemente
adquire, levando Kant a concluir que
assim
como a modulação é a linguagem universal das sensações (...), a arte do som
exerce esta linguagem no seu inteiro ênfase, a saber como linguagem dos
afectos, e assim comunica universalmente (...) a ideia estética de um todo
interconectado de uma inominável profusão de pensamentos. (KdU, §53, AA 05: 328-329)
Portanto, “se o que
importa é o movimento do ânimo”, a música parece, então, salvar-se da agradabilidade
e da privacidade de que era antes suspeita, transferindo-se para o pólo oposto destas
últimas ou para a comunicação universal, quer dizer, passando do último para o
segundo lugar da hierarquia das artes. Assim, se a poesia, que é a forma mais elevada
de arte, “alarga o ânimo libertando a imaginação” e apresenta “uma profusão de
pensamentos à qual nenhuma expressão linguística é inteiramente adequada”, quer
dizer, se a poesia comunica “universalmente” sem “conceitos determinados”, Kant
parece, contudo, sugerir que existe uma outra forma de comunicação universal
sem conceitos determinados e que é a “linguagem dos afectos”, a modulação
sonora na qual a música consiste, e da qual a própria poesia depende
intimamente. Por esta razão, e a despeito de todas as hesitações anteriores,
Kant escreve muito explicitamente que a música “comunica ideias estéticas”, quer
dizer, ideias que “não são conceitos, nem pensamentos determinados” e que, por
isso mesmo, não dão apenas muito que sentir, mas que pensar.
No entanto, esta não
é a última palavra da terceira Crítica sobre a música. Pois, se o
critério para a comparação do valor das artes não for o movimento do ânimo que
elas suscitam, mas
a
cultura que elas alcançam para o ânimo e tomarmos como padrão de medida o
alargamento das faculdades que na faculdade do juízo têm de concorrer para o
conhecimento, então a música possui entre as artes belas o último lugar (assim
como talvez o primeiro entre aquelas que são apreciadas simultaneamente segundo
o seu agrado), porque ela joga simplesmente com sensações. (KdU, §53, AA 05: 329)
O que isto significa,
então, é que, ao contrário do que parecia umas linhas antes, apesar da
universalidade que Kant acaba de atribuir à música, e apesar até do estatuto de
“linguagem universal”, a música não fica definitivamente redimida de resvalar
para um simples jogo de sensações. Mais ainda, do ponto de vista do segundo
critério de comparação entre o valor das artes, as artes figurativas precedem
“de longe” a música, na medida em que
realizam
um produto que serve aos conceitos do entendimento como um veículo duradouro e
por si mesmo recomendável para promover a unificação dos mesmos com a
sensibilidade e assim como que promover a urbanidade das faculdades de
conhecimento superiores. (KdU, §53, AA 05: 329)
Ou seja, ao contrário
do que acontece com a música, das obras de arte figurativas resulta uma forma durável,
um “veículo duradouro” sobre o qual os conceitos do entendimento podem
continuar a procurar jogar livremente com a sensibilidade e a imaginação. Dito
de outro modo, graças a este “produto”, digamos assim, estável ou fixo, é
possível repetir a experiência estética de pinturas, desenhos, gravuras,
esculturas ou formas arquitectónicas, quer dizer, é possível voltar a elas e
renovar a experiência reflexiva que elas suscitam, renovar o jogo livre,
harmónico ou “urbano” das faculdades cognitivas. Pelo contrário, se a música
suscita também ela uma reflexão estética, como Kant acaba de reconhecer, essa
reflexão tem por base, não um “veículo duradouro”, mas sensações sonoras, quer
dizer, sensações evanescentes sem qualquer suporte fixo, estável ou duradouro.
Por isso, como Kant escreve — recordando-nos da inexistência, à sua época, de
música ‘fixada’ ou ‘estabilizada’ em gravações discográficas e disponível fora
do contexto de um concerto —, se as artes figurativas causam uma “impressão
duradoura”, a música apenas causa uma “impressão transitória”, pois o que é
próprio da música é passar, transitar, e desaparecer (KdU, §53, AA 05: 330).
A música não contribui,
então, para a cultura do ânimo porque ela não se fixa em lado nenhum, porque
ela se extingue mal aparece, porque ela é inerentemente instável e resiste a
fixações. A instabilidade e a transitoriedade da música tornam, portanto, do
ponto de vista de Kant, a nossa relação com ela mais arbitrária do que com a
pintura ou a escultura porque é uma relação insusceptível de ser repetida, renovada,
e assim também discutida, comparada, eventualmente até revista ou questionada. Por
outro lado, se a “objectividade” das sensações visuais permite retomar a
reflexão estética não apenas na presença, mas também na ausência física das
formas belas através da sua “reevocação” ou recordação, com a música isso não
parece a Kant ser possível porque as sensações sonoras “se extinguem
completamente” do nosso espírito, sendo ainda que “quando são inadvertidamente
repetidas pela imaginação, são mais enfadonhas do que agradáveis” (KdU, §53, AA
05: 330). Do mesmo modo, a música “não suporta a repetição reiterada sem produzir
tédio” (KdU, §53, AA 05: 328), pois, em vez de suscitar o movimento do ânimo, o
efeito da sua repetição provoca em nós, como Kant já tinha referido
anteriormente, o seu contrário, quer dizer, enfado, indiferença ou até aversão.
A conclusão é, então,
a de que, embora constitua uma linguagem universal, “ajuizada pela razão, [a
música] possui valor menor que qualquer outra das belas artes” (KdU, §53, AA 05:
328). No §53, o veredicto de Kant torna-se, portanto, claro e inapelável: a
música “é certamente mais gozo que cultura”, dela “não sobra nada para a
reflexão” (KdU, §53, AA 05: 328), ela não contribui para o cultivo e a
“urbanidade” do ânimo. Mais explicitamente ainda, escreve Kant, sem qualquer
margem para ambiguidades,
é
inerente à música uma certa falta de urbanidade (hängt der Musik ein
gewisser Mangel der Urbanität an) [...] ela estende a
sua influência além do que dela se pretende (à vizinhança) e assim como que se
impõe, por conseguinte causa dano à liberdade de outros estranhos à sociedade
musical; as artes que falam aos olhos não fazem isto, enquanto se pode apenas
desviá-los quando não se quer aceitar a sua influência. (KdU, §53, AA 05: 330)
Assim, mesmo
admitindo que há na música um elemento libertador, quer dizer, mesmo admitindo,
como se viu acima, que ela alarga o ânimo e liberta a imaginação, e
reconhecendo embora que a música comunica, como as outras artes, ideias
estéticas, as derradeiras considerações que Kant faz na terceira Crítica
sobre a música parecem, não obstante, confirmar a suspeita de que a música
alberga sempre uma ameaça à liberdade, e que nela se esconde, portanto, o
contrário da cultura e da “urbanidade”. Como foi indicado acima, se a música é
“transitória” e dela “não sobra nada para a reflexão”, a música não é, contudo,
sem consequências para o nosso corpo e o nosso espírito, e ela tem o poder de
nos deixar à mercê do seu acontecer, obrigando o ouvido e o ânimo a mover-se ao
seu sabor. Este aspecto distingue-a das outras artes, pois a música impõe a sua
presença sonora (o seu volume, a sua duração, o seu ritmo, a sua pulsação...) e
força os ouvintes a suportarem-na, quer o queiram, quer não. Assim, se ela
liberta — das regras, dos conceitos, das convenções, da consciência do passar
do tempo —, ela pode igualmente coagir e exercer violência sobre a nossa
liberdade, pois a sua instabilidade constitutiva, a sua resistência à fixação
num veículo objectivo ou exterior às sensações que suscita, torna a sua
presença arbitrária e imprevisível, fá-la escapar ao controlo dos ouvintes,
acarretando aquilo a que Kant chama “uma certa falta de urbanidade”.
Que a música carece
de urbanidade significa, portanto, que há nela algo de incivilizado, de
inconveniente ou de mal-educado, que ela aparece (como o canto dos pássaros)
sem ser convidada, e se demora impondo a sua presença e desestabilizando, ou
podendo desestabilizar (como no caso do canto dos reclusos vizinhos de Kant),
uma certa ordem subjectiva e intersubjectiva, perturbando, ou podendo
perturbar, os limites ou as regras que garantem a harmonia do sujeito consigo mesmo
e com os outros. Da música parece ser próprio, como se indicou já, um excesso
ou desregramento, um certo desrespeito pelas regras e convenções, um elemento
que se opõe à civilidade e à civilização, o qual convive, como se viu também
acima, com o potencial civilizador da mesma arte. Esta dualidade é constitutiva
da natureza inerentemente ambígua da arte dos sons, que os gregos tanto
associaram ao já referido mito das ameaçadoras das sereias, como ao mito de
Orfeu, o músico domesticador da animalidade selvagem, e dos efeitos da sua violência
em nós.
A mesma ambivalência
constitutiva parece ter também sido compreendida por Kant, que ora refere o
poder que a música tem de suscitar e manter um convívio civilizado entre os
seres humanos, ora lhe reprova a sua falta de urbanidade nas últimas
considerações que dedica a esta arte na Crítica da faculdade de julgar.
No final do §53, e à maneira como fará na Antropologia, Kant compara os
efeitos da música aos efeitos do odor de um lenço perfumado que alguém tira do
bolso para se assoar, e que se espalha em todas as direcções, coagindo os que estão
próximos a suportá-lo. Se este gesto se tornou “fora de moda” (KdU, §53, AA 05:
330) porque os seus efeitos coercivos determinaram uma reprovação social, a
terceira Crítica parece sugerir que a música justifica porventura a
mesma reprovação, ou que os seus efeitos exigem, pelo menos, a imposição de
alguns limites. Kant não chega a propor a proibição da música, como chegou a
pedir à polícia de Königsberg que proibisse os seus vizinhos de cantar (apenas
conseguindo que fossem obrigados a fechar as janelas); mas de algum modo a sua
ideia antecipa, mais uma vez de um modo que não deixa de nos surpreender, a
invasão algo bárbara da música no espaço público nos nossos dias.
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· Professora Auxiliar no Departamento de
Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa. Email: mariajoaobranco@fcsh.unl.pt
[1] As citações da Crítica da faculdade de julgar
seguem a tradução portuguesa de António Marques e Valério Rohden, Kant, I.
(1982), Crítica da faculdade do juízo, introdução de António Marques,
tradução e notas de António Marques e Valério Rohden, Lisboa, Imprensa Nacional
– Casa da Moeda. A tradução das citações da Antropologia segundo um ponto de
vista pragmático são da nossa responsabilidade.
[2] Sobre as teorias de Euler e a sua
influência do pensamento sobre a música na terceira Crítica, cf.
Giordanetti 2001.
[3] Daqui parece também decorrer que há
limites para o formalismo estético de Kant, para o seu “pitagorismo” musical ou
para a redução do musical ao numérico, redução essa que eliminaria a
experiência sensorial em que a escuta musical também consiste. Ou seja, do
ponto de vista de Kant, o prazer na experiência estética da música não pode
provir simplesmente da compreensão da relação matemática entre as notas, da ratio
calculável e reprodutível que fascinou os pitagóricos, para os quais, como é
sabido, a harmonia era a expressão sonora de uma proporção exacta entre os
intervalos musicais, apreendida ou percepcionada não pelos sentidos, mas pelo
espírito do ouvinte. Sobre o contraste entre as perspectivas kantiana e pitagórica
do matemático na música, e sobre as consequências do mesmo contraste, tanto nas
considerações de Kant acerca dos efeitos da música sobre o sentimento vital do ânimo,
quanto na sua rejeição de um certo tom “enaltecido” ou “oracular” da filosofia
recente, cf. Madrid 2012. Agradeço aos revisores a indicação deste estudo.
[4] Esta ideia inspirará decisivamente o
formalismo musical de Eduard Hanslick e a já referida noção de “música
absoluta”. Na obra intitulada Do belo musical, Hanslick defende que a
beleza de uma peça musical é idêntica à sua forma sonora e, portanto, imanente
à própria obra, ou seja, não dependente de conteúdos extra-musicais veiculados
por um texto. A famosa declaração do musicólogo reza assim: “O único e
exclusivo conteúdo e objecto da música são formas sonoras em movimento.”
(Hanslick 2002, p. 42). Sobre a musicologia de Hanslick, cf. Grey 2011. Para
uma refutação das interpretações estritamente formalistas da estética kantiana,
cf. Ginsborg 2011 e Friedlander 2015, 36-39.