Um fantasma da mente?
A
Phantom of the Mind?
Darley Alves Fernandes·
Universidade Federal de Alagoas, Brasil
Abstract
Taking Kant’s
suspicion of the morality
(moral law) as a simple phantom
of the mind as a departing
point, we are intending to investigate the central role of the moral consciousness, taken here both as the possible source of this illusion so much
as the premise through which
one can infer
the normativity of reason and assure
the reality of duty and of our
moral experience. Despite the fact
this suspicion be somehow inevitable and remains in the philosopher’s mind as a kind of threat, it has been contrasted with a factual perspective of morality
– according to which the
experience of morality as an
unconditional obligation is
by itself an evidence of its intrinsic origin in reason.
Keywords
Illusion, moral consciousness,
duty, respect, validity
Resumo
Partindo da iminente
suspeita de Kant de que a moralidade (a lei moral) possa ser um mero fantasma
da mente, nós investigamos a centralidade da consciência moral, considerada
aqui tanto como a possível fonte dessa ilusão quanto à premissa por meio da
qual se pode inferir a normatividade da razão e assegurar a realidade do dever
e de nossa experiência moral. Não obstante o fato de que essa suspeita seja
inevitável e se mantenha no radar do filósofo como um tipo de ameaça, ela foi
tangenciada com uma perspectiva fática da moralidade, segundo a qual a
experiência da moralidade como uma obrigação incondicional é por si só a
evidência da sua origem intrínseca à razão.
Palavras-chave
Ilusão, consciência
moral, dever, respeito, validade
I
A consciência moral é uma
premissa crucial em inúmeros estágios do processo de fundamentação racional da
moralidade empreendido por Kant na GMS.
Em especial, ela se destaca por ser o ponto de partida a partir do qual as
condições mais gerais da moralidade são derivadas analiticamente e por ser a
expressão mais evidente do caráter fático da moralidade – podendo ser
considerada aquilo que nos permite constatar que a lei moral efetivamente nos
obriga tão logo a representamos. O caráter peculiar é que a consciência moral
adquire não só validade subjetiva por se referir aos juízos morais e a
experiência particular do agente, mas também validade objetiva por ser o ponto
de inflexão de uma legislação universal da razão e a vontade finita (o melhor
exemplo dessa consciência como objetivamente válida é a doutrina do fato da
razão na KpV). A condição última da
“consciência da obrigação” (o dever) é uma lei necessária e universal que
depende de uma justificação que parece ser menos provável do que ela mesma, mas
que é imprescindível para assegurar a validade objetiva da nossa experiência
moral.
Pois, nada impede que
nossas crenças e convicções morais acerca da bondade e da retidão das ações
sejam meras ilusões da mente, uma projeção impulsionada por nossos sentimentos
e desejos. Ora, é licito indagar, como faz Kant, se o
dever (Sollen) não é um conceito
“quimérico” e “vazio. A autoridade das reivindicações morais não seria um
resquício da internalização de padrões e normas sociais constituídas ao longo
do tempo? Existe, de fato, uma lei que é um imperativo categórico para nós?
Tais questões são urgentes ao pensamento kantiano não somente por causa de
objeções impostas por seus críticos, mas porque elas vêm à tona sempre que o
direito de se fazer uso do pressuposto último da moralidade está em jogo.
O
racionalismo moderno foi bombardeado pelos empiristas com objeções que
colocavam em xeque a realidade da moralidade por causa de seu fundamento
racional (e puro). Kant não se rende a essas críticas e as responde do seguinte
modo: “não se pode prestar serviço mais precioso àqueles que riem de toda a
moralidade como de uma simples quimera da imaginação (Hirngespint) humana exaltada pela presunção, do que conceder-lhes
que os conceitos de dever precisam ser tirados somente da experiência” (GMS, AA
04: 407). No front do empirismo, Hume
considerou que os princípios morais só podem ser baseados em descrições de
nossos próprios sentimentos, jamais num objeto ou numa realidade externa
independente de nossas respostas a eles. Isto é, o “dever” só poderia ser
derivado de um tipo específico de “é”. Kant supera esse modo de derivação.
Embora se baseie na natureza racional do homem, é a ideia de um mundo
inteligível (a legislação universal da razão) o fundamento e a razão pela qual
uma descrição racional (moral) se torna um dever na GMS[1].
Visto
sob a ótica das ciências que ganharam notoriedade no século dezenove, tais como
a psicanálise, uma moral fundada a priori
na razão soa bastante implausível. Aos olhos de Freud, por exemplo, o
imperativo categórico pode ser facilmente concebido como uma norma de ação
enraizada nas relações sociais, culturais e religiosas[2].
Na literatura, é comum associar o agente moral kantiano ao personagem Josef K de Franz
Kafka (O Processo), personagem que
padece a espera da lei[3].
Kant não ignora o papel dos sentimentos e emoções na vida prática, mas parece
claro que ele não responde a muitas das demandas de cunho psicológico,
simplesmente porque sua filosofia moral não está voltada a essas questões.
Assim, se a hipótese de que uma moral fundada na razão é mera ficção da mente
tem alguma relevância, esse é um diagnóstico que a própria razão terá que
fazer.
É
claro que no âmbito prático da razão não há nada semelhante àquela ilusão
interna e originária descrita como uma “aparência transcendental” da razão.
Aparência que não se deixa dissipar pela simples elucidação da fonte do erro e
nem mesmo pela correção do método de investigação racional. O fardo que pesa
sobre a razão em seu domínio prático também carrega traços de um erro fundado
na natureza da razão, dado a importância da liberdade enquanto ideia para a
moralidade, mas está mais centrado no status da lei moral. Por ser uma lei que
só se realiza no ser puro de razão, já que é vista como a lei de um mundo
(inteligível) onde os seres só obedecem a voz da razão, só nos resta a
representação dessa lei na forma de dever. Aqui, a suspeita é de que esse véu
da lei seja somente um refúgio para todo tipo de charlatanismo moral de
moralistas que reivindicam a autoridade da lei para submeter seus semelhantes a
interesses pessoais e autoritários. Esse tipo de associação se baseia numa
visão voluntarista da lei, segundo a qual a autonomia consiste na liberdade de
se submeter a uma lei da própria vontade, como se houvesse uma decisão de
submissão a lei distinto do ato que a estabelece. Se fosse assim, a ética
kantiana não seria, de fato, mais do que a introjeção de normas instituídas socialmente.
Nessa
mesma linha, Kant elenca outras ameaças à moralidade:
O
determinismo natural (i): a iminente suspeita de que todas as nossas ações
possam ser determinadas pelo mecanismo causal da natureza não é uma querela
infundada. O determinismo é uma ameaça real e tudo aquilo que supomos se realizar por meio da liberdade pode estar submetido à
necessidade causal da natureza. A princípio, essa possibilidade está ancorada
na impossibilidade de determinarmos a causa última de nossas ações[4].
O fato de admitirmos a liberdade de nosso arbítrio (arbitrium liberum) e mesmo a autodeterminação da vontade por meio
de princípios racionais (princípios e normas da razão) não nos permite
assegurar que a razão não seja causalmente determinada em suas causas eficientes
mais elevadas e distantes[5].
Isso significa que mesmo a superação da impressão dos sentidos e a respectiva
autodeterminação da faculdade apetitiva por meio de representações racionais,
representações daquilo que deve acontecer, não é suficiente para nos livrar do
mecanismo causal. É justamente por isso que a questão se estende para além da Dialética transcendental da KrV e se desdobra na 3ª seção da GMS, uma vez que a liberdade da vontade
não pode, aparentemente, ser assumida a despeito de pressupostos morais.
O
egoísmo moral (querido Eu) (ii): é possível que a
moralidade seja reduzida ao princípio do egoísmo, que todas as ações estejam
permeadas por um interesse no objeto da ação e que o altruísmo almejado por
Kant seja impossível do ponto de vista prático. Ou seja, um motivo moral
desinteressado pode constituir somente uma hipótese inexequível. Ao comentar
sobre as ações conforme ao dever, Kant afirma exatamente que: “se examinarmos mais de perto as suas aspirações e
esforços, toparemos por toda a parte o querido Eu que sempre sobressai, e é nele, e não no severo
mandamento do dever, que muitas vezes
exigiria a auto-renúncia, que a sua intenção se apóia” (GMS AA 04:407). Considerando que não
podemos penetrar até os últimos móbiles de nossas ações e determinar se elas
são feitas por dever, não se pode garantir que o “querido Eu”[6]
não esteja na base de toda intenção moral. Contudo, Kant está mais preocupado
com o raciocínio prático do que com explanações de cunho psicológico, até mesmo
porque é impossível determinar a causa última de nossas ações. Trata-se de
derivar os padrões de ações e de racionalidade suscitadas pela reflexão
prática.
Hedonismo
moral (iii): o princípio do prazer poderia ser a finalidade última de nossas
ações, tornando irrisórios os mandamentos da razão que nos manda ignorá-los.
Tal como o egoísmo, Kant assume que o hedonismo é um subterfúgio que se esconde
por trás de intenções aparentemente morais. A filantropia (o amor pela
humanidade) implica não só afeto (pathos), mas prazer e satisfação interna em ajudar o outro.
Por mais que isso seja louvável socialmente, não envolve disposições morais
porque é praticada em conformidade com o dever[7]. Então, a filantropia, assim como a benevolência, são
sentimentos cuja fonte de mobilização interna é o prazer e a auto-satisfação.
Kant está longe de ser um hedonista moral, mas nem por isso ele rejeita todo
tipo de satisfação que anda ligado à moralidade porque compreende que a própria
determinação moral exprime um tipo de satisfação como resultado da concordância
entre as faculdades, razão e sensibilidade. Por impressionante que seja, esse é
o núcleo de coesão entre a sua filosofia moral e o moral sense, principalmente na figura de Hutcheson, porque o
sentimento moral designa justamente uma qualidade estética que descreve a
afecção da mente na determinação moral.
O
receio de que a moralidade seja um espectro da mente parece inevitável, de
algum modo, uma vez que o direito de se fazer uso do pressuposto original da
moralidade carece de uma prova suficientemente válida. A objetividade dos
juízos morais e da consciência do dever estaria comprometida se sua prova cabal
fosse somente um fato putativo da razão[8].
Uma solução usual para atestar a validade objetiva do dever é recorrer à
doutrina do fato da razão, pois lá Kant nos dá dicas dos caminhos que temos que
seguir para entender como a consciência da lei (expressa como consciência da
obrigação) tem valor objetivo. Pois, o que ela nos ensina é que a lei justifica
a si mesma. A lei não é um “dado” da consciência, de modo que ainda podemos
indagar as condições sob as quais se assentam o conhecimento dela como um fato.
A explicação da possibilidade da consciência da lei não difere em si mesma do
modo como se explica nossa consciência de conceitos puros do entendimento, ela
requer que prestemos atenção à necessidade com que a razão nos prescreve. A
consciência da lei como um fato da razão supõe a consciência das condições
constitutivas daquilo que faz do fato um estado da consciência, a saber, a
própria unidade da consciência. É assim que podemos ver a lei como manifestação
da razão e compreender a sua necessidade e universalidade, não se limitando a
“constatá-la” como um “dado” mental. Esse é o elemento crucial que assegura a objetividade da
moralidade, embora o caminho até ele não seja tão linear assim. Nosso desafio,
contudo, é mostrar que a GMS nos dá
fundamentos para assegurar a validade objetiva do dever e de nossa consciência
moral por meio da normatividade da razão prática, o fato de que ela governa a vontade por meio de uma lei que é originariamente inerente
a ela.
Três
estágios são essenciais para entendermos o papel da consciência moral na
evolução do raciocínio kantiano: (a) o entendimento (consciência) moral comum;
(b) o conceito de dever; (c) o respeito pela lei moral. Na segunda parte,
abordaremos as condições mais básicas e fundamentais da moralidade derivadas do
entendimento moral comum, sublinhando que elas subjazem aos juízos morais de
todo homem que faz uso da razão. Na terceira, apresentamos o dever como um
conceito que se baseia numa legislação universal segundo a qual os seres
racionais agem necessariamente em conformidade com a razão, expressando a forma
dessa legislação para seres que nem sempre seguem a razão. O dever não revela
apenas a necessidade prática de uma ação necessária para uma vontade não santa,
mas, sobretudo, a ligação imediata dessa ação com a vontade – ele indica uma
ação que é ligada à vontade a priori.
A consciência da lei mostra que essa ligação é tão necessária quanto a própria
ação, de modo que tomar consciência da necessidade prática da ação é estar
moralmente comprometido com ela; o respeito aparece como um desdobramento da
análise do dever, sendo visto quase como uma contraprova subjetiva da validade
do dever moral porque descreve a consciência da autoridade da lei enquanto um
comando genuíno da razão. Na quarta, analisamos a linha mestra do argumento da
dedução da lei moral na 3ª seção, enfatizando que o caráter fático da
moralidade é admitido em diversos momentos e que isso seria suficiente para
admitirmos que a lei moral justifica a si mesma por meio de sua força
mandatória e capacidade de vinculação com a vontade. Na quinta, apresentamos
uma conclusão da questão e dos principais pontos discutidos.
II
Partindo
da análise do juízo moral comum, Kant busca determinar os pressupostos mais
fundamentais da moralidade para mostrar que eles estão presentes na experiência
moral cotidiana. Então, antes de qualquer formulação ou esboço do princípio
moral, é preciso identificar as condições formais de tal princípio para depois
reivindicar a legitimidade deles enquanto necessários. Kant não parte da
abstração formal dos princípios morais e sim da experiência moral concreta, o
fato de que os seres racionais finitos julgam moralmente, isto é, emitem juízos
de valores acerca da bondade e da retidão de suas próprias ações. Aqui se
encontra a premissa da consciência moral enquanto pressuposto essencial de todo
julgamento moral, pois, mesmo o homem mais vulgar age (adota sua máxima) a luz de
“exigências” morais. O trunfo do entendimento comum é que ele mantém o
princípio[9] moral
sempre diante dos olhos, tomando-o como um padrão de medida de seus juízos, uma
bússola (Kompasse in der Hand) que
lhe permite julgar melhor:
“o que cada homem deve fazer e, por conseguinte, saber, pertence
mesmo ao homem mais vulgar” (GMS AA 04:404). O saber prático consiste mais “em
fazer ou não fazer do que em saber”. Portanto, supõe-se que, desde que esteja
habituado a fazer uso da razão, todo homem, mesmo o mais comum, está apto a
reconhecer com certa lucidez a moralidade (o certo e o errado) enquanto
exigência da razão.
Vejamos
o que diz Kant no prefácio:
Todos precisam
confessar que uma lei que tenha de valer moralmente, isto é como fundamento de
uma obrigação, tem de ter em si uma necessidade absoluta; que o mandamento: não
deves mentir, não é válido somente para os homens, mas outros seres racionais
precisam se preocupar com ele, e assim todas as restantes leis propriamente
morais; que, por conseguinte, o princípio da obrigação não se há de buscar aqui
(GMS AA
04:389).
O
entendimento vulgar se orienta pela “ideia comum” do dever e distingue
suficientemente bem as ações “conforme” o dever e as ações “contrárias” ao
dever. Considerando que as ações morais são experienciadas como obrigações, um
constrangimento da reta razão acerca do que é bom ou correto do ponto de vista
moral, Kant indaga pelos fundamentos de uma obrigação propriamente moral.
Nota-se que somente uma lei cumpre as condições formais derivadas do juízo
comum. Só uma lei pode ser o fundamento de um dever categórico (não deves
mentir!) porque só ela satisfaz a necessidade e a universalidade (não é válida
somente para homens) implícita na ideia do dever. Ao longo da 2ª seção, Kant
continua a enfatizar essas condições formais enquanto pressupostos que precisam
ser satisfeitos para que asseguremos a objetividade da moralidade. Três
passagens indicam os pressupostos fundamentais que devem ser atendidos para que
a ideia comum de dever não seja mera fantasia da mente, a primeira delas, vale
lembrar, está contida na 1ª seção.
Primeiro,
ele diz:
Aqui, é a simples conformidade
à lei em geral o que serve de princípio à vontade, e também o que tem de lhe
servir de princípio, para que o dever
não seja por toda parte uma vã ilusão e um conceito quimérico (GMS, AA 04: 402).
Noutro lugar ele adiciona que:
Portanto,
conseguimos mostrar, pelo menos, que, se o dever é um conceito que deve ter um significado e conter uma verdadeira legislação para as nossas ações, esta legislação só pode se
exprimir em imperativos categóricos, mas de forma alguma em imperativos
hipotéticos (GMS, AA 04: 435).
E no último parágrafo da segunda seção:
Quem, pois, considera a moralidade como alguma coisa real e não como uma
ideia quimérica sem verdade, tem de conceder simultaneamente o princípio dela por nós
enunciado [...]
Ora, para estabelecer que a moralidade não é uma quimera vã, coisa que se deduz
logo que o imperativo categórico e com ele a autonomia da
vontade sejam verdadeiros e absolutamente necessários como princípio a priori, é preciso admitir
um possível
uso sintético da razão pura prática (GMS, AA 04: 446).
A
consciência da lei moral nos remete à legislação universal da razão (legislação
segunda a qual os seres racionais necessariamente se conformam com a razão).
Paralelamente, essa consciência da lei é um constrangimento da razão que é
tomada como um “dever categórico” porque nosso conhecimento da necessidade
prática da ação é fonte de uma intenção moral. Portanto, é a consciência da lei
moral que dá validade ao dever, uma vez que o dever é a forma da “legislação
universal da razão” para seres que nem sempre se conformam a ela. Como se
trata, entretanto, da relação sintética entre a vontade e a legislação
universal da razão (lei moral) “mediada” pela consciência da lei, tudo ainda
depende do direito de fazermos uso de tal lei. Em todo caso, a máxima
(princípio subjetivo do querer) tem a forma que lhe serve de princípio (o
imperativo categórico), possibilitando que a vontade finita esteja em
conformidade com a lei. Despojada de qualquer princípio material, o único
fundamento que resta para a vontade é a legislação universal da razão: “devo
proceder sempre de maneira que eu possa
querer também que a minha máxima se torne uma lei universal” (GMS, AA
04:402). A formulação da lei nos remete ao imperativo categórico, único
princípio cuja forma se equipara à lei, sua necessidade e universalidade. A
possibilidade do imperativo categórico (imperativo do dever) é a prova dessa
conversão realizada pelo dever, porque sem a referência à legislação universal
da razão a aplicabilidade de um imperativo incondicional não seria sequer
possível.
O
princípio que subjaz as crenças e convicções morais é a autonomia, ou seja, a
vontade de todo ser racional como legisladora universal. É suficiente mencionar
aqui o princípio na fórmula da autonomia, uma vez que Kant deu cinco
formulações distintas da lei moral que não são reduzíveis umas as outras –
apesar dele reiterar que se trata de uma única lei. Esse
é o princípio sob o qual nós agiríamos se nossa vontade fosse governada somente
pela razão, sem impulsos e paixões. De modo análogo, é o princípio sob o qual
nós “devemos” agir enquanto seres que são tentados a fazer o contrário do que
dita a razão. Razão pela qual H. J. Paton[10]
afirma que a autonomia expressa tão somente a essência da lei moral e não
precisa tomar a forma de um imperativo categórico – apesar de que toda
formulação da lei por seres não perfeitos assuma a forma categórica. Para ele,
o princípio é justificado como “lei moral” e só depois como “imperativo
categórico”, sem demandar uma prova independente. Na última citação em recuo a
autonomia da vontade é posta como uma consequência do imperativo categórico.
Por hora é suficiente, voltaremos a esse tema na última parte deste artigo.
III
A
ideia de um “dever” moral tem como base fundamental o pressuposto de que a
razão em seu uso prático é capaz de determinar a
vontade por motivos a priori, isto é,
por meio de princípios puramente formais, a despeito de quaisquer princípios
matérias da vontade. Logo no prefácio da GMS,
Kant faz questão de pontuar que o homem é capaz de conceber a ideia de uma
razão prática pura, embora encontre dificuldades de tornar efetiva a ação por
princípios puros da razão. Na 2ª seção, entretanto, o filósofo elucida de modo
mais enfático o respectivo pressuposto do dever, enfatizando que a única coisa
que salva a ideia do dever do fracasso é nossa convicção de que a experiência
empírica e os elementos factuais são insuficientes para o rechaçarmos,
justamente porque ele supõe que “a razão por si mesma e independentemente de
todos os fenômenos ordena o que deve acontecer” (GMS, AA 04:408). O fato de que
a experiência não dá nenhum testemunho de ações provindas de uma fonte tão pura
não constitui condição suficiente para solapar a possibilidade das ações por
dever: “porque este dever, como dever em geral, anteriormente a toda
experiência, reside na ideia de uma razão que determina a
vontade por motivos a priori” (GMS,
AA 04:408). Então, o dever corresponde a uma lei da razão, a legislação de
seres racionais, não a ordem dos fenômenos e dos eventos naturais.
Iniciemos com algumas definições
formais do dever antes de analisarmos sua estrutura. Kant entende por dever a
“necessidade prático-incondicionada da ação” (GMS, AA 04:425), ou, a
“necessidade objetiva de uma ação por obrigação (GMS, AA 04:439). Em primeiro
lugar, o dever refere-se ao fundamento prático objetivo de uma ação moralmente
necessária e, em segundo lugar, liga essa ação moralmente necessária a um
agente particular. Nota-se que o dever tem função “prescritiva”, uma vez que
ele nos diz que ação (ou tipo de ação) devemos fazer. Essa característica
denota que ele se aplica necessariamente a uma vontade não-santa, uma vontade
que nem sempre faz aquilo que é racional. Contrariamente, uma vontade santa não
conhece nenhum dever (apesar de estar submetida a leis objetivas da razão)
porque a lei é para ela somente “descritiva” – uma vez que o querer já está em acordo com a lei[11].
O fundamento do dever é, portanto, a lei da razão, ou, a lei moral, mas para
determinarmos essa relação mais precisamente nós precisamos analisar o próprio
conceito de dever.
Na 1ª
seção, Kant define o dever a partir de três proposições:
(i)
A segunda
proposição é: – Uma ação praticada por dever tem seu valor moral não no
propósito que com ela se quer atingir, mas na máxima que a determina (GMS, AA
04:400).
(ii)
A terceira
proposição, consequência das duas anteriores, formularíamos assim: dever é a
necessidade de uma ação por respeito à lei (GMS, AA 04:400).
O
conteúdo da primeira proposição precisa ser abstraído indiretamente da
terceira, que é considerada como uma conclusão das duas “duas” primeiras. Vê-se
que, enquanto a segunda proposição foca no critério axiológico da ação por
dever, a terceira coloca em voga a ligação entre o fundamento objetivo
(necessidade) e um fundamento subjetivo (respeito à lei) – ambos constituintes
do conceito de dever.
Partindo do pressuposto que o dever
expressa a “necessidade prático-objetiva” (ou a necessidade objetiva de uma
ação por obrigação) e se baseia na possibilidade da determinação da vontade
pela razão por motivos a priori, o
critério de valor da ação por dever não poderia não ser formal. Razão pela qual
se fala ali do “princípio do querer”[12],
aquilo que orienta a volição, ou, a razão pela qual o agente “quer” agir
moralmente. O que a segunda proposição nos diz é exatamente que o valor moral
da ação depende unicamente da máxima – ignorando todos os princípios materiais
da ação, o propósito, a finalidade etc. Trata-se, portanto, de saber o que
serve de princípio para a máxima, se um desejo, uma inclinação ou um princípio
da razão.
Notamos
que o querer de uma vontade santa coincide por si só com a lei, o que explica porque
a submissão a ela não é um dever – o querer subjetivo da vontade é idêntico ao
conteúdo da lei. No caso da vontade humana há uma distorção entre o querer
inerente da vontade e o conteúdo da lei (o que ela descreve), a consciência da
lei (consciência do dever) converte o conteúdo da lei numa prescrição. O
raciocínio prático é semelhante nos dois casos, com a diferença que a natureza
ontológica da vontade humana tem uma relação diferente com a lei, pelo menos do
ponto de vista modal. Na 3ª seção, Kant chega a afirmar que “o dever moral é,
pois, um próprio querer necessário” (GMS, AA 04:455) – admitindo a legitimidade
do uso de uma lei imutável como lei da vontade convertida em dever para seres
finitos. É preciso mostrar como aquilo que a lei prescreve já subjaz
(sinteticamente) ao próprio princípio subjetivo do querer (máxima). Pois, a
validade do dever supõe uma intencionalidade ligada àquilo que é fundamento do
próprio dever, a lei moral. Ninguém pode admitir que tem um dever, isto é, a
obrigação de agir de acordo com o que demanda a lei, e afirmar que não “quer”
agir de modo correspondente. Ter um dever é estar comprometido com a ação
prescrita pela lei e “querer” agir de modo correspondente, ainda que não venha
a agir como tal.
Por
sua vez, a terceira proposição une o aspecto objetivo da lei (a necessidade) e
o aspecto subjetivo, o respeito pela lei, conceito que é introduzido justamente
nessa formulação. É curioso que um fundamento subjetivo seja elemento
constituinte do conceito de dever sem comprometer sua necessidade e
universalidade. Aqui também se trata de uma relação formal da lei porque o
respeito é a consciência normativa da lei, a consciência que um sujeito tem da
autoridade da lei como imediatamente válida. Portanto, o respeito descreve a consciência
que a vontade tem quando submetida à autoridade da lei. É o reconhecimento
dessa autoridade, visto como um endosso ou aprovação da própria lei, que é
descrito como respeito. Ele é uma atitude que é direcionada apenas à lei.
Noutro ponto, no final da 1ª seção, há uma ênfase maior no respeito enquanto
condição subjetiva do dever: “a necessidade da minha ação por puro respeito
pela lei prática é o que constitui o dever” (GMS, AA 04:403). Ora, não há
obediência à lei moral sem respeito, isto é, sem admitir como válida a
autoridade que ela reivindica. Não se trata, portanto, de uma condição material
ou qualquer outra que comprometa a necessidade e a universalidade do
dever.
Considerando,
então, que a terceira proposição traz a tona tanto o
caráter objetivo quanto o subjetivo da determinação moral, e a segunda lida com
o critério objetivo de atribuição de valor à ação, é possível derivar a
primeira proposição dessas duas? É a única opção que temos. Entretanto, não há
muito consenso entre os intérpretes a respeito da formulação correta ou mais
adequada dessa proposição[13].
Levando em conta o conteúdo das duas proposições apresentadas e o fato de que a
terceira é uma consequência das duas anteriores, a primeira teria que lidar com
o caráter subjetivo do dever. Dieter Schönecker e Allen Wood compartilham dessa
perspectiva e formulam a seguinte proposição: “uma ação por dever é uma ação
por respeito à lei” (Schönecker/Wood, 2014, p. 61). Essa leitura é fiel aos
pressupostos do texto e reforça a necessidade do respeito enquanto fundamento
subjetivo de determinação enquanto constituinte do conceito de dever.
A
ação por dever tem, portanto, dois princípios que determinam a
vontade:
(i)
A lei objetivamente e; (GMS, AA 04:400).
(ii) Subjetivamente,
o puro respeito por esta lei prática (GMS, AA 04:400).
Enquanto
o dever é a representação objetiva da lei moral, encarnada como constrangimento
racional sobre a vontade sensível, a consciência da subordinação da vontade à
lei recebe o nome de respeito: “aquilo que eu reconheço imediatamente como lei
para mim, eu o reconheço com um sentimento de respeito, que não significa senão
a consciência da subordinação da
minha vontade a uma lei” (GMS, AA 04:402). Essa consciência de subordinação da
vontade à lei já indica que a representação dela é inescapável[14],
tão logo a representamos ficamos a par de suas reivindicações. A KpV dá mais ênfase a essa facticidade da
lei na consciência do dever, pois lá é assumido que a lei determina a vontade e que o respeito (entendido também como sentimento
moral) é uma prova descritiva dessa determinação. Além do mais, endossamos a
validade moral daquilo que nos é imposto como obrigação porque aprovamos seus
fundamentos e suas reivindicações sobre nós. Então, o respeito é a consciência
da autoridade normativa da lei, é uma atitude que expressa o valor axiológico
daquilo que fundamenta a moralidade – é um tributo que não se pode deixar de
prestar a lei moral.
A
análise das proposições do dever mostra que a relação entre a “lei” e “o
respeito” é analítica. Afinal, se considerarmos que “a necessidade da minha
ação por puro respeito à lei é o que constitui o dever”, nós veremos que o
respeito é condição do cumprimento da lei (ou de uma obrigação moral). Enquanto
fundamento objetivo, a lei moral supõe um fundamento subjetivo, o respeito. O
que significa que ela demanda não somente um comportamento, mas uma atitude
específica, o reconhecimento de sua autoridade[15]
por parte daqueles a quem ela se vincula. Por outro lado, esse sentimento só
erige no sujeito mediante o reconhecimento da legitimidade da lei enquanto
princípio moral supremo, o que explica a aceitação imediata de suas
reivindicações por quem é obrigado. O que mostra que o respeito é, além de
tudo, “auto-certificador” da validade da lei, pois só podemos admitir um dever
mediante o respeito pela lei. Analiticamente, ter um dever (estar submetido a
uma obrigação moral) e ter respeito pela lei é a mesma coisa, pois, quem tem um
dever, a obrigação de agir, já reconheceu a necessidade prática da razão.
Considerando que ambos têm o mesmo fundamento, a aceitação da validade do dever
implica, necessariamente, o respeito pela lei. Então, a única coisa que depende
de uma justificação racional da legitimidade é a lei moral, o que nos força a
buscar a sua origem na própria razão pura.
A
doutrina do respeito ainda reflete a aproximação de Kant com a doutrina do moral sense, Hutcheson em especial.
Mesmo considerando que esse conceito está em harmonia com a filosofia crítica e
que não é tomado como padrão de avaliação das ações, ele mostra que para Kant
há algo de insuperável no moral sense.
Na medida em que descreve o modo como a mente é afetada pela representação da
lei, expressando a sua autoridade e validade subjetiva, o respeito mostra que a
moralidade depende de uma disposição que é irredutível ao sujeito[16]. É certo que Kant buscou fundamentar a consciência
moral num senso moralis
até por volta de 1769, mas que a partir do novo significado de razão empregado
a partir de 1770 ele tentou encontrar a origem da moralidade na própria razão
pura. Em todo caso, o respeito é a moralidade considerada subjetivamente porque
supõe que o fundamento objetivo seja subjetivamente válido – ou seja, ele (o
fundamento objetivo) funciona como motivo.
Essa
facticidade implícita na análise do respeito enquanto consciência de
subordinação da vontade à lei faz com que seja possível estabelecermos relações
entre o “respeito” e a doutrina do “fato da razão”. Por um lado, o respeito e o
fato são considerados como descrições do processo de determinação racional da
vontade pela lei[17]. Contudo, o respeito é concebido como a expressão
subjetiva da validade objetiva da lei moral. O que significa que na análise do
respeito já supomos a validade objetiva da lei – já que o respeito é um efeito da lei. Henry Allison afirma isso de modo direto: “esta
análise do respeito pressupõe a doutrina do fato da razão, uma vez que ela
assume a validade da lei moral e investiga os efeitos da consciência desta lei
sobre o agente racional sensivelmente afetado tal como nós mesmos” (ALLISON,
1990, p. 237)[18].
Caso estivesse em condições de considerar que nada pode justificar a lei moral
senão a sua própria normatividade que se impõe sobre a vontade como sinal de
que a razão pura é prática, Kant não precisaria ter dado tantas voltas tentando
deduzir um princípio último da lei.
IV
Se levarmos em conta o
objetivo da GMS, a saber, o de buscar
(Aufsuchung) e estabelecer (Festsetzung) o princípio supremo da
moralidade, veremos que esse último estágio ainda permanece indefinido. Há, assim,
dois estágios fundamentais do argumento kantiano. O primeiro é a investigação
analítica que deriva as condições formais do princípio moral a partir do
entendimento moral comum. Já sabemos que esse princípio precisa atender a
alguns pressupostos para que a experiência moral não seja uma vã ilusão.
Podemos destacar quatro características dele: (i) ser uma lei – porque é a
universalidade que serve de norma para a máxima (norma subjetiva); (ii) ser
formal – uma vez que a universalidade da lei dispensa todo e qualquer conteúdo
material; (iii) ser a condição atual e efetiva da vontade na medida em que a
máxima adquire a forma da lei; (iv) ser um imperativo categórico – isto é,
precisa ser a lei segundo a qual um ser racional necessariamente agiria se não
fosse impelido por móbiles sensíveis. Considerando que estamos lidando com um
princípio sintético a priori, o
segundo estágio consiste em provar a origem desse princípio na natureza da
razão, de modo que negá-lo seria uma contradição para o agente racional (tal como
a negação das categorias é a negação da própria experiência, pois elas
representam a sua possibilidade, unidade e inteligibilidade).
Enquanto
no primeiro estágio se trata apenas de uma “derivação”, no segundo, por sua
vez, está em jogo uma “dedução transcendental”. Às vezes, Kant fala da lei
moral como se ela tivesse sido transcendentalmente deduzida, quando na verdade
foi apenas metafisicamente deduzida, isto é, formulada. Razão pela qual Beck
assemelha a busca e a exposição do princípio da moralidade à dedução
metafísica, que na KrV se destinar a
afirmar o que são as categorias, enquanto que o
argumento que provaria a validade da lei como condição última da experiência
moral é propriamente uma dedução transcendental[19].
Entretanto, Kant faz questão de sublinhar que não há uma passagem linear da
derivação das condições gerais da moralidade para a prova da validade objetiva
do princípio abstraído. Ao contrário do que ocorre na dedução das categorias,
onde se busca estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento de
objetos que são dados ao entendimento por meio da sensibilidade, a lei moral
tem que ser provada como a própria condição de possibilidade da experiência
moral.
De fato, o dever faz
referência a uma legislação universal da razão (segundo a qual devemos agir
conforme seres racionais agiriam) que só pode ser expressa a nós por
imperativos categóricos. Não se segue disso, entretanto, que essa legislação
universal e esse imperativo sejam válidos, ou mesmo possíveis, sem a devida
justificação da lei moral.
Retomemos
a passagem onde Kant trata desse ponto:
Conseguimos
mostrar, portanto, pelo menos que, se o dever é um conceito que deve conter um
significado e conter uma verdadeira legislação para as nossas ações, esta
legislação só pode se exprimir em imperativos categóricos, mas de modo algum em
imperativos hipotéticos [...] mas ainda não chegamos a provar a priori que esse imperativo existe
realmente, que há uma lei prática que ordena absolutamente por si e
independentemente de todo móbil, e que a obediência a esta lei é o dever (GMS,
AA 04:435)
Está implícito no
conceito de dever a conexão sintética entre a “vontade” e uma “legislação
universal da razão”. O imperativo categórico, às vezes chamado de imperativo do
dever, é a norma mais adequada à forma dessa legislação. Esse imperativo é
afirmado como sendo uma proposição sintética a priori capaz de ligar um “ato a priori
à vontade” (GMS, AA 04:421) – capaz de ligar a vontade à legislação universal
da razão. É claro que enquanto cânone do julgamento moral, o imperativo
categórico é a única norma moral que não deriva o “querer” da ação moral de um
“querer” já dado. Não conseguimos pensar a validade objetiva do princípio moral
independentemente do significado que ele assume para nós enquanto seres
racionais finitos. A lei em si mesma não distingue se a vontade se conforma a
ela por necessidade interna ou não, o que faz com que ela assuma esse caráter
prescritivo é a “consciência”. Veremos que para Kant o dever é um querer de um
agente imperfeito que é consciente de si mesmo como ser racional, porque nele o
agente está consciente da lei enquanto fundamento moral – e esse conhecimento
prático é intencional. Saber o que se deve fazer (o que faria se fosse somente
racional) se equivale a querer agir por dever sem necessariamente agir de tal
modo. Portanto, o que demanda uma
dedução na 3ª seção da GMS é a lei
moral enquanto lei universal da razão e a legislação que lhe é inerente. Se o
imperativo categórico é assegurado indiretamente sem exigir uma dedução
independente é uma questão que fica pendente aqui[20].
Agora,
se trata de afirmar a conexão sintética contida no conceito do dever entre a
vontade e a legislação universal da razão, pois, essa legislação é a condição
da universalidade da máxima e não pode ser derivada analiticamente da vontade[21].
É a consciência do dever que me a leva reconhecer a lei como fundamento
prático-objetivo da ação a qual estou obrigado. Porém, se estou inapto a
assumir a realidade do dever moral, tampouco poderia afirmar a validade daquilo
que constitui sua condição de possibilidade. A lei, enquanto princípio supremo
da moralidade, não pode ser deduzida logicamente de nenhum princípio superior,
simplesmente porque não há tal princípio. Contudo, Kant indica que é preciso
fornecer um fundamento (x) que dê suporte a conexão sintética entre sujeito e
predicado (vontade e legislação universal (ou vontade racional)) e comprove que
aquilo que reivindicamos como princípio supremo é, de fato, um primeiro
princípio.
Como
se sabe, uma dedução não se propõe a ampliar nem a trazer um conhecimento novo
à tona, senão a justificar um conhecimento que se reivindica, um conhecimento
problemático cuja legitimidade pode ser contestada. As raízes jurídicas da
dedução transcendental tornaram se conhecidas como eixo central dessa
investigação por meio do difundido artigo de Dieter Henrich[22].
Uma dedução lida com a “quaestio juris”,
ela é uma prova que torna legítima uma reivindicação, seja de coisas, de posse
ou de direito. Ela confere legalidade àquilo que é reivindicado. No caso de uma
dedução transcendental não se trata de posses e nem de coisas, mas de um
conhecimento (prático). Por isso, esse alegado conhecimento só pode ser
justificado explanando a sua origem na própria razão. Afirmar um conhecimento é
estar justificado em afirmar a posse de tal conhecimento, o que requer deduzir
a origem dele como condição de sua possibilidade.
A queixa a respeito da
falta de uma linha argumentativa concisa é lugar comum entre os interpretes e estudiosos, uma vez que o filósofo muda de
estratégia no decorrer do texto e deixa inúmeras pontas soltas. Não é difícil,
contudo, perceber o papel articulador que é desempenhado pelo conceito de
liberdade desde o primeiro parágrafo da 3ª seção. As tensões que são geradas ali
resultam da tentativa de passar de uma concepção de liberdade fundamental para
admitirmos a “espontaneidade causal” da ação para uma concepção de liberdade
que é por si só “livre e eficiente” – passar da ideia de um “sujeito
espontâneo” (que se levanta da cadeira) para a ideia de um “agente moral” (cuja
liberdade é a propriedade causal da vontade). É certo que a liberdade
transcendental torna concebível a ideia de um agente espontâneo na medida em
que por meio dela concebemos a possibilidade lógica de sermos independentes do
mecanismo da natureza, mas ela é insuficiente para indicar qual a “propriedade
causal” (a causa eficiente) da vontade. No diagnóstico de Kant, a razão
especulativa só pôde demonstrar a possibilidade da causalidade pela liberdade e
a sua não contrariedade com a causalidade natural. A razão prática precisa,
supostamente, estabelecer a lei da liberdade enquanto causalidade da vontade
para então passar da liberdade (admitida enquanto pressuposto necessário da
ideia de ser racional) para a autonomia e desta para a lei moral.
A
razão pela qual não é suficiente apelar à espontaneidade da faculdade apetitiva
(Begehrungsvermögen) para pensarmos o
agente moral é que agora estamos lidando especificamente com a vontade (Wille), ao passo que na Dialética transcendental da
KrV bastava admitir a
espontaneidade e a independência do arbítrio (Willkür) (escolha) face às determinações sensíveis. Enquanto o
arbítrio está limitado a arbitrar sobre aquilo que está posto, sejam princípios
da razão ou móbiles sensíveis, a vontade é concebida como a causalidade (dos
seres vivos) eficiente por meio da liberdade. Na medida em que é concebida como
uma faculdade de agir, isto é, a capacidade de produzir ações, a vontade tem a
“liberdade” como “propriedade de sua causalidade” – tal como a “necessidade
natural” (a heteronomia das causas eficientes) é a “propriedade causal” das
leis da natureza. Partindo da ideia de que a vontade só é causalmente eficiente
porque a liberdade é a propriedade de sua causalidade, o filósofo tira algumas
conclusões que nortearão seu argumento.
(i)
A liberdade da vontade é autonomia. Ainda
que não tenhamos determinado qual é a lei da liberdade na medida em que ela é
propriedade da vontade, nós temos que admitir que esta não pode ser uma lei da natureza
e nem sequer uma lei estranha à vontade, mas sim uma lei “imanente”. Essa
imanência supõe que a vontade seja a própria fonte da lei para que a “vontade
seja uma lei para si mesma”. O que só é possível mediante a identificação entre
“vontade” e “razão prática” – e isso demandaria um argumento adicional.
(ii)
Vontade livre e vontade submetida a leis
morais são uma e a mesma coisa. É certo que não concebemos a
vontade senão a partir do pressuposto de que a liberdade é a propriedade de sua
causalidade, uma vez que ela é o fator eficiente da vontade enquanto um tipo de
causalidade, mas está longe de ser óbvio que isso seja o mesmo que estar sob
leis morais. Essa equivalência faz com que a “lei moral” seja a lei da
liberdade tomada como propriedade causal da vontade, mas ainda não estamos em
condições de compreender a natureza “imutável” dessa lei.
(iii)
A moralidade (e o seu princípio) segue
analiticamente da liberdade da vontade. Considerando que uma “vontade livre” e
uma “vontade sob leis morais” são idênticas, nós podemos assumir (como é
suposto em (i e ii)) que a lei moral é a lei da liberdade. O que se afirma aqui
é que o princípio da autonomia já subjaz a concepção de “vontade livre”. Então,
a moralidade e seu princípio seriam derivados analiticamente da vontade livre,
apesar de Kant sublinhar que o princípio em si mesmo é sintético.
Aqui, dois pontos são
dignos de destaque. Primeiro (a), a concepção de vontade que está em jogo não
só difere daquela de arbítrio, bem como está em estreita conexão com a concepção
de uma “vontade pura” (razão prática). Pois, ela não é definida só
negativamente como independente de causas empíricas, mas como uma “capacidade”
de determinar a si mesma por meio da liberdade. Ocorre que ela também é
identificada com a própria razão prática e atribuída a todos os seres racionais
como condição de seu agir. Isso faz com que se passe de uma noção de ser
racional em geral para a ideia de um agente dotado de vontade e razão prática.
Segundo (b), a concepção de liberdade vista enquanto propriedade da causalidade
da vontade não é compreensível sem a referência à lei moral. Admitindo a
liberdade, a consequência, diz Kant, é a “consciência de uma lei de ação”
segunda a qual a máxima tem que valer objetivamente, isto é universalmente. Por
conta disso, a moralidade só poderá ser derivada de uma “propriedade da
liberdade”.
Nessa linha, o caminho
seria provar a realidade da liberdade para assegurarmos a validade da
inferência à lei moral, considerando a reciprocidade entre vontade livre e
vontade sob leis morais. Na condição de agentes livres nós estaríamos
autorizados a tomar como válidas todas as leis que estão ligadas a liberdade. O
problema dessa perspectiva é que vislumbramos nela a possibilidade de uma prova
da liberdade independentemente da lei moral e, como vimos, a liberdade
(propriedade da causalidade da vontade) não é inteligível sem sua referência à
lei moral. A consciência de nós mesmos enquanto agentes livres e causalmente
eficientes nos conduz a “consciência de uma lei de ação”, a lei moral. O que se
busca afirmar não é só que não podemos considerar a nós mesmos como agentes
racionais sem atribuirmos liberdade a nossa vontade, mas que a afirmação de
nossa liberdade nos leva à consciência de submissão à lei moral. Como fica
evidente nos dois pontos discutidos, o argumento não pode desenrolar a não ser
em círculos.
No entanto, o filósofo
recua dessa estratégia de provar a realidade da liberdade para então deduzir a
validade da lei moral por causa da mencionada relação circular. O círculo parece
ser um prenúncio dos limites do procedimento analítico, uma vez que, sem ele,
não poderíamos inferir a submissão à lei moral (ou mesmo a consciência de uma
lei de ação) da afirmação de nossa liberdade. Por outro lado, se ficássemos
presos nesse círculo entre liberdade e lei moral, permaneceríamos impedidos de
responder duas questões: (i) por que nos interessa a universalidade da máxima como lei e
a moralidade?[23];
(ii) por qual razão a lei moral nos obriga?[24].
A persistência na estratégia da dedução tira o foco da normatividade da razão
prática que se revelará o grande trunfo da GMS,
que inclusive se manterá como premissa no argumento do fato da razão na KpV.
Por outro lado, se a liberdade não serve de ponto de partida para a dedução
da lei moral porque ela não tem validade independente, essas questões não podem
ser respondidas.
Uma das razões pelas
quais isso se mostra um passo em falso é que Kant passa da espontaneidade
epistêmica da razão para a espontaneidade prática, tomando como equivalente o
“ser racional” e o “agente moral”. No primeiro caso se trata unicamente do
pressuposto de que a razão atribui liberdade a si mesma em virtude do fato que
é espontânea e autora de seus próprios juízos e inferências, uma vez que seria
um absurdo se ela fosse influenciada nessas atividades. No segundo caso,
entretanto, está em jogo não só a liberdade de julgar da razão concebida
negativamente como independência das causas naturais, mas, um conceito
(positivo) de liberdade cuja própria possibilidade aponta para um mundo
distinto do natural – o terceiro termo que é anunciado desde a primeira
subseção. A consciência da espontaneidade da razão torna factível a distinção
entre os dois mundos, sendo que o mundo inteligível representa um arquétipo a priori que media a relação entre a vontade e a legislação universal. É
essa espontaneidade, de acordo com Kant, que permite o ser racional reivindicar
sua filiação ao mundo inteligível. Na condição de agentes racionais dotados de
vontade, estaríamos sujeitos a todas as leis do mundo inteligível – e
autorizados a fazer uso delas. Visto como um sistema supra-sensível
sob a autonomia da razão prática, o mundo inteligível é considerado uma
premissa não moral que explica nossa submissão à lei moral por meio da
liberdade (positiva) sem incorrer naquela relação circular.
A rigor, com a distinção
entre mundo inteligível e mundo sensível e a adoção daquilo que se chama de
“ponto de vista prático”, o que se faz é somente dar um passo a trás para dar significado à noção de vontade pura definida
anteriormente. Pode-se conceber o mundo inteligível como uma ordem moldada pela
razão prática a partir da ideia da liberdade, mas Kant afirma que nessa ordem
as leis da liberdade constituem a natureza do agente – o seu “verdadeiro eu” (eigentlich selbst) e sua vontade. Assim
sendo, a “vontade pura” (a sua causalidade como causa eficiente no mundo
inteligível) contém o fundamento da vontade sensivelmente afetada. A
consciência de mim mesmo como ser inteligente livremente eficiente me leva a
consciência de uma legislação distinta da natural e me tornaria membro do mundo
inteligível, reconhecendo a autonomia da vontade e a validade de suas leis como
imperativos para mim. Contudo, a justificação de nossa filiação no mundo
inteligível assenta unicamente na nossa posse de razão e na consciência da
espontaneidade da mesma, o que nos levaria, no máximo,
ao mundo do entendimento.
O argumento não evolui
nos moldes da estratégia apresentada, de modo que uma reorganização
metodológica seria fundamental para que pudéssemos obter êxito no propósito de
justificar a validade objetiva da lei moral como condição da nossa experiência
moral e da validade do dever (nossas obrigações morais). Em linhas gerais,
compreende-se que esse é o movimento levado adiante por Kant na passagem da 3ª
seção da GMS para a Analítica da KpV. De fato, essa reorganização é necessária, principalmente no
que diz respeito à ordem das razões entre lei moral e liberdade, mas a prova da
autenticidade da lei enquanto lei originária da razão não depende de nada além
da própria normatividade da razão reivindicada ainda na GMS.
Vale lembrar as duas
questões elencadas anteriormente, a saber: (i) por que nos interessa a
universalidade da
máxima como lei e a moralidade? (ii) por qual razão a lei moral
nos obriga? A resposta a elas
perpassa pelo conceito a priori
da normatividade que governa nossas ações, pois é dela que surge nosso
interesse pela lei enquanto condição última da universalidade da máxima. O que
se presumi disso é que essa normatividade não pode ser explicada recorrendo a
um princípio último porque seria o mesmo que submeter a norma da razão a uma
“condição”, ao passo que o imperativo moral é incondicionado. Contrariamente,
na medida em que é uma exigência sui
generis da razão, a lei moral só pode ser “constatada” a partir de
sua capacidade de se vincular à consciência do agente. Razão pela qual a
realidade da lei enquanto fundamento do dever não pode ser colocada em dúvida,
uma vez que nossa consciência dela já certifica a sua validade imediata enquanto
fundamento da obrigação moral. Isto é, constatamos a sua validade e derivamos
nosso interesse (moral) dela enquanto lei da razão. É o que nos apresenta Kant
ao explicar por que nos interessa a universalidade da máxima como lei.
Apenas uma coisa é certa: — e é que não é porque tenha interesse que tem validade para nós (pois isto seria heteronomia e dependência da razão prática em relação a um sentimento que lhe estaria na base, e
neste caso nunca ela poderia ser moralmente
legisladora), mas sim interessa porque é válida para nós como homens, pois que nasceu da nossa vontade, como inteligência e, portanto, do nosso
verdadeiro eu (GMS, AA 04:460/1).
O ponto chave é que há um
elemento volitivo subjacente a todo interesse na moralidade, logo, não se trata
somente de uma análise do raciocínio prático desprovido de qualquer disposição
do agente em agir. Pois, para explicarmos a normatividade dos imperativos nós
precisamos levar em conta um elemento concreto da vontade, o querer (Wollen). É por isso que a normatividade
do imperativo hipotético é condicional, uma vez que a racionalidade
instrumental desse tipo de ação coloca os meios como condição dos fins – quem
quer os fins quer os meios necessários para obtê-los. Diante de um fim dado,
ou, de um querer prévio á derivação da própria norma da razão, só se poderá
derivar imperativos hipotéticos. Estamos livres de obrigações (hipotéticas) tão
logo renunciamos ao fim, exatamente porque isso nos libera dos meios
necessários para alcançá-lo. Como, então, aplicar esse raciocínio no caso do
imperativo categórico? Significa que ele não implica nenhum elemento volitivo,
sendo mera abstração como acusam os críticos de Kant? É evidente que não, o
imperativo categórico supõe um querer da vontade, mas um querer que é ligado sinteticamente.
A consciência da lei
enquanto fundamento do dever moral carrega esse componente volitivo também, uma
vez que a consciência dos fundamentos da necessidade prática da ação é fonte de
uma intenção moral intrínseca. Foi Christian Wolff quem afirmou que “o
conhecimento do bom é um motivo (Bewegungsgrund)
da vontade”[25].
Kant não teve razões para discordar dele sobre esse ponto. Não por acaso, ele
considerou que o dever moral é um tipo de “querer”: “pois
este dever é propriamente um querer que
valeria para todo o ser racional, sob a condição de a razão nele ser prática sem obstáculos” (GMS, AA 04:449). Noutro
ponto, o filósofo voltou a reafirmar que: “o
dever moral é, pois, um próprio querer seu como
membro de um mundo inteligível, e só é pensado por ele como dever na medida em
que ele considera ao mesmo tempo como membro do mundo sensível” (GMS, AA
04:455). Esse querer é incondicional, ele se origina da consciência de que uma
lei de ação imediatamente válida emana da própria razão. Ora, se o querer ligado
à moralidade é incondicional e não se baseia em nenhuma outra condição, o
imperativo ligado a ele só pode ser categórico.
Trata-se de
um elemento volitivo cujo significado vai muito além do mero aspecto
desiderativo porque ele nos liga (binden)
à moralidade e simboliza, sobretudo, nosso compromisso (Verbindlichkeit) para com ela. É a impossibilidade de se renunciar
desse querer ligado à ação moral que faz com que a norma de ação
correspondente, aquela que diz como proceder numa situação específica, seja
categórica. O imperativo categórico enquanto norma de ação pressupõe não só a
ação necessária (estabelecida pela lei), mas também a “ligação” originária com
ela. Com isso, a racionalidade prática do imperativo, a sua incondicionalidade,
pode ser derivada da razão prática pura (não instrumental). O ponto aqui é
simplesmente mostrar o pressuposto levantado como condição para a admissão da
realidade do dever, a ideia de que sua legislação só pode se exprimir em
imperativos categóricos, como supôs Kant na primeira citação desta seção. Na
medida em que essa legislação tem um significado real e governa a vontade, o dever não é mera ilusão da mente.
O dever liga
o agente a uma ação necessária (moralmente obrigatória), a consciência de que a
necessidade prática da ação se assenta sobre a lei moral sela o compromisso com
ela (a ação moral) por meio de um “querer” (Wollen).
Não renunciamos a esse querer sob hipótese alguma, ainda que o ignoremos e o
contrariemos. A obrigação moral é algo do qual não podemos ficar alheio, uma
vez que a consciência é um lembrete sempre constante de suas reivindicações.
Provar que o dever (obrigação moral) não é uma simples quimera
da imaginação e sim algo real requer mostrar exatamente que nossa “ligação” e
nosso “compromisso” (Verbindung) com
a moralidade é originária e constitutiva de sua própria natureza racional. O
propósito de uma “Fundamentação”
(Grundlegung) [26],
não pode ser outro senão mostrar que o dever moral brota de nossa compreensão
da moralidade como originariamente dada, isto é, como evidente por si mesma.
V
Caso houvesse meios discursivos de afirmar que a
moralidade (a lei moral e o dever) é mera ilusão da mente, o que é um fardo
para aqueles que negam a sua natureza racional, nós teríamos que admitir que se
trata de uma ilusão da qual não podemos abdicar. O que se subscreve com isso é
a necessidade subjetiva da moralidade e da lei moral enquanto padrão de
avaliação das nossas ações – a necessidade de conformar a máxima a um princípio
universal. Uma vez que não temos fundamentos para inferir a realidade da
moralidade dessa necessidade subjetiva, há razões para pensarmos que de algum
modo ela é um resultado da própria influência da moralidade. A partir daí, o
que buscamos mostrar é que nosso vínculo com a moralidade é sui generis e exatamente por isso não
pode se basear em nenhum princípio último como sua condição de sua
possibilidade. Nosso compromisso com as exigências morais deriva do fato que a
consciência do dever (consciência moral) nos leva ao conhecimento dos fundamentos
práticos que fazem da ação uma ação moralmente necessária, e porque esse
conhecimento é fonte não só de um tipo de intenção moral, mas de um “querer”.
Nós assumimos a validade do dever justamente porque queremos agir moralmente,
ou seja, temos interesse pela universalidade de nossa máxima e porque a única
norma capaz de me obrigar a isso só pode ser derivada diretamente da razão
prática.
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2003.
· Professor de Filosofia do ICHCA (UFAL). E-mail: darley_alf@hotmail.com
[1] Paul Guyer insiste que a descrição da natureza racional do homem indica que Kant não busca inverter a lógica humeana na GMS, somente substitui o sentimento pela razão. Assim, ele acaba por derivar o “dever” de um “é”. Compreendemos, contudo, que Kant se baseia muito mais numa ordem “ideal” da razão, o mundo inteligível, do que na descrição da “natureza racional” do homem. O simples fato de ser racional e imperfeito é suficiente para rejeitar essa descrição (o é) como base para a derivação do imperativo. Contrariamente, a descrição da condição racional e finita do homem é o que caracteriza a aplicação da norma moral em seu caráter imperativo. Cf. Guyer, 2016, p. 21/2.
[2] Béatrice Longuenesse coloca essa leitura a prova, mostrando que o imperativo categórico não pode ser uma norma exterior à própria razão, logo não pode ser fundada nas relações sociais e religiosas. O imperativo categórico é para Freud o resultado da internalização (ou desenvolvimento) dos comandos paternos que visavam refrear os impulsos libidinais. Longe de ter origem na razão pura, a moralidade seria expressão de nossos sentimentos e emoções mais arcaicas. A internalização das mais variadas práticas e estruturas sociais nas quais se sobressaem as relações de poder, a repressão, a autoridade, o arrependimento e a culpa – relações intersubjetivas em geral – é a origem da estrutura mental que Freud descreve como “super-ego”. Cf. Longuenesse, 2017, 205/6.
[3] Cf. Rogozinski, 2008, p. 431-446.
[4] KrV A552/B580. “A moralidade própria das ações (o mérito e a culpa), mesmo de nossa própria conduta, fica-nos completamente oculta [...] em que medida o efeito puro se deve atribuir à liberdade, em que medida à simples natureza e ao vício involuntário do temperamento, é o que ninguém pode aprofundar com inteira justiça”.
[5] Cf. KrV A803/831.
[6] De certo modo, a ação moral é em si mesma um sacrifício a qual só o motivo do próprio dever pode nos impelir. GMS, AA 04:407. “Na verdade, por vezes acontece que apesar do mais agudo exame de consciência, não possamos encontrar nada fora do motivo moral que pudesse ser suficientemente forte para nos impelir a tal ou tal boa ação ou a tal grande sacrifício”. Isso ignora, evidentemente, as ações conforme o dever, que apesar de serem baseadas naquilo que o dever prescreve, ocorre por intenções escusas.
[7] GMS, AA 04: 399. “Eu afirmo, porém, que neste
caso tal ação é conforme ao dever e por mais amável que ela seja, não tem,
contudo, nenhum valor moral [...] pois à sua máxima falta conteúdo moral, que manda que tais
ações sejam praticadas por dever e
não por inclinação”.
[8] De acordo com Lewis White Beck, a consciência moral por si só não é suficiente para refutar de uma vez por todas a ameaça de que o dever seja um conceito ilusório e quimérico. Cf. Beck, 1960, p. 169.
[9] Esse princípio é, sobretudo, um cânone do julgamento, não a própria formula que será apresentada na 2ª seção. Kant afirma no final da 1ª seção que atingimos o princípio moral por meio do entendimento comum e que podemos distinguir o que é conforme o dever e o que é contrário ao dever. Trata-se, contudo, de uma forma mais intuitiva de conhecimento moral porque é um saber indissociável da práxis. É só com a filosofia prática que descortinamos a racionalidade prática inerente a moralidade, de modo que possamos elucidar o princípio do querer (volição) exigido pela moralidade, bem como a fonte do princípio. Tudo isso falta ao entendimento comum.
[10] Cf. Paton, 1947, p. 199.
[11] Cf. GMS, AA 04:414.
[12] Cf. GMS, AA 04:400.
[13] Outras formulações do que seria a primeira proposição são empregados por: Timmermann, 2007, p. 26. “Uma ação que coincide com o dever moral tem valor moral se, e apenas se, sua máxima é produzida por necessidade”. Allison, 2011, p. 125. “Uma boa vontade sob condições humanas é uma vontade cuja máxima tem conteúdo moral”.
[14] Essa imediatez entre a consciência da lei e o respeito por ela faz com que Beck considere o respeito e a consciência do dever como equivalentes, ambos são expressões da autoridade moral da lei. A consciência da lei implica tanto o reconhecimento do que é demandado como moralmente obrigatório (dever), quanto da validade de sua autoridade (respeito). Cf. Beck, 1960, p. 222.
[15] Paton, 1947, p. 67. “Só há autoridade quando há respeito, do contrário, todo comando sobre a vontade seria um ato de autoritarismo - só um tirano governa sem respeito”.
[16] Cf. GMS, AA 04:460. “Para que um ser, ao mesmo tempo racional e afetado pelos sentidos, possa querer aquilo que só a razão lhe prescreve como dever, é preciso uma faculdade da razão que inspire um sentimento de prazer (Gefühl der Lust) ou de satisfação (Wohlgefallen) no cumprimento do dever”.
[17] Cf. Willaschek, 1992, 184.
[18] Dieter Henrich chega a afirmar que o respeito “fecha o sistema de filosofia moral kantiano” porque agrega aspectos distintos da moralidade. Segundo ele, a compreensão da facticidade e da racionalidade do fato da razão nos leva de volta à doutrina do respeito. Ambos não são concebidos distintamente. Cf. Henrich, 1982, p. 34
[19] Traçando o contraste entre a dedução na filosofia teórica e na filosofia prática, Beck subscreve que é difícil encontrar a distinção mantida na primeira entre a formulação e a justificação do conhecimento a priori. Por isso, as etapas da GMS (e da KpV) apenas assemelham aos da KrV, quando se trata da dedução metafísica e transcendental. Elas não podem ser equivalentes. Beck, 1960, p. 111. “Aqui é apenas um princípio que está sob exame e é um que ele pensa já ter sido dado com completa autoridade, precisando apenas de ser trabalhado e trazido à consciência. Consequentemente, a formulação e a defesa do princípio dificilmente podem ser tão claramente separadas como na obra anterior”.
[20] No recorte feito por Allison, Kant está comprometido em justificar uma proposição sintética a priori com a dedução da lei moral e não com uma possível dedução do imperativo categórico. Como é reconhecido, Kant também fala de uma dedução distinta do imperativo categórico nos três parágrafos iniciais da 3ª seção da GMS, destinando uma seção para investigar a sua possibilidade: “como é possível o imperativo categórico?”. Não é implausível, portanto, que houvesse uma dedução do imperativo destinada a explicar nossa experiência moral em seu modo imperativo. Mas, essa dedução adicional teria que mostrar como esse imperativo se relaciona com a lei. Cf. Alisson, 1990, p. 224/5. Para Paton, por sua vez, a passagem de um princípio moral (princípio da autonomia) para o imperativo categórico não demanda uma justificação adicional. Cf. Paton, 1947, p. 247. A. C. Genova se limita a dizer que há uma dedução da lei moral que contempla dois aspectos, primeiro do ponto de vista de nossa experiência fenomenal e, segundo, a partir da ideia de um sistema de fins supra-sensível. Cf. Genova, 1978, p.309.
[21] GMS,
AA 04:447. “Entretanto este princípio continua a ser
uma proposição sintética: uma vontade absolutamente boa é aquela cuja máxima
pode sempre conter-se a si mesma em si, considerada como lei universal; pois
por análise do conceito de uma vontade absolutamente boa não se pode achar
aquela propriedade da máxima”.
[22] Henrich,
1975, p. 83. “Na Fundamentação, o
termo “dedução” é usado em seu sentido normal, sem as implicações especiais de
uma dedução transcendental das categorias. Nela, portanto, necessita apenas
proceder em acordo com o entendimento normal de justificações cognitivas de um
conhecimento de sua origem”.
[23] Cf. GMS, AA 04:460
[24] Cf. GMS, AA 04:450
[25] Wolff, 2003, p. 335, §6.
[26] Para Konrad Utz, a Fundamentação (Grundlegung) é uma teoria
da normatividade possível, uma explicação da sua origem. Estou de pleno acordo
com a interpretação dada por ele nesse e em outros aspectos que tratam da
tarefa empreendida na GMS. Utz, 2016,
p. 218. “A
fundamentação da moral consiste somente mostrar que e
como o dever categórico é originariamente possível. – E é precisamente a esse respeito,
fala-se melhor (com Kant) de “Fundamentação”
(Grundlegung) da teoria moral do que em “justificação da moralidade” (Moralbegründung).