A exegese de Heidegger na Crítica da razão pura:

finitude como pressuposto de uma antropologia filosófica

 

Heidegger's exegesis in Critique of pure reason:

finitude as a presupposition of a philosophical anthropology

 

MÁRCIO LUIZ DA SILVA·

 

IFSULDEMINAS, Brasil

 

 

Resumo

 

O objetivo do artigo consiste em analisar, a partir dos parágrafos 34 a 38 da obra Kant e o problema da metafísica e segundo a exegese heideggeriana, o sentido e pertinência da inserção da problemática antropológica anteposta às três questões fundamentais expostas na Crítica da razão pura. Heidegger converte um rol exaustivo, delimitado pelas três perguntas (que posso saber? que devo fazer? que me é permitido esperar?), em um rol exemplificado (numerus apertus), ao colocar a indagação da antropologia filosófica como pressuposto e consequência necessária das três interrogações kantianas. Heidegger recorre ao conceito de finitude, para validar a importância e para fundamentar a primazia da questão antropológica sobre as demais: a interrogação “que é o homem” transforma-se na primeira que dispensa, a partir de si, as três restantes. Na finitude estão circunscritas as discussões sobre o tempo, a autoafecção pura, a imaginação e o tempo originário. É na finitude que estão os verdadeiros sinais ou ecos da antropologia filosófica kantiana.

 

Palavras-chave

 

Autoafecção pura, Estética transcendental, Metafísica, Imaginação, Tempo originário.

 

Abstract

 

The purpose of the article is to analyze, from paragraphs 34 to 38 of Kant and the Problem of Metaphysics and according to Heidegger's exegesis, the meaning and relevance of the insertion of the anthropological problematic before the three fundamental questions exposed in the Critique of Pure Reason. Heidegger converts an exhaustive list, delimited by the three questions (what can I know? what should I do? what am I allowed to wait?), into an exemplified list (numerus apertus), by placing the inquiry of philosophical anthropology as a presupposition and necessary consequence of the three kantian interrogations. Heidegger resorts to the concept of finitude, to validate the importance and to support the primacy of the anthropological question over the others: the question "what is man" becomes the first that dispenses, from itself, the remaining three. In finitude, discussions about time, pure self-affection, imagination and original time are circumscribed. It is in finitude that the true signs or echoes of kantian philosophical anthropology lie.

 

Keywords

 

Pure self-affection, Transcendental aesthetics, Metaphysics, Imagination, Original time.

 

 

Introdução

O termo crítica (Kritik), substantivo presente nos principais títulos das obras kantianas, possui um caráter negativo e positivo. Negativamente, Kritik fixa as fronteiras de competência da razão frente aos metafísicos racionalistas e, positivamente, assegura à razão “o caminho seguro de ciência”, consistindo na resposta ao ceticismo baseado no empirismo (Beck 1960). O autor afirma que Kant formalmente define Kritik como “uma ciência do mero exame da razão, de suas fontes e limites”. Nesse sentido, crítica não significa rejeição, recusa ou desvalorização, mas sim discriminar, ou seja, separar aquilo que são nossas faculdades. Crítica da razão pura seria, então, uma separação daquilo que é da nossa faculdade do que não é e, nessa acepção, crítica seria discriminação, separação, critério. Höffe (2005) lembra que no sentido original do termo, “crítica” (em grego krinein) significa distinguir, julgar, levar ante o tribunal. Assim, a Crítica da razão pura “é autoexame e autolegitimação da razão independente da experiência” e “é na autocrítica que a razão manifesta o seu poder; mas este poder serve para sua autolimitação” (Höffe 2005, p. 38). “No decorrer do autoexame, a razão rejeita o racionalismo porque o pensamento puro não é capaz de conhecer a realidade. Porém, a razão rejeita também o empirismo” (Höffe 2005, p. 39). Höffe (2005) adverte que ideias puras da razão existem, mas meramente como princípios regulativos a serviço da experiência. Em Crítica da razão pura, Kant nos confronta com as condições precárias da metafísica, ciência necessária e ao mesmo tempo impossível (Höffe 2005).

Embora verse especificamente sobre a teoria do conhecimento, a Crítica da razão pura, que poderia ser chamada mais exatamente “crítica da razão especulativa pura” (Höffe 2005), aborda, na sua segunda parte ou livro, denominada Doutrina transcendental do método, as perguntas sobre as condições de possibilidades, consubstanciadas nas três questões fundamentais da razão.

Heidegger (2019), numa tentativa de encontrar sinais da metafísica na Crítica da razão pura, traça uma interpretação para além do aparente objetivo da obra, que é fundamentar o conhecimento humano, fixar seus limites e apresentar as três questões primordiais, ontologicando Kant e buscando ecos de uma antropologia filosófica.

Nesse sentido, o objetivo desse artigo consiste em analisar o sentido e cabimento da inserção da problemática antropológica, realizada por Heidegger, no rol de perguntas sobre os pressupostos necessários e indispensáveis de possibilidades da Crítica da razão pura.

A delimitação do tema da presente pesquisa visa, assim, à análise da inclusão da interrogação antropológica anteposta às três questões fundamentais da Crítica da razão pura (KrV A 805/B 833), através dos §§ 34 a 38 da obra Kant e o problema da metafísica, publicada originalmente em 1929.

Ante o exposto, como problematização, deve-se perguntar qual a pertinência e sentido da admissão da questão antropológica (antropologia filosófica) na obra kantiana. A busca pela resposta a esta problematização guarda importância não somente na compreensão de Kant enquanto metafísico, mas como referência nas discussões contemporâneas no campo da antropologia filosófica.

As citações diretas das obras de Kant seguiram a metodologia preconizada por Gaygill (2000) e Lopes (2020) e as citações, diretas, dos escritos de Heidegger, as recomendações propostas por Inwood (2002). Dessa forma, para a obra Crítica da razão pura utilizou-se a abreviação KrV seguido da edição (A ou B), o mesmo se aplicando para Antropologia de um ponto de vista pragmático (A), Lógica (L) e Kant’s Werke (KW). Para Ser e tempo foi utilizada a sigla ST acompanhada do parágrafo em algarismo romano com a paginação original e para Kant e o problema da metafísica, a rubrica K seguida do ano da publicação, do parágrafo e página da edição traduzida para o português.

Heidegger (2019) converte um rol exaustivo ou fechado (numerus clausus), delimitado pelas três perguntas expostas na Crítica da razão pura (KrV A 805/B 833), em um rol exemplificado ou aberto (numerus apertus), ao colocar a indagação da antropologia filosófica como pressuposto e consequência necessária das três interrogações kantianas. Nessa empreitada, Heidegger (2019) recorre a conceitos e métodos presentes na fenomenologia e ontologia de ST. “Ser e tempo começa e termina com a questão da ontologia, com a questão do ser, ou melhor, como Heidegger frisa, a questão do sentido do ser” (Stein, 2014, p. 22).

 

 

 

As três questões fundamentais ou os fins supremos da razão: o cânone da razão na Crítica da razão pura

As três perguntas sobre as condições de possibilidades estão presentes na segunda parte da Crítica da razão pura, denominada de Doutrina transcendental do método, no segundo capítulo, o Cânone da razão pura: “Todo o interesse da minha razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes três interrogações: 1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me é permitido esperar?” (KrV A 805/B 833).

Para Kant (2001) a primeira questão é totalmente especulativa, a segunda simplesmente prática e a terceira interrogação é, simultaneamente, prática e teórica, de tal modo que a ordem prática apenas serve de fio condutor para a resposta ao problema teórico e, quando este se eleva, para a resposta à questão especulativa.

De certa forma, as três indagações supra possuem uma relação direta e necessária com as três grandes questões da metafísica tradicional: a cosmologia racional, a psicologia racional e a teologia racional. “O propósito final a que visa em última análise a especulação da razão, no uso transcendental, diz respeito a três objetos: a liberdade da vontade, a imortalidade da alma e a existência de Deus” (KrV A 798/B 826).

Quanto às três questões que constituem todos os esforços da razão (Que posso saber? Que devo fazer? Que me é permitido esperar?), Chagas (2012) chama a atenção para a relação entre as três perguntas, tecendo uma crítica sobre qual(is) elo(s) estabelece(m) a relação entre a questão prática e a questão teórico-prática, uma vez que a interrogação especulativa (teórica) ocupa todo o cerne da KrV. Para a autora:

 

Com efeito, um dos problemas da solução kantiana para a pergunta acerca do interesse teórico-prático da razão é a falta de clareza sobre como estabelecer exatamente a conexão entre o interesse prático (acerca do que devo fazer) e o interesse teórico prático (sobre o que posso esperar se faço aquilo que devo), ligação esta, por sua vez, que não pode ser meramente arbitrária e hipotética, mas também não pode interferir na fundamentação do sistema da moralidade, tendo em vista que a figura do móbil moral desempenha uma função sistematicamente crucial no interior deste projeto porque justamente cabe a ela explicitar como o reconhecimento da validade objetiva do princípio  moral pode “ser uma causa eficiente” suficiente para a determinação da vontade humana (Chagas 2012, p. 739).

 

Terra (2012) ressalta que a resposta à questão “o que devo fazer?” é: “faça aquilo que o torne digno de ser feliz” (KrV A 808-809/B 836-837). Referente à terceira questão (“o que me é permitido esperar?”), a resposta dependeria “de se os princípios da razão pura, que prescrevem a lei a priori, também conectam essa esperança a ela de maneira necessária” (KrV A 809/B 837). “Para explicar esta conexão Kant desenvolve a noção de uma razão suprema, o ideal do sumo bem, a necessidade da admissão de um sábio criador e também da vida futura” (Terra 2012, p. 751-752).

À luz da Crítica da razão pura, Brandt (2007) explica as três questões fundamentais. Assim, os interesses da razão estariam conectados aos problemas da dialética transcendental: psicologia racional (alma), respondendo à questão: ‘o que posso esperar?’, cosmologia (liberdade ou determinismo), respondendo à questão: ‘o que devo fazer?’, teologia racional (causa do mundo, Deus), respondendo à questão: ‘o que posso saber?’” (Brandt 2007; Terra 2012). Terra (2012, p. 753) observa que “com o desdobramento de sua filosofia, Kant transforma um pouco o sentido das questões e, principalmente, das respostas às questões”.

Sem pretensões de tentar respondê-las ou entender suas inter-relações ou conexões, ideias afastadas da presente discussão, ratifica-se que as interrogações fundantes da filosofia kantiana, expostas na KrV, permanecem um numerus clausus: que posso saber? que devo fazer? que me é permitido esperar?

 

A ideia de uma antropologia filosófica em Kant e o problema da metafísica

A ideia de uma antropologia filosófica em Kant emerge como possibilidade de se acrescentar uma quarta interrogação às três já expostas: “que é o homem?” Questiona-se, dessa forma, quais são os fundamentos de tal inserção e qual seria a sua topologia: a pergunta “que é o homem” é uma consequência necessária ou um pressuposto das três interrogações anteriores?

Essa discussão, ou parte dela, surge fortemente, sobretudo nos §§ 34 a 38 da obra Kant e o problema da metafísica (Heidegger 2019).

O próprio Heidegger comenta sobre o sentido da sua exegese realizada à primeira Crítica kantiana: “a intenção fundamental da presente interpretação da Crítica da razão pura foi tornar visível o conteúdo decisivo desta obra, ao procurar-se extrair aquilo que Kant ‘quis dizer’” (K, 2019, § 35, p. 203). E continua: “para arrancar àquilo que as palavras dizem daquilo que elas querem dizer, cada interpretação tem que usar necessariamente violência. Mas tal violência... tem que ser a força de uma ideia inspiradora a impulsionar e dirigir a exegese” (K, 2019, § 35, p. 204). Carr (2007) assevera que Heidegger é extremamente aberto sobre a admissão do uso da “violência” na interpretação da obra kantiana.

Para Heidegger (2019), embora a fundamentação da metafísica kantiana comece na metaphysica generalis, ela se torna a pergunta sobre a possibilidade de uma ontologia em geral. “Esta coloca a pergunta sobre a essência da constituição do ser do ente, isto é, sobre o ser em geral” (K, 2019, § 35, p. 204).

Heidegger (2019) parece estabelecer uma cooriginariedade para o subjectum do tempo e da metafísica: “Sobre o fundamento do tempo cresce a fundamentação da metafísica. A pergunta sobre o ser, a pergunta fundamental de uma fundamentação da metafísica, é o problema de Ser e tempo” (K, 2019, § 35, p. 204).

Em Heidegger (2019), tanto a fundamentação do conhecimento quanto do ser (homem) está na sensibilidade, nas intuições puras (nas formas puras de espaço e tempo) capazes de nos afetar. “O espaço, de fato, equipara-se sempre e necessariamente, em certo sentido, com o tempo assim compreendido” (K, 2019, § 35, p. 202). O autor se baseia, para tal afirmação, na hermenêutica da seguinte(s) passagem(ens) da KrV:

 

Mais digno de nota é, porém, que, para entender a possibilidade das coisas, em consequência das categorias, e assim mostrar a realidade objetiva destas últimas, carecemos não só de intuições, mas de intuições externas (KrV B 291). Ora o espaço e o tempo contêm, sem dúvida, um diverso de elementos da intuição pura a priori, mas pertencem todavia às condições de receptividade do nosso espírito, que são as únicas que lhe permitem receber representações de objetos e que, por conseguinte, também têm sempre que afetar o conceito destes (KrV B 102).

 

Contudo, Heidegger (2019) estabelece uma certa precedência do tempo, intuição interna, sobre o espaço, intuição externa: “o fundamento originário que se torna manifesto na fundamentação é o tempo” (K, 2019, § 35, p. 204). Heidegger (2019) amplia, dessa forma, o sentido da concepção de tempo: de forma pura da intuição interna no âmbito da sensibilidade, o conceito de tempo passa a se estender à toda a teoria do conhecimento kantiano. Numa hermenêutica quase reducionista, Heidegger (2019) coloca o tempo como tema central na KrV: o tempo parece ser a última palavra. “Para Heidegger, a primazia do tempo é motivo de ver na Crítica da razão pura uma predecessora de sua própria ontologia fundamental, apresentada sob o título Sein und Zeit [Ser e tempo]” (Höffe 2005, p. 71-72). Segundo o ontologista “o sentido interno puro é a autoafecção pura, isto é, o tempo originário” e “(...) o tempo originário faz acontecer a formação pura da transcendência” (K, 2019, § 35, p. 200-201). “O tempo é, segundo a sua essência, pura afecção de si mesmo” (...) e “só com base nesta ipseidade é que o ser finito pode ser aquilo que ele tem de ser: remetido para a recepção” (K, 2019, § 34, p. 192). E acrescenta:

 

O tempo pertence à possibilidade interior deste deixar contrapor-se de... Enquanto autoafecção pura, ele forma originariamente a ipseidade finita, de tal modo que o si-mesmo passa a ser algo como autoconsciência (...). No entanto, receber puramente quer dizer: ser afetado de um modo que seja livre da experiência, isto é, afetar-se a si mesmo (K, 2019, § 34, p. 193). Sentido significa intuição finita. A forma do sentido é o receber puro. O sentido interno acolhe não “a partir de fora”, mas a partir de si mesmo (...). A autoafecção pura dá a estrutura originária transcendental do si-mesmo finito enquanto tal. (...) O si mesmo puro finito tem em si um caráter temporal (K, 2019, § 34, p. 194).

 

O filósofo de Königsberg ressalta que “na medida em que pertence à essência do sujeito finito poder ser interpelado como si-mesmo, o tempo, enquanto autoafecção pura, forma a estrutura essencial da subjetividade” (K, 2019, § 34, p. 192). Trata-se de um sujeito que se afeta em si e consigo e nesta autoafecção revela a sua originalidade (Martins 2009). A autoafecção, de si mesmo e por si mesmo, não tem nem um começo nem um fim, é um movimento, um automovimento interno que experimenta a si mesma na vivência, sem interrupção (Henry 2003). O próprio Kant (2001) comenta sobre o sentido da autoafecção, que carrega em si um aparente paradoxo:

 

É agora aqui o lugar para esclarecer o paradoxo, que a ninguém deve ter passado despercebido na exposição da forma do sentido interno (§ 6), a saber, que este nos apresenta à consciência, não como somos em nós próprios, mas como nos aparecemos, porque só nos intuímos tal como somos interiormente afetados; o que parece ser contraditório, na medida em que assim teríamos de nos comportar perante nós mesmos como passivos; por este motivo, nos sistemas de psicologia se prefere habitualmente identificar o sentido interno com a capacidade de apercepção... (KrV B 153).

 

Referente à autoafecção kantiana, Gaygill (2000) comenta que o problema envolve a relação entre a psicologia empírica do afeto e a afecção da percepção, ou como o Gemüt (mente/ânimo) pode vir a afetar-se. Dessa forma, a autoafecção parece contraditória e uma resposta reside na dupla-afecção, processo no qual o eu aperceptivo que pensa distingue-se do eu psicológico que intui. “Esta tese assenta numa distinção implícita entre a afecção do eu aperceptivo, a qual condiciona as aparências de acordo com a tábua de categorias, e o eu intuitivo, o qual é afetado tanto pelas categorias quanto pelos objetos de percepção” (Gaygill 2000, p. 12). A apercepção surge na KrV como “apercepção empírica” ou “sentido interno” (Gaygill 2000) e corresponde à “consciência de si mesmo de acordo com as determinações do nosso estado em percepção interna” (KrV A 107). Em Kant “a consciência de si mesmo (a apercepção) é a representação simples do eu e se, por ela só, nos fosse dada, espontaneamente, todo o diverso que se encontra no sujeito, a intuição interna seria então intelectual” (KrV B 68).

Para fundamentar suas interpretações e encontrar um Kant metafísico, o ontologista recorre, novamente, à KrV: “Com efeito, o eu fixo e permanente (da apercepção pura) constitui o correlato de todas as nossas representações, na medida em que é simplesmente possível ter consciência dessas representações...” (KrV A 124). O autor salienta que, “contudo, o eu é ‘estável e permanente’ nesse sentido transcendental enquanto é temporal, isto é, enquanto si-mesmo finito” (K, 2019, § 34, p. 196). E conclui que “a sensibilidade pura (tempo) e a razão pura não apenas são homogêneos, mas se compertencem na unidade da mesma essência que possibilita a finitude da subjetividade humana na sua totalidade” (K, 2019, § 34, p. 198).

Segundo a interpretação heideggeriana, na fundamentação metafísica kantiana “consegue-se encontrar um fundamento da intrínseca possibilidade da ontologia enquanto desvelamento da transcendência, isto é, da subjetividade do sujeito humano” (K, 2019, § 36, p. 208). Assim, na exegese de Heidegger (2019), o encontrar de um fundamento da metafísica corresponde a um perguntar sobre o homem, ou seja, é antropologia, mas não qualquer antropologia, mas uma filosófica. Na acepção heideggeriana, a fundamentação kantiana visa encontrar o fundamento da metafísica no seu fim último, a metaphysica specialis, à qual pertencem as três disciplinas da cosmologia, psicologia e teologia (Heidegger 2019). Nesse contexto, Heidegger (2019) recorre, mais uma vez, à KrV, trazendo novamente à tona as perguntas sobre as condições sine qua non: “Todo o interesse da minha razão (tanto especulativa como prática) concentra-se nas seguintes três interrogações: 1. Que posso saber? 2. Que devo fazer? 3. Que me é permitido esperar?” (KrV A 805/B 833). Para Heidegger (2019), a mais íntima essência da razão humana anuncia-se naquelas que a movem, enquanto humana, em qualquer tempo. Sobre essas três indagações, quase atemporais, que constituem os fundamentos ou fins supremos da razão, o ontologista descreve:

 

O saber humano diz respeito à natureza no sentido mais amplo e subsistente (cosmologia); o fazer é o agir do homem e diz respeito à usa personalidade e liberdade (psicologia); e o esperar visa à imortalidade enquanto beatitude, isto é, a unificação com Deus (teologia) (K, 2019, § 36, p. 209).

 

Na ótica heideggeriana, os três interesses originários supra determinam o homem não como ser natural, mas como “cidadão do mundo”. “Eles constituem o objeto da filosofia ‘numa intenção cosmopolita’, isto é, a área da filosofia autêntica” (K, 2019, § 36, p. 209).

Terra (2012) salienta que as três perguntas sobre as condições de possibilidade foram reformuladas, por Kant, em textos posteriores (Carta de Kant para Frederick Stäudlin, de 1793; Lógica, de 1800), acrescentando-se uma quarta pergunta: “o que é o homem?”.

Assim, a questão antropológica já havia sido inserida às três interrogações fundamentais pelo próprio filósofo de Königsberg, tanto na carta de Kant para Stäudlin (1793) quanto na introdução às lições de lógica (1800). Nas preleções sobre lógica (KW 9, L, p. 25), Kant (1968, 1992, 2009) assevera:

 

O campo da filosofia, neste sentido cosmopolita, pode traduzir-se nas seguintes perguntas:

1. Que posso saber?

2. Que devo fazer?

3. Que me é permitido esperar?

4. Que é o homem?

 

“A metafísica responde à primeira pergunta, a moral à segunda, a religião à terceira e a antropologia à quarta. Mas, no fundo, tudo isto se poderia incluir na antropologia, visto que as três primeiras questões se referem à última” (L, IX, 25). “A remissão das três primeiras questões à Antropologia não constava na carta já referida” (Terra 2012, p. 754).

“A antropologia se pergunta, portanto, pelo que é o homem, mas não de qualquer modo, pois deve adotar uma perspectiva pragmática (não meramente teórica, fisiológica) capaz de com o auxílio da ciência prática preparar e auxiliar o homem para um conhecimento do mundo humano” (Lopes 2020, p. 23). Nesse sentido, salienta o autor, a questão antropológica possui, no pensamento kantiano, centralidade para o ofício filosófico. No prefácio da obra Antropologia de um ponto de vista pragmático, publicada em 1798, Kant (2006) afirma que no mundo, o objeto mais importante ao qual o homem pode aplicar o conhecimento é o próprio ser humano, dado que o homem é o seu próprio fim último.

Dessa forma, após a Crítica da razão pura, surge uma série de escritos kantianos tentando responder o que é o homem e de que modo a razão deve ser utilizada para aplicar toda a filosofia até então conquistada (Santos et al. 2010; Azevedo 2019). Ainda no século XVIII, Kant havia tomado consciência de que a questão antropológica ocupava um lugar supereminente ante todas as questões filosóficas, sendo ela a questão mais importante, para a qual convergem todas as demais interrogações que se podem pôr em especulação filosófica (Schiller 2019). “Se as quatro perguntas estão articuladas sistematicamente e as três primeiras pertencem à filosofia transcendental, então porque não pensar que o projeto antropológico também faria parte de modo decisivo da filosofia transcendental?” (Perez 2018, p. 70).

Mas se o próprio Kant inseriu a interrogação sobre “que é o homem” às três perguntas fundamentais, em que consiste(iu) a exegese heideggeriana?

Para Heidegger (2019), parece que o projeto kantiano de filosofia tem seu cume e se recobre pela pergunta e desenvolvimento eventual acerca do homem.

Nesse sentido, a inovação heideggeriana, em Kant e o problema da metafísica, pode repousar sobre a ratio da inserção da quarta interrogação kantiana e sobre a sua precedência ou primazia sobre as três perguntas anteriores. Responder o que é o homem, para Heidegger, seria resolver as três questões anteriores (Stein 1993). Contudo, deve-se evidenciar que o projeto antropológico de Heidegger apresenta uma concepção de antropologia completamente distinta da antropologia prática ou pragmática de Kant (Kant 2006; Louden 2011).

Em Heidegger (K, 2019, § 37, p. 211) “a antropologia tem também de procurar abranger aquilo que o homem, enquanto agente, ‘faz a partir de si’, pode e deve fazer”. A palavra antropologia “designa uma tendência fundamental da posição hodierna do homem em relação a ele mesmo e no todo do ente” (K, 2019, § 37, p. 211). Para Heidegger (2019) a antropologia não pode procurar apenas a verdade sobre os homens, mas também reclamar a decisão sobre o que pode significar a verdade em geral. Evidencia-se que o termo verdade, em Heidegger (2015, 2019) não é apenas a verdade das proposições, de sentenças, mas uma verdade fundante, que nos dê as condições transcendentais da verdade, uma verdade que seja condição de possibilidade para podermos entender o que é propriedade (verdadeiro e falso) de uma proposição (Stein 1993). Em Heidegger “a verdade não possui, portanto, a estrutura de uma concordância entre conhecimento e objeto, no sentido de uma adequação entre um ente (sujeito) e um outro ente (objeto)” (ST, § 44, 219). Trata-se de uma verdade como desvelamento do ser, como abertura para um horizonte (do grego alétheia). Alétheia no sentido de desocultação (Inwood 2002). “Verdade como condição de possibilidades, verdade como condição transcendental de possibilidade” (Stein 1993, p. 21). Nesse sentido, ser verdadeiro “indica ‘deixar ver’ o ente em seu ser e estar descoberto” (ST, § 44, 219). Para Heidegger (2019) Kant recuou, ante o fundamento que ele mesmo estabeleceu, no processo de desvelamento da subjetividade do sujeito.

Retomando à questão sobre a antropologia, o ontologista ressalta que em “nenhum tempo soube tanto e coisas tão diversas sobre o homem como o hodierno. (...) Mas também nenhum tempo soube menos o que é o homem como o hodierno” (K, 2019, § 37, p. 212). Em nenhuma época o homem se tornou tão digno de questionamento quanto no presente (Scheler 2003).

Na hermenêutica heideggeriana, essa antropologia, que busca responder o que é o homem, dever ser filosófica, deve ser ontológica:

 

Certamente que uma antropologia pode ser chamada de filosófica, na medida em que o seu método é filosófico, no sentido de uma consideração da essência do homem. (...) A antropologia filosófica torna-se, com isto, uma ontologia regional do homem e permanece, enquanto tal, coordenada com as restantes ontologias que se repartem com ela sobre o âmbito total do ente (K, 2019, § 37, p. 213).

 

O ontologista adverte que o simples fato de se inserir a quarta pergunta, sobre o que é o homem, não basta para a crítica da ideia da antropologia filosófica.

 

Daí que seria também apressado, apenas porque Kant reconduz as três perguntas da metafísica autêntica à quarta pergunta sobre o que é o homem, tomar esta pergunta como antropológica e transpor a fundamentação da metafísica para uma antropologia filosófica. Não é porque é antropologia que a antropologia fundamenta a metafísica. Mas o resultado autêntico da fundamentação kantiana não foi precisamente esta conexão da pergunta sobre a essência do homem com o encontrar do fundamento da metafísica? (K, 2019, § 37, p. 215).

 

Heidegger já havia perguntado: “Mas não teria sido essa quarta pergunta acerca do homem acrescentada não expressamente às outras três primeiras e, com isso, desnecessariamente, caso tenha-se considerado que a psychologia rationalis, enquanto disciplina da metaphysica specialis, trata mesmo do homem?” (Kahlmeyer-Mertes 2012, § 36). E a própria resposta de Heidegger (2019) foi uma negativa.

Segundo Heidegger (2019) só se pode colocar a quarta pergunta como ela quer ser colocada, elaborando-a a partir da compreensão do resultado da fundamentação kantiana.

 

Contudo, se a fundamentação não deixa de lado a pergunta sobre o que é o homem, mas também não lhe arranja uma resposta perfeita, tornando-a visível apenas na sua questionabilidade, que se passa, então, com a quarta pergunta de Kant para a qual deve ser reconduzida a metaphysica specialis e, com ela, o filosofar autêntico? (...) Trata-se de perguntar: por que se podem “referir” à quarta as três perguntas (1. Que posso saber?, 2. Que devo fazer?, 3. Que me é permitido esperar?)? Por que “se poderia...enquadrar contar tudo isto na antropologia? Que é que estas três perguntas têm em comum, em que perspectiva estão de tal modo unidas que podem ser reconduzidas para esta única quarta pergunta? Como tem de perguntar esta quarta pergunta ela mesma, para que possa acolher e transportar em si unitariamente aquelas três? O mais intrínseco interesse da razão humana une em si as mencionadas três perguntas (K, 2019, § 38, p. 217).

 

Heidegger (2019) recorre ao conceito de finitude tanto para responder a essa pergunta e validar a inserção da questão sobre “que é o homem” no numerus clausus, quanto para estabelecer a precedência da quarta interrogação sobre as demais, colocando-a na qualidade de pressuposto: o reclamar pelo “que é o homem” passa a ser não somente a consequência necessária, mas também a causa das três primeiras questões. Na finitude heideggeriana estão adstritas as discussões sobre o tempo, a autoafecção pura e o tempo originário.

Em Ser e tempo, o termo infinitude é algo secundário ou derivado, uma vez que “o tempo originario é finito” (ST, LXV, 331). Com primazia sobre a infinitude, a finitude (Endlichkeit) tem seu horizonte na morte, ou seja, é um fenômeno temporal, dado que o Dasein existe como um ser “lançado na morte” (ST, LXV, 329). O Ser-aí (Dasein), enquanto movimento existencial do homem e transcendência para o Ser, é um ser finito, em contraposição com a ideia de infinitude (humano e divino) e uma reinvindicação da finitude como um elemento constitutivo do ente que somos (se definir como finito acarreta em não se definir como criador). A finitude, marcada pela temporalidade, é a real condição humana, resultante da reflexão do Dasein sobre sua situação no mundo, assinalada pela contingência de seu nascimento (pasado) e pela inelutabilidade da sua morte (futuro). Destarte, o Dasein é possibilidade (futuro), mas sempre dependente de sua memória (pasado). “A existência é em si, enquanto modo de ser, finitude e, enquanto tal, é apenas possível com base na compreensão [ekstasis] do ser” (K, 2019, § 41, p. 229). Reis (2020, p. 88) afirma que “a finitude humana deve ser reconhecida na estrutura finita da compreensão de ser”. Dessa maneira, existênca é finitude e a existência do Dasein é a sua finitude. Para Heidegger “mais originário que o homem é a finitude do Dasein nele” (K, 2019, § 41, p. 229). A finitude arranca o Dasein do infinito totum de possibilidades imeditas que se lhe apresentam, trazendo-o para a simplicidade do seu envio.

Entretanto, Heidegger identifica em Kant uma concepção de finitude que não possui uma relação com a morte (temporalidade), ao afirmar que a essência da sensibilidade consiste na finitude da intuição (K, 2019, § 16 e § 31). Diferentemente de Deus, que possui a intuição originária (intuitus originarius), criando seus próprios objetos, o homem tem apenas a intuição derivada (intuitus derivatius), não sendo capaz de criá-los. Em Kant, o que não é finito, não é dado no sensível, uma vez que a finitude é a condição do sensibilidade. “Da finitude do homem faz parte a sensibilidade no sentido da intuição receptiva” (K, 2019, § 31, p. 177). Devido a nossa finitude, temos a sensibilidade e os órgãos sensoriais para receber as intuições dos objetos. Quanto à concepção de finitude kantiana, Loparic (1992) lembra que a razão humana é finita porque seu uso legítimo é restrito ao território da experiência possível, por ela é discursiva, temporalizada e para controlar a experiência precisa lançar-se em busca do universal contanto apenas com regras heurísticas e, finalmente,  porque não pode nem achar nem inventar conceitos determinados para caracterizar certos traços de formas intuitivas, de seres organizados e da natureza no seu uso. Ressalta-se que na exegese heideggeriana, a finitude deixar de estar vinculada a uma questão teológica.

“A finitude consiste em receber aquilo que se dá. O que aí se dá e como se dá permanece em aberto” (K, 2019, § 29, p. 155). E essa finitude não está simplesmente associada à razão humana pura, mas a sua finitude é finitização, ou seja, “cuidado” pelo poder-ser-finito (Heidegger 2019).

 

A razão humana não é apenas finita porque coloca as mencionadas três perguntas, mas, pelo contrário, ela coloca estas perguntas porque é finita; e de tal modo finita que, no seu ser-razão, se trata dessa finitude ela mesma. É porque estas três perguntas interrogam esta única, a finitude, que “se deixam referir” à quarta: que é o homem? (...) Enquanto tal pergunta, ela não apenas está corretamente colocada depois das três primeiras, mas transforma-se na primeira que dispensa a partir de si as três restantes (K, 2019, § 38, p. 218-219).

 

Heidegger (2019) conclui que a fundamentação da metafísica se funda na pergunta sobre a finitude do homem, que só agora pode se tornar problema. Nessa perspectiva, a fundamentação da metafísica é dissolução (analítica) do conhecimento, ou seja, do conhecimento finito nos seus elementos, o “estudo da nossa natureza interior” segundo Kant (Heidegger 2019). Heidegger (2019) complementa que se trata de problematizar a natureza interna “do nosso” si-mesmo enquanto finitude no homem. Ratifica-se que o sentido interno puro (tempo), que se acolhe a partir de si, é autoafecção pura, ou seja, é o tempo originário, e o tempo originário constitui a própria imaginação. “Tal como a imaginação, o tempo é um dos elementos que revela a finitude do sujeito, bem como a determinação intuitiva do seu modo de conhecer” (Bento 2017, p. 132). Na primeira edição da KrV, a imaginação foi definida como sendo a faculdade da síntese em geral (Heidegger 2019). A faculdade da imaginação e a intuição formal podem assumir o mesmo significado na KrV: “a imaginação é a faculdade de representar um objeto, mesmo sem a presença deste na intuição” (KrV B 151). Na acepção kantiana a imaginação é a presentificação do ausente. Para Heidegger “se a imaginação transcendental enquanto faculdade formativa pura forma em si, isto é, faz brotar o tempo, então já não há que contornar-se a tese acima enunciada: a imaginação transcendental é o tempo originário” (K, 2019, § 34, p. 190). “Mas esta sequência de agoras [o tempo] não é de modo nenhum o tempo na sua originariedade. É antes a imaginação transcendental, que faz surgir o tempo como sequência de agoras e é por isso, ao fazê-lo surgir, o tempo originário” (K, 2019, § 32, p. 180). Dessa maneira “o tempo original possibilita a imaginação transcendental, a qual é em si essencialmente receptividade espontânea e espontaneidade receptiva” (K, 2019, § 35, p. 199). Para Silva (2013), o tempo originário constitui o fundamento oculto da metafísica no interior da KrV, emergido pela destruição fenomenológica como possibilidade de uma compreensão ontológica prévia na base do acesso ao ente. Entretanto, embora muito próximos, a concepção de originário na KrV corresponde ao que está no fundamento, prévio a qualquer síntese ou conceito.

Não obstante haja leituras e interpretações onto-fenomenológias da KrV, contraconsenso há perspectivas que rejeitam completamente a hermenêutica dada por Heidegger a Kant, sobreudo quanto ao sentido e alcance do termo imaginação, que na ótica heideggeriana tem no tempo originário, autoafeção pura, apercepção e finitude seus correlatos.

Na esteira de Heidegger, Fichant (1999), numa exegese fenomenológica da KrV, concebe que a estética transcendental só pode ser compreendida a partir da síntese da imaginação, dado que toda e qualquer unidade pressupõe uma síntese, operada pela intuição formal (diferente da forma da intuição, que oferece o múltiplo, a intuição formal, ou seja, a imaginação, resulta da síntese do múltiplo, oferecendo uma unidade, determinando o espaço-tempo). Para Fichant:

 

A relativa pobreza das indicações dadas por Kant sobre essa necessária eidética do espaço intuitivo não deve nos impedir de lhe reconhecer uma autenticidade fenomenológica, que a Estética transcendental indica em pontilhado como uma tarefa que ela não tinha os meios de realizar plenamente (Fichant 1999, p. 32)

 

Na contramão de Fichant (1999), que define a imaginação como sendo o fundador da unidade de espaço, Allais (2015) propõe uma leitura conceitualista da estética transcendental, a qual não confere papel preponderante à síntese da imaginação ou síntese da atividade. Para Allais (2015) a estética transcendental é completa por si mesma, não sendo necessário a síntese da imaginação ou síntese do entendimiento. Para ela, a representação (Vorstellung) é uma presentação imediata, de um singular, por onde o objeto é dado e, por ser imediata, a representação é uma presentação (Allais, 2015).

            Diferentemente de Fichant (1999), Longuenesse (2000, 2005) não se fundamenta na fenomenologia para sua hermenêutica kantiana, mas sim nos conceitos. Para Longuenesse (2000, 2005) não só a unidade, mas também a unicidade da intuição se dá pela síntese da imaginação (síntese especiosa da imaginação). Segundo a autora a interpretação por ela proposta difere tanto da resposta de Heidegger que afirma ser a imaginação a “raíz comum” da sensibilidade e do entendimento, quanto da resposta de Cassirer, que intelectualiza a sensibilidade (Longuenesse 2005). Allison (2000) estabeleceu uma crítica à interpretação da “forma da intuição” e “intuição formal” dada por Longuenesse (2000). Segundo Allison (2000) Longuenesse asume a posição de que o espaço e tempo kantianos são, eles próprios, produtos da síntese da imaginação. Contudo, a intuição pura espaço-tempo constitui o resultado da síntese que Kant descreve como sendo um “efeito” (Wirkung) do entendimento sobre a sensibilidade (Allison 2000).

Pereira (2021) argumenta que é possível uma leitura fenomenalista e, portanto, metafísica da Crítica da razão pura, sob vários ângulos (fenomenalismo ontológico, fenomenalismo semântico, fenomenalismo analítico, fenomenalismo epistemológico), sem, contudo, reduzi-la a uma ontologia. O autor adverte que para Kant a aparência é mera representação. A aparência é representação apenas na medida em que tomamos “aparência” no sentido empírico e quando tomamos “representação” no sentido transcendental (Pereira, 2021).

Face às distintas interpretações da KrV, a exegese heideggeriana ainda permanece sólida devido, sobretudo, a sua originalidade e a construção das premissas que constituem a base de sua fundamentação, que goza de legitimidade. Heidegger (2019), de forma fundamentada, orignal, sem reduzir a Crítica à ontologia e sem fazer uma leitura não pós-kantiana ou anti-neokantiana, estabeleceu uma correlação entre apercepção, tempo originário e imaginação, fundado na ressignificação da finitude em Kant.

A finitude passa a ser a principal causa e razão de ser da inserção da pergunta sobre o homem nas interrogações sobre as condições de possibilidades. É na finitude que estão os verdadeiros sinais ou ecos da antropologia filosófica kantiana. É ela que proporciona a anterioridade, simultaneidade e sucessividade da inserção da pergunta “o que é o homem” face às três questões fundamentais kantianas.

 

Considerações finais

A interpretação heideggeriana em Crítica da razão pura parte da estética transcendental, ciência de todos os princípios da sensibilidade a priori, com as formas espaço e tempo enquanto intuições puras, direciona-se para a lógica transcendental, com a analítica e dialética transcendental, faz uma parada na doutrina transcendental do método e, finalmente, parece retornar ao status quo. Nesse movimento e percurso, Heidegger não hesita em privilegiar a forma do sentido interno, o tempo, ou seja, a intuição de nós mesmos e do nosso estado interior. É no tempo e com o tempo que Heidegger encontra um locus para repousar o conceito de autoafecção pura, tempo originário e reestabelecer a imaginação transcendental. Todos esses conceitos, tomados como quase sinônimos numa abordagem ontológica, culminam na finitude do ser, ratio do perguntar “o que é o homem”.

As perguntas e respostas sobre as questões kantianas (que posso saber? que devo fazer? que me é permitido esperar?) corresponderiam a interrogações sobre a finitude do ser. Dessa forma, é somente sobre a perspectiva da finitude (da verdade e do ser) que a questão antropologia (que é o homem?) surge com consequência necessária das três questões anteriores.

Nesse sentido, o interrogar sobre a cosmologia ou metafísica, a psicologia ou moral, a teologia ou religião, é um interrogar sobre a finitude do homem. E o interrogar sobre a finitude do homem é o interrogar sobre o que posso saber, o que devo fazer, o que me é permitido esperar, ou seja, um perguntar sobre as condições sine qua non kantianas.

Como o homem é finitude na sua essência, a pergunta sobre o que é o homem é tanto causa quanto consequência necessária das três interrogações kantianas. Se apresenta tanto como consequência delas quanto como pressuposto das suas existências. Nesse contexto, emerge a inovação heideggeriana sobre as interrogações kantianas: a questão antropológica, praemissa venia, poderia ter sido um ponto de partida e não um ponto de chegada para a fundamentação metafísica da Crítica da razão pura.

A finitude do homem, a consciência dessa finitude no seu caráter temporal e a finitização, isto é, o cuidado pelo poder-ser-finito, constituem a condição imprescindível para a inserção e primazia da questão antropológica, expandindo o rol de perguntas no numerus clausus kantiano.

 

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· Professor doutor e pesquisador do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais (IFSULDEMINAS), Campus Inconfidentes. E-mail : marcgeo10@yahoo.com.br