Hölderlin, leitor de Kant

 

Hölderlin as a reader of Kant

 

 

Sílvia Bento·

Universidade do Porto, Portugal

 

 

Resumo

O presente ensaio pretende estudar a influência da filosofia de Kant no âmbito dos escritos poetológicos de Hölderlin sobre as tragédias de Sófocles Rei Édipo e Antígona, Anmerkungen zum Oedipus e Anmerkungen zur Antigone. O tratamento dos conceitos centrais elaborados por Hölderlin, tais como Gottes Fehl e kategorische Umkehr – que forma o núcleo deste ensaio – apresenta-se desenvolvido segundo o quadro filosófico kantiano. É nosso propósito interpretar a especificidade da leitura hölderliniana de Kant, especialmente do seu carácter não-reconciliatório e não-monista, e diferenciá-la da filosofia posterior do Idealismo Alemão (principalmente de Hegel e de Schelling). A análise de “Hölderlin et Sophocle” de Jean Beaufret e de “Métaphrasis” de Philippe Lacoue-Labarthe constitui o nosso ponto de partida teórico.

 

Palavras-chave

Hölderlin; Kant; Gottes Fehl; kategorische Umkehr.

 

Abstract

This paper intends to study the impact of Kant’s philosophy on Hölderlin’s poetological writings devoted to Sophocles’ tragedies Oedipus and Antigone, Anmerkungen zum Oedipus and Anmerkungen zur Antigone. The treatment of Hölderlin’s chief concepts, such as Gottes Fehl and kategorische Umkehr, which forms the heart of this paper, is developed according to the Kantian philosophical framework. We propose interpreting the specificity of Hölderlin’s reading of Kant, especially its non-reconciliatory and non-monist character, and differentiate it from the subsequent philosophy of German Idealism (namely Hegel and Schelling). The analysis of “Hölderlin et Sophocle” by Jean Beaufret, and “Métaphrasis” by Philippe Lacoue-Labarthe is our starting point.

 

Keywords

Hölderlin; Kant; Gottes Fehl; kategorische Umkehr.

 

 

 

 

Introdução

 

As seguintes palavras de Jean Beaufret, escritas em “Hölderlin et Sophocle” (1965), constituem o mote perfeito para o desenvolvimento do presente ensaio:

 

Um tel rapport de Hölderlin à Kant, resté lui-même secret à la philosophie, est chronologiquement antérieur au développement de l’idéalisme allemand que vont cependant porter si haut les deux compagnons de jeunesse que furent, pour Hölderlin, Hegel et Schelling (Beaufret 1965, p.26)

 

Hölderlin e Kant: eis a aliança filosófica sublinhada por Beaufret. O contexto de tal proposta poderá, não obstante, soar estranho: trata-se de um escrito no âmbito do qual o germanista procura delinear os fundamentos filosóficos da teoria da tragédia de Sófocles tal como desenvolvida por Hölderlin. É, pois, no contexto das Notas de Hölderlin em torno de Rei Édipo (Anmerkungen zum Oedipus) e Antígona (Anmerkungen zur Antigone), as duas tragédias sofoclianas que o poeta alemão traduziu nos primeiros anos do século XIX (e que foram publicadas em 1804), que Beaufret encontra os vestígios de uma aproximação filosófica entre Hölderlin e Kant. Mais do que isso: em boa verdade, Beaufret pretende sustentar que o elemento filosófico presente em Hölderlin é, sem mais, kantiano – e que a singularidade da influência de Kant em Hölderlin se afigura profundamente distinta, porque cronologicamente anterior, dos modos de interpretação de Kant segundo o idealismo que se lhe seguiu, nomeadamente o de Schelling e de Hegel.

Este último ponto requer especial atenção: como compreender a singularidade da influência de Kant sobre o pensamento e a obra de Hölderlin? A resposta avançada por Beaufret convoca a teoria da tragédia desenvolvida pelo poeta alemão, tal como presente nos textos poetológicos que acompanham as traduções de Rei Édipo e Antígona, as Sophokles-Anmerkungen, compostas pelas já mencionadas Anmerkungen zum Oedipus e Anmerkungen zur Antigone. Se o idealismo de Schelling e de Hegel seguira o rumo de uma aspiração de reconciliação, de pendor unificador e  monista, das linhas de pensamento estruturantes da filosofia kantiana, a visão de Hölderlin em torno da tragédia – que repousa, com efeito, sobre fundamentos filosóficos explícitos – integra uma relevante e contínua dedicação às consequências metafísicas da Crítica da Razão Pura, decorrentes, por sua vez, do estabelecimento da distinção entre fenómeno e númeno e da correlativa determinação dos limites do conhecimento humano. É, assim, a Crítica da Razão Pura de Kant – com a devida consideração da intensidade dos seus dualismos e divisões, tal como sublinhados por Dieter Henrich em Between Kant and Hegel (2003) – que constitui a base filosófica das posições de Hölderlin em torno da tragédia de Sófocles e do seu herói mais importante, Édipo. Mas, neste ponto, importaria elucidar o seguinte: Édipo é, aos olhos de Hölderlin, o arquétipo do homem moderno, perspectivado sob uma luz filosófica que é, toda ela, kantiana.

Também Philippe Lacoue-Labarthe, um dos mais reputados estudiosos do Frühromantik no contexto cultural de língua francesa, se debruça sobre a teoria da tragédia desenvolvida por Hölderlin nas Sophokles-Anmerkungen, salientando o quadro filosófico kantiano que a envolve e a determina. Em “Métaphrasis”, o primeiro de dois ensaios publicados sob o título Métaphrasis suivi de Le théâtre de Hölderlin (1998), Lacoue-Labarthe esclarece o sentido da hybris trágica de Édipo, o mais filosófico dos heróis (o decifrador de enigmas), tal como teorizada por Hölderlin: a falta trágica, a hybris, consiste, pois, na transgressão dos limites da condição humana finita – num sentido kantiano, justamente. O problema da tragédia de Édipo é um problema filosófico, e que deverá ser compreendido à luz da “transgression des limites de la condition finie de l’homme qu’avait établies, ou reconnues, Kant” (Lacoue-Labarthe 1998, p.15). Trata-se, numa palavra, de uma transgressão que somente poderá ser plenamente perspectivada como transgressão metafísica; ou, segundo a expressão de Lacoue-Labarthe, “outrance métaphysique” (Lacoue-Labarthe 1998, p.15).

Eis o propósito do presente ensaio: a partir da leitura dos textos de Beaufret e de Lacoue-Labarthe, delinear uma tentativa de interpretação do elemento filosófico kantiano nas teorizações de Hölderlin em torno de Rei Édipo e de Antígona, tal como expostas nas Anmerkungen, escritas pelo poeta no momento em que se dedicara a traduzir as tragédias. Uma advertência prévia, relativamente ao hermetismo da linguagem e dos conceitos utilizados por Hölderlin, deverá ser, aqui, formulada: este ensaio propor-se-á oferecer uma modesta análise das noções, expressões e perspectivas hölderlinianas que poderão constituir matéria de convocação do pensamento de Kant, não pretendendo sustentar a hipótese de um Hölderlin kantiano nem a existência de uma afinidade teórica decisiva e absoluta entre o poeta e o filósofo. A figura de Hölderlin, ainda demasiado velada a nossos olhos, não se apresenta passível de tais intentos. Tal seria possível com Schiller, sempre explicitamente kantiano, não reservando quaisquer segredos para os seus intérpretes filósofos… mas Hölderlin parece pertencer a uma outra constelação espiritual, que dificilmente conseguimos designar de modo claro e definitivo.

 

 

 

Hölderlin, o Frühromantik e o problema da concepção analítica da razão

 

A apreciação da influência do quadro filosófico kantiano no âmbito da obra poética e teórica de Hölderlin assume-se de crucial importância para Manfred Frank. No brilhante estudo Der kommende Gott. Vorlesungen über die Neue Mythologie (1982), Frank procura pensar a emergência do Frühromantik à luz de uma postura filosófico-estética que se propunha contrária à predominância de uma concepção analítica da razão. A tomada de consciência por parte dos Primeiros Românticos relativa ao domínio de uma razão analítica, limitada na sua capacidade de pensar supostos fundamentos metafísicos segundo uma lógica especulativa substancialista, impõe-se como problemática filosófica no âmbito do Frühromantik. O título da obra de Frank invoca, de modo explícito, Hölderlin e a sua elegia Brot und Wein: a necessidade de uma nova mitologia – o deus que há-de vir, der kommende Gott (tal como Hölderlin escreve no seu poema) – decorre, pois, do confronto romântico com a filosofia kantiana e com a configuração de uma razão limitada na sua capacidade de pensar fundamentos metafísicos enquanto determinações constitutivas. A expressão der kommende Gott traduziria, neste sentido, uma nova ânsia por um novo Absoluto, fundacional e legitimador do pensamento e da vida dos seres humanos em comunidade, partindo da avaliação crítica de um quadro cultural que o próprio Hölderlin definira como marcado pela ausência de deus, Gottes Fehl. A crise do fundamento – eis a temática sustentada por Frank para perspectivar a herança kantiana enquanto problemática filosófica de Hölderlin e dos seus contemporâneos.

A proclamação da necessidade de uma Nova Mitologia, tal como desenvolvida por Hölderlin e pelo Frühromantik, delineia-se na sombra da velha querelle des anciens et des modernes, reformulada no âmbito do universo cultural alemão de finais do século XVIII e inícios do século XIX. A Nova Mitologia, tão ansiada pelos Românticos enquanto valor supremo e fundacional do pensamento e da vida em sociedade, integra, assim, a convocação dos Antigos e dos seus mitos, manancial cultural, artístico, poético e, não menos importante, educador e formador do ser humano – no sentido de Bildung, justamente. Diríamos, pois, que, no contexto do Frühromantik, a querelle “antigos vs. românticos” desdobra-se numa problematização crítica em torno de Bildungen distintas, a paideia grega e a Bildung moderna; em boa verdade, o modo como o Frühromantik se pensa a si mesmo, ao seu tempo cultural e às suas potencialidades artísticas e poéticas radica, de modo invariável e insistente, num contínuo confronto com a Antiguidade grega[1]. Por conseguinte, e seguindo as elucidações de Frank, importaria compreender a centralidade da temática do mito no interior do Frühromantik como móbil de teorização acerca da modernidade enquanto tal e, correlativamente, do seu carácter distintivo face à cultura grega antiga: o elemento mítico, tal como teorizado pelos Românticos, alicerça-se sobre uma concepção cultural que procuraria refundar a filosofia moderna, partindo da consciência crítica da prevalência de uma concepção analítica da razão que delineara, por sua vez, uma nova metafísica (ou seria mais correcto, anti-metafísica?) traçada na ausência de qualquer fundamentação ontológica. A unidade metafísica dos antigos – a unidade fundamental do ser –, de que a mitologia se anuncia como expressão cultural e artística, dá lugar, no seio da modernidade, à cisão, à separação, à divisão, ao fragmento e, por fim, à carência de um fundamento supremo, seja ele mítico, seja ele religioso. Por sua vez, a aspiração de uma nova mitologia traduziria, para os Românticos, a expressão utópica de um novo absoluto, que a modernidade não se afiguraria capaz de reconhecer ou de elaborar para si mesma. Cite-se Frank a este respeito:

 

“Fundamentado” significa, aqui, derivado de algo, não no sentido de uma simples relação causal como nas ciências da natureza, mas no sentido de uma justificação. Mas “justificar algo” ou (como os Românticos gostavam de dizer) “legitimar algo” significa: relacioná-lo a um valor indiscutível para os seres humanos. E entre os seres humanos (de uma mesma população), o único elemento indiscutível num sentido radical é apenas aquilo que é considerado sagrado – incontestável, omnipresente, omnipotente. (Frank 2015, p.11)[2]

           

Tenha-se presente o modo como Frank alude à necessidade de recusar qualquer concepção provinda dos modos de causalidade natural enquanto quadro de pensamento passível de acolher, integrar e desenvolver o elemento fundacional, o mito. A alusão apresenta-se, pois, formulada sob o signo da recusa, ou da impossibilidade – o mesmo poderia ser dito acerca da razão analítica, inexorável herança filosófica kantiana com a qual o Frühromantik se confronta. O ensaio Iduna, oder der Apfel der Verjüngung de Herder, publicado em 1796 na revista Die Horen, dirigida por Friedrich Schiller, apresenta-se mencionado por Frank como um dos primeiros textos do Frühromantik a integrar a proclamação da exigência de uma Nova Mitologia fundacional, perspectivada por Herder à luz de uma concepção declaradamente estética e poetológica; do mesmo modo, o enigmático escrito Das ällteste Systemprogramm des deutschen Idealismus (ou simplesmente Systemprogramm, tal como é corrente designá-lo nos meios germanísticos), possivelmente escrito entre 1796 e 1797 e da autoria conjunta de Schelling, Hegel e Hölderlin, constitui objecto de estudo por parte de Frank, que o concebe como o texto que alia à (já existente) concepção estética e poetológica de Herder o sentido político-comunitário que deveria sustentar a necessidade de desenvolvimento de uma Nova Mitologia.

Não obstante, o elemento teórico mais relevante de Systemprogramm, constituindo a conclusão do misterioso escrito, consiste na proposta da beleza e da poesia como solução reconciliadora de todas as separações e divisões que a modernidade desenvolvera e reconhece como suas, expressando uma nova utopia filosófica, estética e social que se afiguraria formulada à luz da consideração da mitologia enquanto religião sensível – tal como acontecia com os gregos. A poesia – sustentada numa Nova Mitologia – anunciar-se-ia, pois, na sua possibilidade de encontrar uma fundamentação simbólica para a razão analítica, voltando a ser aquilo que fora na antiguidade grega: a mestre da Humanidade. Uma vez alcançado este ideal, a poesia, alicerçada num novo manancial de mitos, recuperaria a sua maior dignidade. Eis a função fundacional da poesia, tal como concebida pelo Frühromantik, no momento da ausência de legitimação da razão analítica. Tal como sublinham insistentemente os Românticos, a poesia necessita da mitologia – tal como acontecera na antiguidade grega; uma poesia que não repouse sobre nenhuma mitologia será, tão-somente, uma poesia débil. Tal projecto estético – ou, porventura, tal utopia estética –, assim desenhada pelos Primeiros Românticos, concerta-se, de modo íntimo, com a teorização cuidada acerca da modernidade, dos seus fundamentos e princípios, e das suas potencialidades filosóficas e poéticas. Trata-se da modernidade pensando-se a si mesma, segundo um gesto que lhe é definidor: a auto-reflexividade.

 

 

 

Uma filosofia da tragédia: em torno das expressões Gottes Fehl e kategorische Umkher

 

Se o panorama filosófico e cultural que sucede a Kant – nomeadamente o Frühromantik e o designado Idealismo Alemão – se caracteriza por um intento marcadamente reconciliador e unificador das separações e divisões presentes na filosofia kantiana, importaria, em todo o caso, tomar em atenção uma interessante excepção: trata-se, pois, de Hölderlin, o poeta que, em determinados momentos da sua obra literária e teórica, procurara pensar a filosofia de Kant sem dela fazer decorrer nenhum corpus filosófico de orientação reconciliadora ou unificadora. É esta a proposta que a análise de Jean Beaufret das Sophokles-Anmerkungen de Hölderlin – que poderemos ler como uma tentativa de delineamento de uma filosofia da tragédia – pretende oferecer e sustentar.

No ensaio “Hölderlin et Sophocle” (que acompanha a edição francesa (1965) das notas sobre Rei Édipo e Antígona de Hölderlin), Beaufret procura reconstituir as linhas de pensamento estruturantes de uma teoria da tragédia desenvolvida pelo poeta alemão. Antes de avançar, haveria que ter presente que Hölderlin, aquando da elaboração das traduções das duas tragédias mais célebres de Sófocles, se encontrava, ele mesmo, a escrever a sua tragédia moderna, Der Tod des Empedokles, drama inacabado que fora objecto de três versões diferentes entre 1797 e 1800[3]. No mencionado ensaio – cujo título salienta, de modo claro, o diálogo que Hölderlin mantém com a obra de Sófocles –, Beaufret esclarece o carácter excepcional das tragédias sofoclianas para o poeta alemão: é, pois, nas tragédias de Sófocles que Hölderlin encontra a marca da ausência de deus – ou, segundo a expressão original presente no último verso do poema Dichterberuf, Gottes Fehl.

Neste sentido, e tal como elucida Beaufret, a teorização sobre a tragédia desenvolvida por Hölderlin decorre ao longo de um intenso diálogo com Sófocles, exclusivamente Sófocles, o poeta trágico que colocara no centro da sua obra o elemento enigmático que envolve a linha de separação, o limite, a fronteira entre os deuses e os seres humanos – uma linha de separação em direcção à qual o herói trágico se lança e se aventura, violando-a fatalmente, e cometendo, assim, a hybris trágica, inteiramente derivada da tentativa (excessiva, no sentido eminentemente trágico) de superação da sua condição mortal e de afirmação-de-si como um deus, isto é, um ser ilimitado (pensemos em Édipo, em Antígona, em Creonte…). A excepcionalidade que Hölderlin encontra em Sófocles – e que parece invocar a tese de Aristóteles acerca da excelência do poeta[4] – não poderá ser antecipada na obra de, por exemplo, Ésquilo, cujas tragédias representam a superação ou extravasamento dos limites tendo como fim o retorno à ordem cósmica e divina que expia toda a hybris; tal não acontece em Sófocles, pois, nas suas tragédias, tal como lidas por Hölderlin, é o próprio limite que se dissimula, que se eclipsa, permitindo que o herói se lance, perigosamente, numa zona de indistinção (entre o humano e o divino) na qual acaba por perder-se – e tal ocorre no exacto momento em que aquele, o herói, proclama ser mais do que humano, isto é, deus. A este propósito, Beaufret cita o início da terceira parte de Anmerkungen zum Oedipus (optamos por recorrer à tradução francesa de François Fédier, tal como seguida por Beaufret):

 

La présentation du tragique repose principalement sur ceci que le formidable, comment le dieu-homme s’accouple, et comment, dans l’effacement de toutes limites, deviennent un, dans la fureur, la puissance panique de la nature et le tréfonds de l’homme, se conçoit par ceci que le devenir-un illimité se purifie par une séparation illimitée. (Hölderlin 1965, p. 63)

 

Uma das virtudes do ensaio de Beaufret consiste na apreciação cuidada da elaboração filosófica – e de toda a trama conceptual – que determina as Sophokles-Anmerkungen de Hölderlin. Neste sentido, o germanista elege a noção kategorische Umkher, o desvio categórico[5] (dos deuses em relação aos humanos), presente nas Anmerkungen zum Oedipus (Hölderlin 1965, p.65), como elemento central da teorização em torno de Rei Édipo. O confronto entre Édipo e os deuses, no âmbito do qual o herói se assume na sua hybris de superação da condição humana – Édipo é o sábio, o decifrador de enigmas e, ao mesmo tempo, o herói sem deus, o herói ateu – deverá ser lido à luz de um movimento de afastamento, de distanciamento, de retirada dos deuses em relação aos homens, em relação ao próprio Édipo. Trata-se do momento em que os deuses desviam o seu rosto dos humanos, deixando de contemplá-los, e instaurando, assim, a noite, a escuridão e o luto – tal como Hölderlin escreve na sua elegia Brot und Wein (poema em torno do qual poderíamos debruçar-nos ad infinitum): “Quando o Pai desviou dos humanos seu olhar” (Hölderlin 2021, p.400). A envolvência trágica de Édipo é, sem mais, inteiramente moderna – Édipo é o herói trágico moderno, ou, segundo as palavras de Hölderlin, hespérico, ocidental, isto é, não-grego.

A expressão kategorische Umkher, que marca as Anmerkungen zum Oedipus – integrando uma carga semântica e metafísica muito próxima da de Gottes Fehl (não esqueçamos, pois, a proximidade cronológica e, inclusivamente, temática, entre a poesia tardia de Hölderlin e as Sophokles-Anmerkungen) – dificilmente poderá ser lida sem pensar na possibilidade de uma alusão ao imperativo categórico kantiano. Beaufret sublinha tal afinidade de conceitos, deliberadamente introduzida por Hölderlin, procurando sustentar a relevância estruturante da filosofia kantiana na teorização hölderliniana da tragédia de Sófocles. A este respeito, Beaufret serve-se de todos os vestígios presentes na correspondência de Hölderlin que poderiam apresentar-se passíveis de confirmação do fascínio e da adoração do poeta alemão por Kant e pela sua filosofia. Leia-se, primeiramente, um extracto da carta de Hölderlin a Neuffer, datada de inícios de Dezembro de 1795: “pour l’instant, j’ai de nouveau cherché refuge auprès de Kant, comme je le fais toujours quando je ne puis me souffrir” (Beaufret 1965, p.17). E, de modo ainda mais enfático, importaria ler uma passagem da carta a Karl Gock, datada de 1 de Janeiro de 1799, na qual consta a célebre expressão hölderliniana acerca de Kant como o Moisés da nossa nação:

 

Kant est le Moïse de notre nation ; il l’a tirée de l’engourdissement égyptien et l’a conduite dans le libre désert de sa spéculation, il a ramené de la montagne sainte la loi qui est vigueur. Sans doute continuent-ils toujours à danser autour de leurs veaux d’or et leur pot-au-feu leur manque beaucoup ; ils devraient bien émigrer dans le plein sens du mot, gagner une solitude quelconque pour se décider à cesser d’être les serviteurs de leur ventre et à abandonner les costumes et opinions mortes, privées d’âme et de sens, sous lesquelles gémit presque inaudible, et comme profondément incarcéré, ce que leur nature vivante a de meilleur. (Beaufret 1965, pp.17-18)

 

Este é um dos pontos fundamentais do ensaio de Beaufret. Segundo o germanista, a lei kantiana, invocada por Hölderlin e tomada como análoga da lei mosaica, não poderá deixar de ser avaliada como uma expressão que remete para o imperativo categórico kantiano. A revelação de tal imperativo traduz um apelo à nossa “sobriedade nativa” (Beaufret 1965, p.18), assinalando a impossibilidade de o ser humano se servir de uma pretensa razão intuitiva, não somente no plano epistemológico e do conhecimento da natureza (pois este mesmo conhecimento é discursivo, repousando sobre conceitos e, como tal,  privado de um qualquer sentido de intuição intelectual ou original dos objectos), mas também no âmbito da moralidade e da religião (no âmbito das quais o conceito de deus se afigura como um postulado prático, nunca como entidade passível de uma visão empírica, nem sequer como conteúdo de conhecimento teórico). As linhas de pensamento fundamentais da Crítica da Razão Pura, assim como a Crítica da Razão Prática, deveriam ser aqui justamente convocadas. Para ilustrar tais considerações, Beaufret recorre à carta de Kant dirigida a Hamann, datada de 6 de Abril de 1774: a moral kantiana destrói as ilusões humanas de “entender a linguagem da razão intuitiva” (Beaufret 1965, p.18), uma linguagem que, tal como Kant escreve, é própria dos deuses – é, com efeito, “a linguagem dos deuses” (Beaufret 1965, p.18) –, e não dos “filhos da terra” (Beaufret 1965, p.18), que somos nós. A respeito da impossibilidade do uso humano de uma razão intuitiva, ou de um modo de intuição intelectual não vinculado à experiência empírica, recordemos as palavras de Kant nas últimas páginas da “Estética Transcendental” da Crítica da Razão Pura:

 

Não é também necessário restringir à sensibilidade do homem este modo de intuição no espaço e no tempo; pode acontecer que todo o ser pensante finito tenha de concordar necessariamente, neste ponto, com o homem (embora não possamos afirmá-lo decisivamente); apesar desta universalidade, este modo de intuição não deixa de ser sensibilidade, justamente por ser intuição derivada (intuitus derivativus) e não original (intuitus originarius); não é, portanto, intelectual, como aquela que, pelo fundamento acima exposto, parece só poder competir ao Ser supremo, nunca a um ser dependente, tanto pela sua existência como pela sua intuição. (KrV B 72: 72.29-37; 86-87)[6]

 

A interpretação de tal influência kantiana à luz da expressão kategorische Umkerh de Hölderlin conquanto possa soar inicialmente desconcertante, não se apresenta destituída de um certo sentido de justeza filosófica. Pois, tal como assinala Beaufret, a moral kantiana é privada de toda a teofania: não há lugar para a visão de Deus (eis a impossibilidade do uso de uma pretensa razão intuitiva, ou do recurso à linguagem dos deuses por parte dos seres humanos). A lei kantiana (o imperativo categórico) ilustraria, assim, num plano filosófico, o sentido poético das teorizações de Hölderlin em torno do afastamento, do retraimento, ou da retirada do divino face ao humano – o desvio categórico dos deuses relativamente aos seres humanos. O divino, não mais passível de plena apresentação ou revelação, somente se manifesta ao humano através da ausência, ou da impossibilidade da “representação intuitiva” (Beaufret 1965, p.19), isto é, da impossibilidade de uma pretensa intuição directa e imediata do divino. A moralidade kantiana encontra-se, aqui, plenamente inscrita, ainda que de modo obscuro: a impossibilidade de uma representação intuitiva do divino concerta-se com a configuração de uma moralidade – fundada sobre a lei moral, perspectivada em relação com o sentimento de respeito pela mesma, manifestação da condição racional finita do ser humano – que não integra nem requer uma metafísica que afirme, num sentido especulativo, a existência de um ente superior ao ser humano enquanto ser livre, pois, como bem sabemos, toda a moralidade repousa sobre a autoridade da razão – ou da lei. A linguagem de Hölderlin, eminentemente poética, traduz um pathos que a filosofia crítica de Kant não partilha – todavia, tal não parece inviabilizar nem destruir a perspectivação acerca da existência de uma tonalidade kantiana presente nos poemas de maturidade, assim como na filosofia da tragédia, de Hölderlin.

Mas como inserir Édipo, o herói que Hölderlin perspectiva como sendo arquetipicamente moderno (e já não antigo), no âmbito de tais considerações? Segundo Beaufret, a figura mítica de Édipo assinala a transgressão dos limites do conhecimento humano – a outrance métaphysique, como a designará Philippe Lacoue-Labarthe lendo o ensaio de Beaufret –, desrespeitando a distinção entre fenómeno e númeno e o carácter imaculado – porque inteiramente prático, nunca teórico – do elemento supra-sensível. Trata-se, pois, da impossibilidade de unidade e de reconciliação (entre seres humanos e deuses), filosoficamente compreendida à luz de uma transgressão plenamente metafísica, cumprida pelo mais filosófico dos heróis trágicos, o decifrador de enigmas. Tais considerações hölderlinianas em torno de Édipo, assim lidas a uma luz kantiana, poderão parecer demasiado insólitas, mas o centro da nossa atenção deverá deter-se nas seguintes elucidações avançadas por Beaufret: a influência da filosofia kantiana em Hölderlin traduz uma orientação que não se coaduna com os intentos reconciliadores do idealismo que sucede a Kant (referimo-nos especialmente a Schelling e a Hegel), pois, como bem observa Beaufret, a teorização de Hölderlin, ainda que não partilhe do brilhantismo filosófico dos seus contemporâneos, mantém-se fiel à exigência kantiana de tomar em boa consideração os limites do conhecimento humano – eis a temática do limite, capital nas considerações de Hölderlin sobre Rei Édipo –, não procurando eliminar as distinções radicais que se inscrevem na e que estruturam a filosofia de Kant. A leitura de Kant por parte de Hölderlin, conquanto se afigure marcada pela fragilidade filosófica e pela obscuridade cifrada, quase secreta, da linguagem e dos conceitos utilizados, traduz uma singularidade interpretativa que merece ser considerada e compreendida enquanto tal: antes das elaborações monistas do idealismo daqueles que sucederam a Kant, Hölderlin apresenta-se como um dos leitores mais fieis da filosofia kantiana, aquele que não procurara desenvolver um novo sistema filosófico dela decorrente, mas aplicá-la – preservando as suas linhas de pensamento estruturantes – a uma original filosofia da tragédia, a tragédia de Sófocles, concebendo-a como um prenúncio daquilo que é a modernidade e a sua complexidade metafísica.

Neste ponto, seria pertinente esclarecer, em jeito de breve excurso, o nosso modo de interpretação da filosofia kantiana, que é inteiramente devedor das posições de Dieter Henrich, tal como expostas em Between Kant and Hegel (2003): a leitura desenvolvida por Henrich em torno do pensamento de Kant apresenta como pedra de toque a insistência na sua dimensão dualista – não monista –, por contraste com o idealismo dos seus sucessores (especialmente Hegel). Com efeito, segundo o olhar de Henrich, o pensamento kantiano não partilha um sentido de afinidade com o idealismo que se lhe seguiu e que se arrogara da pretensão de se apresentar, a si mesmo, como modo perfeito de continuação ou resolução filosóficas do projecto kantiano: em Kant, sublinha Henrich, deparamo-nos com uma metafísica (expressão que Henrich utiliza, mau grado a sua envolvência controversa) profundamente dualista e marcada pela separação entre o elemento teórico e o elemento prático, o mundo sensível e o mundo inteligível, e totalmente privada de um fundamento total e unitário que se afiguraria como conceito-único de todo o pensar. O monismo dos idealistas que sucedem a Kant, alicerçado numa paixão espinosista, não constitui um prolongamento do pensar kantiano, mas, com efeito, uma outra metafísica que é, em última instância, estranha ao espírito do filósofo de Königsberg.

 

 

 

 


 

A figura da transgressão metafísica: em torno da modernidade de Édipo

 

No prefácio que abre a colectânea de ensaios intitulada Métaphrasis suivi de Le théâtre de Hölderlin (1998), o eminente germanista Philippe Lacoue-Labarthe dá-nos conta da quase inexistência de estudos académicos, filosóficos ou de outra ordem, dedicados à teoria da tragédia desenvolvida por Hölderlin. Com efeito, se a poesia de Hölderlin se constituíra como um objecto de aturada análise por parte dos seus leitores filósofos – pensemos nos incontornáveis comentários heideggerianos, qual névoa que obnubila Hölderlin, e que anulam qualquer possibilidade de perspectivar o diálogo mantido pelo poeta com a filosofia do seu tempo –, a sua teorização em torno da tragédia, tal como delineada nas Sophokles-Anmerkungen, permanece, por sua vez, ainda inexplorada e desconhecida.

Em “Métaphrasis”, o primeiro ensaio da mencionada colectânea, a atenção de Lacoue-Labarthe, leitor de Beaufret, centra-se, pois, na figura de Édipo e na sua relevância no âmbito da teorização hölderliniana. Se, após Freud, o Ocidente se sabe edipiano, importará esclarecer que, já nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, no período filosófico que convencionalmente designamos de idealismo alemão, tal herói mítico se constituía como um arquétipo – uma Gestalt (Lacoue-Labarthe 1998, p.10) – da humanidade moderna, ilustrando a figura filosófica do sábio, no sentido especulativo do termo. Édipo é, assim, o herói da metafísica – e tenhamos presentes as posições de Schelling e de Hegel[7] a seu respeito, ambas orientadas segundo uma visão do herói sofocliano enquanto representação da afirmação-de-si e da liberdade do humano face ao mundo objectivo ou ao poder superior do destino, uma liberdade que se torna autoconsciente no momento em que decifra o enigma da esfinge. O idealismo alemão, profundamente interessado em pensar a tragédia grega, desenvolve uma perspectivação de Édipo que tende a descrever o herói sofocliano como um arquétipo da consciência filosófica, que se sabe a si mesma e que se afirma na sua liberdade: Édipo como o sábio, ou o herói da metafísica. Ou, por outras palavras: Édipo como a personificação do triunfo do espírito.

A entrada de Édipo na filosofia é, pois, tardia, e acontece no âmbito do idealismo alemão de Schelling e Hegel. Não obstante, e tal como adverte Lacoue-Labarthe, a interpretação de Édipo desenvolvida por Hölderlin não poderá ser tomada como mais uma contribuição idealista, à maneira dos seus contemporâneos, tendente a traçar uma visão filosófica exaltante e enaltecedora do herói de Sófocles. Em Hölderlin, tudo se passa de outro modo: pois, para Hölderlin, Édipo não é o herói da metafísica, mas a sua “pura e simples vítima” (Lacoue-Labarthe 1998, p.12). Como compreender tal posição de Hölderlin? Segundo Lacoue-Labarthe, a pedra de toque da leitura de Édipo traçada por Hölderlin consiste na singularidade da hybris edipiana, uma hybris que poderia ser descrita, com total justeza, como uma hybris metafísica – da qual Édipo é culpado. Segundo a expressão lapidar de Lacoue-Labarthe, a falha de Édipo é uma “outrance métaphysique” (Lacoue-Labarthe 1998, p.15), um excesso trágico se caracteriza pela transgressão metafísica dos limites da condição finita do ser humano estabelecidos pela filosofia kantiana. Por conseguinte, o sentido do trágico em Rei Édipo consiste na transgressão metafísica pura e simples, no extravasamento (dialéctico, diríamos, usando uma linguagem kantiana) dos limites da experiência finita, tal como perspectivados por Kant na “Dialéctica Transcendental” da Crítica da Razão Pura a propósito do uso transcendente das categorias sem recurso à experiência empírica, um uso indevido que dá origem, por sua vez, às falsas aparências da dialéctica, ou, por outras palavras, às noções fictícias e ilusórias da metafísica tradicional. A transgressão metafísica – a hybris trágica – de Édipo consiste, assim, na afirmação do seu “sobre-conhecimento” [sur-savoir] (Lacoue-Labarthe 1998, p.15) – mas um sobre-conhecimento que é, todo ele, inválido, indevido, espúrio e, em última análise, falso.  A este respeito, recordemos as palavras de Kant na introdução da “Lógica Transcendental”:

 

(…) corre o entendimento o perigo de, mediante ocas subtilezas, fazer uso material de princípios meramente formais do entendimento puro e de julgar indiscriminadamente sobre objectos que nos não são dados, e que talvez de nenhum modo o possam ser. Como a lógica, verdadeiramente, deveria ser apenas o cânone para ajuizar do uso empírico (do entendimento), é abuso dar-lhe o valor de organon para um uso geral e ilimitado, e constitui atrevimento julgar, afirmar e decidir sinteticamente sobre objectos em geral, utilizando somente o entendimento puro. Nesse caso, seria então didáctico o uso do entendimento puro. A segunda parte da lógica transcendental deve ser, por conseguinte, uma crítica da aparência dialéctica e denomina-se dialéctica transcendental, não como arte de suscitar dogmaticamente tal aparência (arte, infelizmente muito corrente, de múltiplas prestidigitações metafísicas), mas enquanto crítica do entendimento e da razão, relativamente ao uso hiperfísico, para desmascarar a falsa aparência de tais presunções sem fundamento e reduzir as suas pretensões de descoberta e extensão, que a razão supõe alcançar unicamente graças aos princípios transcendentais, à simples acção de julgar o entendimento puro e acautelá-lo de ilusões sofísticas. (KrV B 88: 82.13-32;96)

 

Se Rei Édipo é a “autêntica tragédia moderna” (Lacoue-Labarthe 1998, p.20), tal como escreve Hölderlin numa célebre carta, citada por Lacoue-Labarthe, ao seu amigo Böhlendorf, em Dezembro de 1801, importaria compreendê-la na sua especificidade hespérica, ou ocidental – isto é, não grega, mas inteiramente moderna, segundo a linguagem hölderliniana – relativamente à outra tragédia de Sófocles que Hölderlin também traduziu, Antígona (a tradução de Hölderlin desta tragédia fora recebida, como bem sabemos, com enorme estranheza e perplexidade por parte dos seus contemporâneos – entre os quais, Schiller –, tendo em conta que um dos intuitos de Hölderlin seria o de revelar o elemento oriental, selvático, violento e não-olímpico, da linguagem da tragédia ática e, em última instância, de toda a cultura grega). Neste ponto, Lacoue-Labarthe chama a nossa atenção para a introdução do termo deus imediato [unmittelbare Gott] por parte de Hölderlin. Leiamos o extracto correspondente de Anmerkungen zur Antigone:

 

La présence du tragique repose […] sur le fait que le Dieu immédiat, tout Un avec l’homme (car le Dieu d’un apôtre est plus médiat, est la plus haute entente au sein de l’esprit le plus haut), que l’infinie possession par l’esprit, en se séparant salutairement, se saisit d’elle-même infiniment, c’est-à-dire en des oppositions, dans la conscience qui supprime la conscience, et que le Dieu est présent dans la figure de la mort. (Hölderlin 1965, p.79)

 

Diferentemente de Rei Édipo, Antígona apresenta-se como uma tragédia puramente grega, no âmbito do qual a noção de deus imediato se constitui como determinante: a heroína Antígona identifica-se, de modo imediato, com o divino; a possessão, o entusiasmo, o furor místico, o delírio sagrado, a aspiração infinita de Antígona – a sua mania – consiste, pois, na sua identificação, na sua união, sem mediações, com os deuses; Antígona apropria-se de deus. E esta é, com efeito, tal como Hölderlin a analisa, a experiência eminentemente grega do divino. A falha de Antígona é, diríamos, uma falha de teor teofânico. No caso de Rei Édipo, tudo se passa de modo diferente: Édipo não se identifica nem se compara a deus; Édipo não se apropria de deus; a sua falta é puramente teórica, intelectual e especulativa, pois, aqui, a imediatidade não toma forma nem figura. Nem a imediatidade nem a possibilidade de uma afirmação especulativa, de pendor substancialista, acerca da existência de deus, tal como Kant sustentara na “Dialéctica Transcendental” da Crítica da Razão Pura, particularmente no capítulo sobre o ideal da razão pura. Permitamo-nos, a este respeito, referir a posição filosófica kantiana acerca da existência de Deus como um postulado da razão prática, nunca enquanto objecto de experiência sensível nem como conteúdo do conhecimento teórico, tal como o filósofo sublinha na Crítica da Razão Prática:

 

Mas estende-se realmente deste modo o nosso conhecimento por intermédio da razão prática e o que era transcendente para a razão especulativa é imanente na razão prática? Sem dúvida, mas exclusivamente sob o aspecto prático. Com efeito, não conhecemos por esse meio nem a natureza da nossa alma, nem o mundo inteligível, nem o Ser supremo, segundo aquilo que eles são em si mesmos; reunimos apenas os seus conceitos no conceito prático do soberano bem, enquanto objecto [Objekt] da nossa vontade e totalmente a priori, pela razão pura, mas só mediante a lei moral e também simplesmente em relação à mesma, em consideração do objecto que ela ordena. (KpV, A 240: 133. 23-32;186)

 

Tendo em conta tal distanciamento de deus, a hybris de Édipo encontra-se totalmente cumprida na afirmação, toda ela trágica, do seu “sobre-conhecimento” – desde logo no momento, decisivo, em que decifra o enigma que a esfinge lhe impusera e, posteriormente, no âmbito do “episódio I” da peça, aquando do conflito com Tirésias, perante quem Édipo se arroga da sua “sabedoria acima do comum” (Sófocles 2016, p.81) e da sua “intuição de espírito” (Sófocles 2016, p.81), capazes de solucionar o mistério que lhe propusera a figura de pedra. Mas a arrogância do “sobre-conhecimento” de Édipo, marcada pela cegueira do seu espírito e manifesta nas suas palavras “proferidas sob o império da cólera” (Sófocles 2016, p.81), tal como adverte o coro, toma outras proporções de pendor igualmente grave ao longo do desenrolar da peça: recordemos o momento, ainda no “episódio I”, em que Édipo acusa Tirésias de ser cúmplice de Creonte no intento de derrubar o rei de Tebas, o próprio Édipo, do seu trono; e também a passagem, no “episódio III”, em que Édipo, recebendo a notícia do Mensageiro de Corinto que o informa de que o seu pai (adoptivo) Pólibo teria morrido velho e de doença – e não às mãos do seu filho, tal como o oráculo de Apolo haveria predito –, recai, em insensata glória, no mais puro ateísmo: “estes oráculos sem valor” (Sófocles 2016, p.116), assim se regozija Édipo. A hybris de Édipo é “a reivindicação insensata de uma forma de capacidade hermenêutica absoluta” (Lacoue-Labarthe 1998, p.26), a arrogância da posse de uma potencialidade de inteligibilidade total. Considerando todos estes momentos da peça, não surpreende que Hölderlin tenha elegido para título da sua tradução a designação Édipo Tirano.

Mas a diferença crucial entre Rei Édipo, modelo da tragédia moderna, e Antígona, modelo da tragédia grega, reside, aos olhos de Hölderlin, no modo como cada um dos protagonistas encontra a morte: com efeito, a morte constitui apenas o fim, ou a resolução, em Antígona, e não em Rei Édipo. Pois, nesta tragédia, não encontramos a morte que recairia sobre o herói, mas um longo e doloroso exílio, uma errância infinita, própria de um destino moderno, hespérico, ocidental – não-grego. Assim nos narra Sófocles na sua última e estranha tragédia, Édipo em Colono – como se a primeira, Rei Édipo, não fosse mais do que mero um prelúdio de tal tragédia final, afirma Beaufret (Beaufret 1965, p.21).

A “morte” lenta de Édipo integra uma determinação moderna porquanto introduz um elemento de mediação que escapa ao espírito grego – não se trata de morte, mas de uma expiação (uma catharsis, justamente) sem término e sem deus, que, sob o olhar de Hölderlin, expressa a ausência do divino, o seu afastamento ou retraimento categóricos relativamente aos seres humanos. Édipo, vagueando, errando, ao longo de um exílio sem fim, parece não possuir um destino – trata-se de uma ausência de destino, que se revela, por sua vez, tão própria dos hespéricos, ou ocidentais, que nós somos. Antígona sim, possui um destino, morrendo enquanto heroína – como se a sua hybris, de pendor teofânico, também encontrasse uma expiação da mesma ordem: o carácter teofânico – imediato – que está presente em Antígona também tem lugar no final da peça, no momento em que a heroína morre. Nada disto acontece em Rei Édipo, pois, nesta tragédia, a relação entre os deuses e os seres humanos é marcada por uma infidelidade [Untreue] dos primeiros em relação aos segundos (uma infidelidade divina que se desdobra numa “infidelidade dupla” (Lacoue-Labarthe, 1998, p.35), e que traduz no ateísmo dos seres humanos – o ateísmo de Édipo, precisamente). Leiamos o extracto de Anmerkungen zum Oedipus correspondente a tais considerações:

 

… tout cela en tant que langue pour un monde, où parmi la peste et le dérèglement du sens, et un esprit de divinisation partout exacerbée, en un temps de désœuvrement, le Dieu et l’homme, afin que le cours du monde n’ait pas de lacune, et que la mémoire de ceux du ciel n’échappe pas, se parlent dans la figure toute oublieuse de l’infidélité, car l’infidélité divine, c’est elle qui est le mieux à retenir. (Hölderlin 1965, p.65)

 

Lacoue-Labarthe termina o seu ensaio citando o comentário de Hölderlin a respeito de um fragmento de Píndaro (que Hölderlin também traduziu), certamente escrito no mesmo período em que o poeta alemão se dedicava a pensar Sófocles e as suas tragédias. O comentário, profundamente ilustrativo, é o seguinte: “O imediato, tomado em todo o seu rigor, é, para os mortais, impossível […]. Mas a mediação rigorosa é a lei” (Lacoue-Labarthe 1998, p.42).

 

 

 

Considerações finais

 

Tendo presente as posições de Hölderlin em torno do final de Rei Édipo, Lacoue-Labarthe, assim como Beaufret, procura sublinhar a sua tonalidade kantiana: o desvio categórico de deus, a fuga de deus, não significa o seu absoluto desaparecimento, mas a sua apresentação enquanto lei – num sentido kantiano. Tal como escreve Lacoue-Labarthe : “Et la Loi, ici, n’est rien d’autre que critique. Ou si l’on préfère, elle est la leçon même, voire le commandement, de la Critique de la raison pure” (Lacoue-Labarthe 1998, p.39). Com Rei Édipo, a tragédia moderna por excelência, encontramo-nos no âmbito de uma “teofania sem teofania” (Lacoue-Labarthe 1998, p.40). Não se trata de uma teologia negativa, nem da consideração de um deus absconditus, mas, sim, da apresentação de deus através da lei, na impossibilidade de qualquer experiência intuitiva do mesmo ou da afirmação da sua existência segundo uma lógica especulativa substancialista.

No seguimento da interpretação de Lacoue-Labarthe, importaria, neste ponto, lançar luz sobre o intento hölderliniano de elaboração de uma teologia subjacente a Rei Édipo, uma teologia que se articula, de forma íntima, com a sua filosofia da tragédia. Ou, de outro modo, talvez se afigure mais correcto afirmar que a filosofia da tragédia desenvolvida por Hölderlin se orienta no sentido de uma teologia. De que teologia se trata? Ora, tal teologia delineada por Hölderlin apresenta-se profundamente inspirada pela postura kantiana de redução da religião à moralidade, ou, se quisermos, à lei moral. A teologia moral de Kant – decorrente da sua contestação filosófica da metafísica tradicional e dos seus modos de tratamento do problema de Deus segundo princípios especulativos – constitui, pois, o quadro teórico à luz do qual Hölderlin traça as suas considerações acerca da relação entre os seres humanos e os deuses na teorização em torno de Sófocles – e ecoando, igualmente, na elaboração do sentido filosófico-poético das expressões hölderlinianas Gottes Fehl e kategorische Umkerh. Citemos as ilustrativas palavras de Kant presentes no prólogo à primeira edição (1793) do seu escrito capital sobre religião, a Religião nos Limites da Simples Razão:

 

A Moral, enquanto fundada no conceito do homem como um ser livre que, justamente por isso, se vincula a si mesmo pela razão a leis incondicionais, não precisa nem da ideia de outro ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outro móbil diferente da própria lei para o observar. […] Por conseguinte, a Moral, em prol de si própria (tanto objectivamente, no tocante ao querer, como subjectivamente, no que diz respeito ao poder), de nenhum modo precisa da religião, mas basta-se a si própria em virtude da razão prática. – Com efeito, visto que as suas leis obrigam pela mera forma da legalidade universal das máximas que hão-de assumir-se de acordo com ela – como condição suprema (também esta incondicionada) de todos os fins, a Moral não necessita em geral de nenhum outro fundamento material de determinação do livre-arbítrio […]. (RGV 3-18; 11)

 

Por conseguinte, haveria que sublinhar que a fonte kantiana de que Hölderlin se nutre para traçar a sua filosofia da tragédia integra a consideração da necessidade de impugnação da metafísica tradicional, temática fulcral da Crítica da Razão Pura, assim como o delineamento de uma teologia dela decorrente, marcada pela centralidade da lei moral que exclui a exigência de uma intuição sensível de um ente supremo e de uma afirmação teórico-especulativa da sua existência, de acordo com a continuidade filosófica entre a Crítica da Razão Prática e A Religião nos Limites da Simples Razão. Ora, nas Anmerkungen zum Oedipus defrontamo-nos com uma filosofia da tragédia que parece integrar, mau grado o seu teor velado e codificado, uma reflexão profundíssima acerca das principais linhas de pensamento que compõem a filosofia de Kant. Poderá soar bizarro que tal reflexão hölderliniana se cumpra no âmbito de um escrito em torno de uma tragédia sofocliana – mas, a este respeito, insistiria advertir: Rei Édipo é, pois, aos olhos de Hölderlin, o prenúncio da tragédia moderna, e Édipo o arquétipo do homem hespérico.


 

 

Bibliografia

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Beaufret, J. (1965), “Hölderlin et Sophocle” em F. Hölderlin, Remarques sur Œdipe / Remarques sur Antigone, précédé de “Hölderlin et Sophocle” par Jean Beaufret. Traduction et notes par François Fédier. Paris, UGE Bibliothèque 10/18, France.

Butler, E. M. (1958), The Tyranny of Greece over Germany. Boston, Beacon Press, United States of America.

Frank, M. (2015), Der kommende Gott. Vorlesungen über die Neue Mythologie. Frankfurt am Main, Suhrkamp, Deutschland.

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Hölderlin, F. (2021), Todos os Poemas seguido de Esboço de uma Poética. Tradução, introdução, comentários e notas de João Barrento. Lisboa, Assírio & Alvim, Portugal.

Kant, I. (1992), A Religião nos Limites da Simples Razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa, Eduções 70, Portugal.

Kant, I. (2008a), Crítica da Razão Prática. Tradução de Artur Morão. Edições 70, Portugal.

Kant, I. (2008b), Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Fundação Calouste Gulbenkian, Portugal.

Lacoue-Labarthe, P. (1998), Métaphrasis suivi de Le théâtre de Hölderlin. Paris, Presses Universitaires de France, France.

Sófocles (2008), Antígona. Introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Portugal.

Sófocles (2016), Rei Édipo. Introdução, tradução do grego e notas de Maria do Céu Zambujo Fialho. Lisboa: Edições 70, Portugal.

Szondi, P. (2004), Ensaio sobre o Trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, Brasil

Taminiaux, J. (1995), Le théâtre des philosophes. La tragédie, l’être, l’action. Grenoble, Jérôme Millon, France.

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· Universidade do Porto. Contacto electrónico: silviaandradebento@gmail.com

[1] A este respeito, leia-se o estudo de E. M. Butler brilhantemente intitulado The Tyranny of Greece over Germany, publicado em 1935.

[2] Tradução nossa. Seguidamente apresentamos o extracto original: “Begründet” meint hier: hergeleitet von, aber nicht im Sinne eines einfachen Ursache-Bezugs wie in den Naturwissenchaften, sondern im Sinne einer Rechtfertigung. “Etwas rechtfertigen” oder (wie die Romantiker gern sagten) “etwas beglaubigen” aber heiβt: es auf einem Wert zu beziehen, der zwischen den Menschen unumstritten ist. Und zwischen Menschen (einer Population) unumstritten ist in einem radikalen Sinn nur das, was für heilig – für unanfechtbar, für allgegenwärtig und für allvermögend – gilt. (Frank 2015, p.11).

[3] Jacques Taminiaux, no seu livro Le théâtre des philosophes. La tragédie, l’être, l’action (1995), reconstitui a evolução biográfica e intelectual de Hölderlin até ao momento da escrita das Notas sobre Édipo e das Notas sobre Antígona.

[4] Como é sabido, Rei Édipo apresenta-se, aos olhos de Aristóteles, como uma das tragédias mais perfeitas do ponto de vista da inclusão e da elaboração dos elementos trágicos. Em bom rigor, a peça de Sófocles é mencionada três vezes e o seu protagonista é nomeado seis vezes ao longo de toda a Poética. Uma das mais importantes passagens da Poética dedicada a Rei Édipo diz respeito à beleza da peripécia e do reconhecimento: “Peripécia é, como foi dito, a mudança dos acontecimentos para o seu reverso, mas isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade. Assim, no Édipo, o mensageiro que chega com a intenção de alegrar Édipo e de o libertar dos seus receios em relação à mãe, depois de revelar quem ele era, produziu o efeito contrário. (…) Reconhecimento, como o nome indica, é a passagem da ignorância para o conhecimento, para a amizade ou para o ódio entre aqueles que estão destinados à felicidade ou à infelicidade. O reconhecimento mais belo é aquele que se opera juntamente com peripécia, como acontece no Édipo” (Aristóteles 2008, p.57; 1452a 22-33).

[5] No seguimento da tradução francesa do termo, détournement catégorique, utilizamos a expressão portuguesa desvio categórico para traduzir o complexo conceito de kategorische Umkher.

[6] Todas as referências às obras de Kant apresentadas neste ensaio seguem a edição da Akademie, integrando, no final de cada indicação, a menção ao número da(s) página(s) correspondente(s) das traduções portuguesas utilizadas.

[7] É Schelling o primeiro a introduzir, nas suas Briefe über Dogmatismus und Kritizismus (1795), a figura de Édipo – e a questão do trágico – no âmbito da filosofia idealista. A respeito da emergência da filosofia da tragédia desenvolvida no contexto cultural de língua alemã, importaria ler o relevante (e canônico) estudo de Peter Szondi intitulado Versuch über das Tragische (1961).