“Einbildungsfähigkeit”, “Einbildungskraft” e “Imagination” na antropologia kantiana.

Notas para uma dissociação terminológica

 

“Einbildungsfähigkeit”, “Einbildungskraft” and “Imagination” in Kant’s anthropology.

Notes towards a terminological dissociation

 

Fernando M. F. Silva·

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Portugal··

 

Resumo

 

Emergentes não raras vezes nas Lições de Antropologia de Kant, os termos “Einbildungskraft”, “Einbildungsfähigkeit” e “Imagination” são comummente tomados – e, prova maior disto mesmo, traduzidos – como um só. O presente artigo propõe-se pôr em causa e demonstrar a incorrecção desta abordagem. Bem pelo contrário, estamos em crer que, no âmbito da antropologia kantiana, em primeiro lugar, “faculdade de imaginação” e “capacidade de imaginação” não são uma e a mesma coisa, antes significam diferentes estratos, diferentes dimensões conceptuais na compreensão do processo de representação humana; em segundo lugar, também “faculdade de imaginação”, enquanto “Einbildungskraft”, não é o mesmo que o seu correspondente na “Imagination”, antes duas dimensões de um e o mesmo problema antropológico, o problema por excelência do acto de representar, que surge entre o mundo e o designar humano. Tais distinções, que, assim o cremos, requerem uma compreensão mas também uma tradução mais criteriosa do que até aqui, trazem a uma mais distinta luz o modo como Kant estrutura e ordena as diferentes fases do processo da imaginação humana, e salienta aquelas que, para o filósofo, são as diferentes potencialidades desta última.

 

 

 

Palavras-chave

 

Kant, antropologia, representação, imaginação

 

Abstract

 

Often reappearing in Kant’s Lectures on Anthropology, the terms “Einbildungskraft”, “Einbildungsfähigkeit” and “Imagination” are commonly taken – and, as a proof of this, translated – as one. The present article intends to question and show the incorrectness in such an approach. Quite on the contrary, we believe that, in the scope of Kant’s anthropology, firstly, “power of imagination” and “capacity of imagination” are not one and the same thing, rather they signify different strata, different conceptual dimensions in the process of human representation; secondly, “power of imagination”, as “Einbildungskraft”, is not the same as its correspondent in “Imagination”, rather two dimensions of one and the same anthropological problem, the problem par excellence of the act of representing, which arises between the world and human designation. Such distinctions, which, as we believe, require a more careful comprehension as well as translation, bring to a more distinct light the way how Kant structures and orders the different stages of the process of human imagination, and underscores those which, in the anthropologist’s view, are the different potentialities of the latter.

 

Keywords

 

Kant, anthropology, representation, imagination

 

 

I. O problema da pluri-semanticidade do termo faculdade de imaginação (“Einbildungskraft”)

 

 

Ao longo dos tempos, o termo “Einbildungskraft”[1], que no âmbito da antropologia kantiana[2] designa uma inferior faculdade do ânimo e, porém, uma das três faculdades regentes do espírito humano, vem sendo utilizado com esse mesmo significado duplo, e conglomerando em seu torno a actividade transpositiva, metafórica, que é própria da actividade de representar humana. O termo “Einbildungskraft”, dir-se-ia aliás, é até hoje um termo de significado lato: ele dá corpo ao próprio acto de imaginar, ou representar humanos; e, nesse acto, ele afigura-se tanto uma força, como uma faculdade ou capacidade que permite ao homem dar imagem – isto é, ficcionar, representar – coisas que não estão presentes[3]; isto, pelo menos, entendem críticos e tradutores do Kant-antropólogo pelo termo em questão, ou pela tradução directa do mesmo para as suas respectivas línguas. E portanto, a “Einbildungskraft” é, comummente entendida, uma força, ou faculdade ou capacidade que é parte de todo um sistema orgânico de faculdades, e que, na sua preponderância, tem relações mais ou menos afins com todas elas; pois que, no acto de imaginar, a “Einbildungskraft” é presente a todas as faculdades: ela, no seu designar do acto de imaginar, como que as incorpora em si, ora prendendo-se intimamente à sensibilidade, ora tendo mais ou menos visível relação com a memória, a fantasia, o engenho ou o génio, e, por fim, tendo de entrar (ou sempre estando) em uma singular relação com o superior entendimento.

A prova maior desta grande latitude do termo “Einbildungskraft”, e dos termos com que os tradutores geralmente traduzem a palavra, está aliás nos próprios dicionários kantianos. A saber, ao se procurar a entrada “Einbildungskraft” no dicionário kantiano de Carl C. E. Schmid (1798)[4], aí se diz que, em geral, a faculdade de imaginação é não apenas uma “força” (Kraft), mas também “a faculdade para representar um objecto na intuição mesmo sem a presença deste” (W: 200, it. meus)[5], faculdade essa que “faz trabalhar o entendimento” (id.). Ao se procurar o termo em Rudolf Eisler (1984)[6], ele diz do termo “Einbildungskraft” que ele não é mera força, mas também “em sentido mais lato a capacidade de ter representações do objecto mesmo sem presença do mesmo” (K-L: 105, it. meus). E portanto, em vista destas razões e exemplos, e porque em tais obras lexicográficas apenas um termo – o termo “Einbildungskraft” –, e não propriamente “Einbildungsvermögen” ou “Einbildungsfähigkeit”, representa a imaginação, isto talvez explique o porquê de os leitores, críticos e tradutores de Kant não terem visto até hoje razão para não entender por esta força, ou poder, ou capacidade, ou faculdade – que aqui, no termo em questão, são tomadas por uma só – senão uma e a mesma coisa.

            Ora, o facto de Carl C. E. Schmid e Rudolf Eisler designarem a “Kraft” de “Einbildungskraft” a um tempo como “Vermögen” e como “Fähigkeit”, e de sob aquela designação abarcarem estes lexicógrafos, e grande parte dos críticos e dos tradutores de Kant, estas duas; o facto de, numa palavra, sob o termo “Einbildungskraft” – “imagination” (fr.), “imaginação” (pt.), “immaginazione” (it.), “imagination” (ing.), imaginación (es.), etc. – se acolher toda a actividade imaginativa do espírito humano, não pode senão ostentar uma verdade inegável; uma com a qual, aliás, estamos inteiramente de acordo. Segundo esta, se por força ou poder (vis) de imaginação se entender também a faculdade ou a capacidade (facultas, capacitas) para imaginar, então os termos “Einbildungsvermögen”, ou “Einbildungsfähigkeit”, a que Kant de facto também recorre na sua obra antropológica, apenas designam uma latência, um talento ou capacidade para imaginar, e portanto não podem senão vir a ser abrigados, ou vir à sua total eficácia, sob a mais abarcante, mais pungente designação “Einbildungskraft”. Ou então, se se preferir – e na mesma linha de compreensão do termo –, eles significam aqui para Kant exactamente o mesmo que “Einbildungskraft”, e são, eles próprios, “Einbildungskraft”. A “Einbildungskraft”, tomada neste sentido, encapsularia exactamente as mesmas funções, o mesmo procedimento, as mesmas valências do que “Einbildungsfähigkeit” e “Einbildungsvermögen”; e dizer um equivaleria a dizer qualquer um dos outros: uma homogeneidade que, aliás, parece ser sancionada pelo próprio Kant, nomeadamente no uso não raras vezes indiferenciado, e até aparentemente indiferente, que o Professor de Antropologia faz dos três vocábulos identificadores da imaginação. Ora, tudo isto apenas parece legitimar, senão mesmo fortalecer, a compreensão e o uso do termo “Einbildungskraft” como ele foi anteriormente descrito.

O problema, porém, está nos termos em questão – “Kraft”, “Fähigkeit” e “Vermögen” – e, por adição, nos conceitos que estes termos designam quando acoplados a “Einbildung”. Pois, no fundo, a questão é aqui, em primeiríssimo lugar, uma de índole conceptual-linguística. E porque se coloca esta questão? Porque se é verdade que tomada em certos âmbitos da teoria kantiana, o uso indiferenciado de “Einbildungskraft”, “Einbildungsvermögen”, “Einbildungsfähigkeit” é permitido (ou pelo menos não acarreta problemas sérios), e uns termos, bem como os seus respectivos conceitos, se fundem de facto uns nos outros e são de facto homogéneos entre si, não é menos verdade que em outros âmbitos mais afins à expostulação do termo, e que aqui tomamos em consideração, como o antropológico, ou o estético, é possível detectar com segurança uma marcada dissociação conceptual no uso que Kant faz de “Kraft”, “Fähigkeit” e “Vermögen”, quando aplicados ao termo “Einbildung”[7]. Desde logo, isto permite supor que, no entender de Kant, há tantos usos da imaginação como tais diferentes modalidades, e por conseguinte variegados usos do termo e conceito de imaginação não só de âmbito para âmbito, mas até dentro de um mesmo âmbito; o que, por sua vez, comprova ulteriormente a fértil heterogeneidade do termo imaginação, e do próprio conceito de imaginação, para o grande filósofo.

Ora, para resumir a questão, o nosso foco passa justamente por afirmar que no domínio antropo-estético da obra de Kant uma tal diferença entre “Einbildungskraft”, “- vermögen” e “– fähigkeit” existe, e que todas as anteriores repercussões são verdadeiras. A saber, estamos em crer que “Einbildungskraft”, “Einbildungsfähigkeit” e “Einbildungsvermögen” não significam para Kant a mesma coisa, antes significam diferentes usos ou aplicações da imaginação humana: usos e aplicações interrelacionáveis, por certo, mas não obstante diferentes. Segundo vemos a questão, a identificação de uma tal possível heterogeneidade conceptual, compreensiva, tradutiva equivale a surpreender na força da compreensão e uso homogéneos de “Einbildungskraft”, a que a crítica kantiana tanto se habituou, também uma insuficiência; e porém, não uma insuficiência que tenha por intenção fazer perigar ou subverter o dito vigor homogéneo do termo, mas que antes pretende contribuir para o devido estabelecimento do mesmo. E, por conseguinte, e até fazendo justiça à diferença dos próprios termos originais, estes termos por ora homogeneizados têm de se revelar de diferente compreensão, e, portanto, de diferente tradução. É em direcção à identificação de uma tal ressalva kantiana, e a uma proposta de nova compreensão de tais termos, que agora caminhamos.

 

 

 

 

II. A dissociação terminológica entre “Eibildungskraft”,

“Einbildungsvermögen” e “Einbildungsfähigkeit”

 

 

 

            Como se disse, o âmbito de comprovação da nossa proposta é de encontrar no âmbito antropo-estético do pensamento de Kant; mais concretamente, na estética natural que, segundo Kant, compõe a parte prática tanto das suas Lições de Antropologia (1772-1796), como da sua Antropologia em um Enfoque Pragmático (1798).

            Aí, em consonância com a Psychologia Empirica (1732) de Wolff[8], e ainda mais com a para si muito importante Metafísica (1739) de Baumgarten[9], notar-se-á que o Professor de Königsberg contempla o tópico da “Einbildungskraft” entre outros tópicos afins, como a memória, o engenho, o gosto ou o génio, os quais se prendem com o imenso problema das representações do espírito humano. Mas também aí, não por acaso, e não sem relação com a nossa suspeita de dissociação conceptual, Kant, ao contrário dos seus precursores, tende a afirmar e delimitar várias modulações do imaginar: a saber, em primeiro lugar, separando, e grafando de acordo com isto, o imaginar que é aquele de uma capacidade de imaginar latu sensu – que Kant coloca à cabeça do problema, e à qual chama “Bildungsvermögen”, “Bildungsfähigkeit” ou “Einbildungs-fähigkeit”[10] – e, em segundo lugar, aquele que é o do imaginar strictu sensu, ou o imaginar propriamente dito, que Kant abriga sob o anterior, ao qual Kant dá grande influência e amplitude, e que designa como “Einbildungskraft”, ou, a espaços, “Einbildungsvermögen”. E ainda que se queira apontar que Kant usa de facto, de modo algo indiferenciado, o termo “Einbildungsvermögen” – pois que Kant o usa ora em uma, ora em outra acepção –, o mesmo não pode por certo ser dito dos termos “Einbildungs-“ ou “Bildungsfähigkeit”, e do termo “Einbildungskraft”, que aqui, na antropologia kantiana, são de facto cooperantes, mas que não só não significam o mesmo, como têm de ser dissociados.

            Assim, perguntamos em primeiro lugar, o que entende Kant pelos termos “Bildungs-Vermögen”, ou “Bildungsfähigkeit”? O próprio Kant explica: a deveras fundamental, subliminar, omnipresente actividade da imaginação humana; imaginação tomada aqui, claro está, não no sentido específico, aplicativo, activo do termo, mas no sentido geral, passivo, englobante do mesmo. A saber, pois, a “Einbildungsfähigkeit” é a capacidade para imaginar, não a faculdade ou a força para imaginar: e, enquanto capacidade para imaginar, ela não é especificamente fantasia, como o era para Platner; ela não é especificamente memória; ela não é especificamente engenho ou génio, e, sobretudo, não é especificamente a faculdade de imaginação produtiva ou reprodutiva (“Einbildungskraft”): antes, segundo Kant, ela está como solo, ou fundamento, para todas estas faculdades, que são, isso sim, faculdades no seio e no solo desta uma e a mesma capacidade. Assim, a “Bildungsvermögen” está, ela própria, na fantasia, na memória, no engenho como roda motriz essencial destes; mas ela nada tem que ver com os excessos ou o esmorecimento da fantasia, com uma memória mais ou menos criativa, ou com os perigos ou a singularidade do engenho; isto é, ela nada tem que ver directamente com as disposições de tais faculdades por si e entre si, antes ela dá a estas o seu ser ficcionante, representacional, conferindo-lhes pois um proceder natural para construir, reflectir, criar ou sentir, e assim as pôr em marcha. E, da mesma maneira, a “Bildungsvermögen” nada tem que ver com a “Einbildungskraft” senão que a primeira subjaz à última, o contrário não podendo ser verdade. No extenso campo da imaginatividade humana, que a “Bildungs-Vermögen” no fundo é, a “Einbildungskraft” é uma mera faculdade, ou poder, como o são as anteriormente mencionadas, e são estas, e as diferentes disposições advindas das diferentes concatenações das mesmas, como a elas acima se aludiu, que compõem a “Bildungs-Vermögen”. E, portanto, dir-se-ia com Kant, o que a “Bildungs-Vermögen”, ou “Einbildungsfähigkeit”, são, é o todo do campo da representatividade humana. Ela(s) engloba(m), e dão ser, a todas as dimensões, e respectivas variegadas disposições, da imaginatividade humana: seja isto no sentido de reproduzir, de produzir ou de ante-produzir representações. A saber, seja ela tomada em um sentido reimaginativo, propriamente imaginativo ou preimaginativo das representações do espírito humano[11]: ela, a “Bildungs-Vermögen”, abarca a recuperação, ou repetição sempre consabida das imagens que povoam o espírito humano, bem como a criação imediata, espontânea e inventiva de representações, bem como até a presciência de tais representações.

            Posto isto, perguntamos então: o que entende Kant pelos mais específicos termos “Einbildungskraft”, ou “Einbildungsvermögen”, e que função têm eles neste âmbito de coisas? A resposta, creio, parte da anterior citação, e, por conseguinte, da afirmação da “Einbildungsfähigkeit” como estrato essencial da humana habilidade para representar. Pois ao dividir a “Bildungs-Vermögen”, como o faz na anterior citação, Kant refere que esta, que é o mais natural e mais indispensável no representar humano, está, dir-se-ia, no passado, no presente e no futuro de todo o representar humano. A saber, o imaginar, ou o ficcionar, estão no próprio representar[12], e isso porque esse representar é uma re-apresentação de uma imagem já conhecida (como na “Nachbildungsvermögen”), bem como a apresentação de uma imagem (des-)conhecida (“Einbildungskraft”), bem como a pre-apresentação de uma imagem desconhecida, ou apenas aventada (“Vorbildungsvermögen”). Contudo, note-se, ao assim proceder à divisão possível da “Einbildungsfähigkeit”, Kant nomeia uma destas modalidades, propriamente e expressamente, “Einbildungskraft” ou “Einbildungsvermögen”: faculdade ou força de imaginação; e atribui-lhe, não por acaso, e não apenas devido às suas valências de presente vivo, um lugar central entre as três. Ora, isto, segundo cremos, tem uma razão de ser. E essa razão de ser, esperamos comprovar, prende-se tanto com o estatuto da própria faculdade de imaginar entre as demais, como com a relação em que ela está com a “Bildungs-Vermögen” – o que, por sua vez, terá de influir tacitamente sobre o seu conceito, o termo que a designa e a compreensão e/ou tradução que dela teremos de fazer. A explicação destas assumpções, aliás, não é difícil. Passamos desde já a empreendê-la. 

Comecemos pelo início, o que é como dizer, pelo uso mais geral e mais básico da imaginação humana – a faculdade de reimaginação (“Nachbildungsvermögen”). Aquilo que Kant entende por faculdade de reimaginação é, diz o próprio, o uso reimaginativo da faculdade de imaginação (não, note-se, da capacidade para imaginar). Quer isto dizer que a faculdade de imaginar trata aqui com representações já conhecidas, outrora tidas e entretanto preservadas nesse grande armazém, ou receptáculo, que é a memória. Isto, aduz Kant, fá-lo a faculdade de imaginar por intermédio de um tipo específico de memória, justamente a memória racional, que se presta a reavivar imagens no fundo consabidas, de recuperação fácil, e que estão nas zonas mais iluminadas do infinito mapa das representações humanas[13]. Intervindo ela própria tão pouco quanto necessário no processo, e vedando-se aqui a intromissão da fantasia, do engenho, do génio, tais imagens são como que directamente entregues ao entendimento, que nelas não vê problemas e as aceita sem mais. À capacidade de imaginação, dir-se-ia, pois, dá aqui a faculdade de imaginação, e restantes faculdades, um cunho certo e seguro, deveras apropriado, por exemplo, a um registo científico.

Já por faculdade de preimaginação (“Vorbildungsvermögen”), entende Kant o uso preimaginativo da faculdade de imaginação. Quer isto dizer que a faculdade de imaginar se ocupa aqui com representações ainda não conhecidas, mas que é levado a prever, ou pressentir, em vista de outras que conhece. As mesmas faculdades, ou forças, no entanto, são usadas para este efeito, mas inversamente, e entre ambas não parece haver diferença senão que a primeira recupera, a segunda projecta representações; sendo que esta última, porque é representação antes da representação, pode redundar em um uso excessivo da memória engenhosa, da sorte daquele presente nas manifestações de um génio desenfreado ou nas perturbações da mente humana.

Por fim, com respeito à “Einbildungskraft” propriamente dita, ela está como o meio-termo das anteriores duas. A saber, consoante a sua dimensão – reprodutiva ou ante-produtiva –, a faculdade de imaginar chama a si ora a memória racional, ora a memória engenhosa, mas ao invés de recorrer ou a uma quase inexistência de fantasia, ou a um excesso de fantasia, nesta sua dimensão a faculdade de imaginar usa entre ambas as memórias o grau certo de fantasia, tanto quanto necessário para que as representações não sejam nem áridas, nem desconcertantes. Significa isto, pois, que na sua dimensão mais natural, porque mais proporcional, a faculdade de imaginação (“Einbildungskraft”) chama a si apenas o grau certo de fantasia nas representações, e por isso ficciona-as também apenas quanto baste. Isto acontece por intermédio da memória intelectual, que é aqui a mais sensata, e que agrega em si as melhores valências da memória racional e da memória engenhosa. Assim, estamos aqui perante a dimensão propriamente produtiva da faculdade de imaginação, a qual, imbuída deste propósito e desta disposição especial, chama a si representações que elege para um efeito, e não imagens fortuitas; e estas, ao serem patenteadas ao entendimento, não são por ele aceites sem mais, nem rejeitadas sem mais, antes, porque têm o grau suficiente de engenho, e porque criação certa do génio, despertam nele apenas o grau certo de estranhamento, tanto quanto o necessário para que ele, primeiro negando-as, acabe por as aceitar como algo novo, e portanto como promoção do próprio conhecimento filosófico. A este uso da sensibilidade sob as regras do entendimento; numa palavra, a este uso apenas sobejamente ousado, mas regrado, da faculdade de imaginação, dá Kant o nome de poesia[14].

Ora, vistas estas três manifestações da faculdade de imaginação nas suas diferentes modalidades, voltamos a perguntar: que papel reserva Kant, e o que entende pois Kant por faculdade de imaginação (“Einbildungskraft”) em um sentido antropológico – e isso em relação com o seu mais essencial, mais lato conceito de “Einbildungsfähigkeit”?

A isto respondemos tripartidamente, do seguinte modo:

1) a “Einbildungskraft” é diferente de “Einbildungsfähigkeit”, e isso na medida em que aquela é esta trazida à actividade. Isto é, uma é a capacidade humana para trazer à imagem o ausente; a outra, a força que efectivamente o faz; no fundo, como se esta força desse voz e vigência àquela capacidade, mas não apenas uma voz e vigência quaisquer, antes fosse a melhor e mais natural expressão daquela;

2) Por isso mesmo, a faculdade de imaginação é aqui uma força central entre as demais. Sim, todas elas têm uma índole imaginativa, como imaginativa é por si mesma a natureza humana. Mas a faculdade de imaginação é, vê-se bem, a força central entre todas aquelas que compõem a capacidade de imaginação, pois que ela se subdivide, está presente, modula e é modulada por todas as restantes forças imaginativas do ânimo, compondo e sendo composta nas diferentes disposições por todas estas criadas, em favor de trazer o ausente à presença; e, assim sendo, é também a faculdade de imaginar que traz a uma diferente forma, em cada uma destas disposições, e em cada uma destas forças, a capacidade de imaginação, a “Bildungs-Vermögen” – pois ela é desta sua emissária, ou sua escultora privilegiada. Ela, a faculdade de imaginação, está pois, em maior ou menor grau – mas está! – em todas as dimensões do imaginar, do representar humano, e é também ela a roda motriz da memória, do engenho, até mesmo do entendimento; e portanto, na sua acepção de presente vivo, de criação em energueia, a “Einbildungskraft” é por certo o elemento-volante de todas as relações entre faculdades no ânimo humano.

3) Por fim, e em vista das anteriores características, a faculdade de imaginação assume uma outra relevância, ainda mais fulcral no funcionamento proporcional do espírito humano – e aqui reside, pois, o cerne da sua unicidade, e da sua necessária distinção em relação à “Bildungs-Vermögen”. Pois, se a coloca em tão central posição, e como eixo de tais relações entre os planos inferior e superior do ânimo, isto significa também que à faculdade de imaginar reserva Kant um suplementar papel, não menos importante, na ordem de formação das representações humanas; representações humanas que, note-se, são a roda motriz das ciências, da filosofia, da poesia, de toda a discursividade humana. A saber, à faculdade de imaginação incumbe uma função criadora, visível tanto ao nível da sua acção nas próprias faculdades, como das criações das mesmas – função essa que, como é óbvio, a “Bildungs-Vermögen” não possui, ou só vem a adquirir justamente mediante este uso tão especial da faculdade de imaginação. Pois isso mesmo, essa criação e inventividade singulares, está implicado no trazer do ausente à presença da imagem. Esta criação pode ser menos visível, ou mais visível, consoante estejamos a falar da faculdade de imaginação reprodutiva ou da faculdade de imaginação produtiva. Mas porque a palavra de ordem no bom exercício da capacidade de imaginar é harmonia, ou proporção, então a própria faculdade de imaginar tem de saber trazer a bom uso tanto a sua função menos criativa (perigosa por bordejar o objecto, e confinar com a aridez), como a mais criativa (perigosa por estar distante do objecto, e confinar com o delírio). Por outras palavras, tanto aquela faculdade de imaginação que mantém uma relação próxima com o objecto, e que o traz imediatamente, sem mais artifício, à imagem, como aquela faculdade de imaginação que tem uma afinidade apenas remota com o objecto, e que o traz mediatamente, mediante analogia, à imagem: esses são planos de uma e a mesma faculdade de imaginação. E, portanto, entre estes dois planos da capacidade para imaginar se desdobrará, tão bem quanto possível, de modo tão conciliador e tão harmonizante quanto possível, a própria “Bildungs-Vermögen”. Por outro lado, não por acaso, também aqui grassará aquele que é o seu verdadeiro problema para Kant. Pois no próprio acto de trazer o ausente à imagem inscreve-se o problema que se gera entre estas suas diferentes dimensões, e a ordem das suas criações, e que justamente parece impedir a harmonia. Referimo-nos ao problema da maior ou menor novidade, e portanto maior ou menor realidade das imagens na sua relação com o objecto; ou, numa palavra, à maior ou menor relação com o objecto, e maior ou menor inventividade, das representações pela faculdade de imaginação criadas e por ela geridas, o qual ameaça estar no limiar da transgressão das regras que gerem toda a capacidade para representar e que têm de ser consideradas de mais perto. A isto mesmo, aliás, nos propomos na secção III.

Posto isto, perguntamos então em jeito de ponto de situação: como melhor distinguir o termo “Einbildungsfähigkeit” do par “Einbildungskraft”/ “Einbildungsvermögen”, e de onde vem a confusão na compreensão e na tradução de ambos? A confusão vem, por certo, da generalização do trabalho criativo da faculdade ou força de imaginação, e do trabalho latente da capacidade de imaginação, os quais, não raras vezes tomados como um e o mesmo, foram até hoje tidos como sinónimos – o que resulta na compreensão e tradução uniforme de ambos. O problema, diria pois Kant, e reiteramos nós, é que, apesar da sua íntima afinidade, “Einbildungsfähigkeit” e “Einbildungskraft” não são uma e a mesma coisa. Pois, com efeito, não é a capacidade de imaginação (“Einbildungsfähigkeit”) que cria diferentes disposições do ânimo humano; não é a capacidade de imaginação que é uma força única, porquanto assume o papel central entre faculdades e está em todas, assumindo aí ela própria diversas formas; não é a capacidade de imaginação que, sob a forma da razão, trata com o entendimento no árido processo de representação de filosofemas ou conceitos científicos, nem é a capacidade de imaginação que, sob as formas do engenho e do génio, trata com o entendimento, no livre (mas ordenado) jogo que é o da poesia. E, em contrapartida, não é a faculdade de imaginação (“Einbildungskraft”) que se divide em diferentes disposições do ânimo – antes, bem pelo contrário, ela mesma é uma dessas disposições. Não é a faculdade de imaginação que dá a respectiva natureza a todas as faculdades do ânimo, antes também a ela é dada uma natureza, e ambas pela capacidade de imaginar; e não é algo na faculdade de imaginação que se presta à harmonia entre faculdades, antes isso está na comum tendência de todas as faculdades, o que lhes é veiculado pela capacidade para imaginar, ou a faculdade para formar. No fundo, afirmamos pois, todos estes importantes papéis têm um actor predilecto. E portanto, a fim de melhor dissociar tais personagens no palco da humana formação de imagens, e impedir que tais termos possam ser compreendidos e traduzidos indiferenciadamente, propomos uma (parcial) nova tradução de ambos, apenas  em um respeito antropológico; uma tradução que, como se disse, não pretende reinventar os conceitos, antes, bem pelo contrário, apenas aspira a ser uma tradução ad verbum, vertendo os termos tão rente ao original quanto possível.

Assim, a saber, desaconselhamos que se traduza “Einbildungskraft” e “Einbildungsfähigkeit” por um só termo: por “faculdade de imaginação”, seja qual for a língua em pauta; mas mais desaconselhamos que ambos, ou qualquer um deles, seja traduzido simplesmente por “imaginação”. Pois uma coisa é a “imaginação” (“Einbildung”); outra é a capacidade de imaginação (“Einbildungsfähigkeit”); e outra ainda a faculdade de imaginação (“Einbildungskraft” ou “-vermögen”). Ao invés, pois, propomos que “Einbildungsfähigkeit” se entenda e traduza por “capacidade de imaginação” (ou “de imaginar”), ou, o que é também possível, “capacidade de ficcionação” (ou “de ficcionar”), por um lado, no primeiro caso, fazendo inteira justiça à imaginação – e à imagem – contida no termo “Einbildung”, por outro, no segundo, “ficcionação” ou “ficcionante” respeitando o termo “fingendi”, o termo latino que Kant sempre aduz quando quer caracterizar a sua própria “Einbildung” alemã. Para além disto, propomos que o termo “Einbildungskraft” se entenda e traduza, então e somente, à letra, por “faculdade de imaginação”. Assim, espera-se, não só se depurará o termo “Einbildungskraft” do fardo semântico excessivo e deveras nocivo com que ele há muito vem sendo sobrecarregado, como se aduz carga semântica a um termo até hoje não raras vezes despojado dela, o termo “Einbildungsfähigkeit”, o que certamente vai mais ao encontro da colocação dos próprios termos no âmbito estético-antropológico da obra de Kant.  

 

 

 

 

III. O problema suplementar entre “Einbildungskraft” e “Imagination”

 

 

 

            Esclarecida que está a diferença conceptual entre os termos em questão, e depurado que está o conceito de “Einbildungskraft”, é-nos agora possível ver o termo com maior nitidez, e pensar se não haverá também nele, e não apenas na sua família de palavras, um qualquer problema suplementar.  

            A nosso ver, esse problema existe; e, uma vez mais, não sem novas implicações para a temática da difícil compreensão do termo kantiano “imaginação”. Ele é por Kant posto, que seja do nosso conhecimento, uma vez apenas; mas, nessa vez única, a questão é apresentada de tal modo inequivocamente, que merece a nossa consideração.

            O passo em questão surge em Anthropologie-Collins, e reza: “Imaginação (Einbildung), independente de toda a intuição sensível, designa-se por imaginação (Imagination)” (AA 25.1: 78). Logo à primeira vista, nota-se que não é este um daqueles casos frequentes em Kant, ou em Baumgarten, de um uso próximo e enfático de um termo alemão e do seu correspondente latino, ou vice-versa. Não. Os termos “Einbildung” e “Imagination” são aqui por Kant explicitamente unidos tendo em vista, justamente, a sua separação; e com eles, aduzimos nós, também “Einbildungskraft”, “Einbildungsvermögen”  e “Einbildungsfähigkeit” se vêem de algum modo afastados de “Imagination”; note-se: afastados daquele termo de raíz latina a que, em qualquer outra situação e contexto, imediatamente recorreríamos para explicar e traduzir o termo alemão “Einbildungskraft”. Numa palavra, pois, Kant cinde aqui aparentes correspondentes naturais. Mas, como veremos, não sem razão.

            Acontece que, lendo a citação com atenção, é visível o objecto da mesma. Kant refere-se ao tópico com que terminámos a nossa secção II, e que é no fundo, para si, o problema maior da imaginação humana num respeito prático-pragmático. A saber, Kant pergunta-se qual a relação – se uma de intimidade, ou uma de distância – da representação com o objecto representado; e, por conseguinte, ao mesmo tempo, qual a verdadeira eficácia da faculdade de imaginação, enquanto faculdade de representar humana, ao designar o mundo. Pois, dir-se-ia desde já à luz da nossa citação, se ela for dependente de toda a intuição sensível (e, por conseguinte, tiver conceito), ela é “Einbildung”; se ela for independente da intuição sensível (não-conceptual), ela é “Imagination”.

            Ora, o problema pode parecer facilmente resolúvel, e isso se pensarmos na distinção entre faculdade de imaginação reprodutiva e faculdade de imaginação produtiva. Pois, segundo parece, na primeira, a faculdade de imaginação lida com imagens que têm uma ligação próxima ao objecto, que, por conseguinte, requerem intuição sensível; e na segunda, a faculdade de imaginação lida com imagens que têm uma ligação remota com o objecto, que, por conseguinte, têm de dispensar intuição sensível. E se pensarmos que reprodutiva e produtiva são duas dimensões diferentes de uma e a mesma faculdade, então isto poderia bastar para resolver o problema. Contudo, note-se, Kant não se refere aqui à faculdade de imaginar propriamente dita, antes a algo mais essencial: a saber, à imaginação humana em si (“Bildungs-Vermögen”), e à capacidade que a mesma tem para designar o objecto em ausência deste – que é, no fundo, aquilo que interessa à faculdade de imaginação (“Einbildungskraft”), que terá de aplicar os resultados da primeira. E, portanto: sim, estas duas dimensões da faculdade de imaginação interessam para o caso; mas elas são meras repercussões de duas modalidades essenciais do imaginar humano, uma que tem presente a representação originária, e a outra que não tem, nem tem de ter presente, essa mesma representação.

            Assim, ao expor o problema por palavras próprias, vimo-lo já, Kant diz que a imaginação humana é o trazer à imagem de coisas ausentes. Isto, porém, acarreta um problema incontornável. A saber, por um lado, diz Kant, todas as representações e imagens da faculdade de imaginação, reprodutiva ou produtiva, têm de ter a sua origem em uma impressão sensível. Isto é, às imagens tem de subjazer pelo menos alguma relação com o objecto, pois não existem imagens criadas a partir do nada. O que, aliás, não levanta nenhuns problemas se considerado pelo prisma da faculdade de imaginação reprodutiva, que está inequivocamente sob o controlo, e ao serviço, das superiores faculdades do ânimo. Mas, por outro lado, diz Kant, a faculdade de imaginação, quando alavancada pelo engenho e o génio – no fundo, na sua dimensão produtiva, ou poiética – traz à cena imagens que, não obstante, Kant apelida de novas, e que nisso não parecem estar em forte relação – ou não estão, com efeito, em nenhuma relação – com a impressão sensível, ou com o objecto. Quer isto dizer, pois, que em várias lições de antropologia sobre imaginação, e faculdade de imaginação, Kant considera simultaneamente uma necessidade de as imagens da nossa produção imaginativa terem de advir de um objecto – terem de ter intuição sensível –, e a possibilidade de as imagens da nossa produção imaginativa poderem não ter ligação com o objecto, serem dele desprendidas e livres – no fundo, não terem intuição sensível possível, senão aquela que elas mesmas, por si só, põem em marcha. Numa palavra, Kant considera, até este ponto, a dependência em relação ao objecto por parte da imaginatividade humana (a “Einbildung”), em contraposição, ou em relação simultânea com a independência em relação ao objecto da mesma (a “Imagination”). Isso mesmo, aliás, propõe Kant na nossa citação. Mas, perguntamos, qual é a relação de ambas as modalidades da imaginatividade humana? Ou antes, qual é o porquê de Kant as focar tão claramente, se elas parecem expressar uma contradição e trazer consigo um problema incontornável?

            A resposta a este dilema, explica-a Kant recorrentemente. Acontece, pois, que na disposição do ânimo motivada pela faculdade reprodutiva, à imaginação, enquanto “Einbildung”, está como fundamento um objecto. Isto é, à imagem subjaz uma impressão sensível que faz com que a representação da imaginação respeite o preceito de ter de ter um objecto anterior. Por isto, aliás, parece Kant entender o que atrás denominou “Einbildung”, por oposição a “Imagination”. Já no caso da imaginação produtiva, este preceito parece ter de ser suprimido. Pois ou a imagem vem de um objecto, é, dir-se-ia, antiga, não-nova e, por conseguinte, ela liga-se ao passado – é memória, e entendimento –, ou ela não vem de um objecto, é nova, fruto de pura invenção – é fantasia e entendimento. Ora, Kant parece aqui tomar a sua decisão, e embora mantendo que não há representações a partir do nada, diz que as representações da faculdade de imaginação produtiva, do engenho, do génio, da poesia são de facto novas: “A faculdade de imaginação é o fundamento de todas as invenções, pois logo que alguém quer descobrir algo novo, ele tem de representar algo que ainda não existia (was noch nicht da war)” (AA 25.1: 76); e reitera, dizendo que imaginação “é  a representação daquilo que não esteve nos sentidos”. Assim, a pergunta é: as representações essencialmente imaginativas, como são as da poesia, são elas velhas ou novas, passado ou futuro? Ora, postos perante um dilema que ameaça não se resolver ou por uma ou por outra via, então talvez seja de pensar, como Kant, uma via intermédia do mesmo: elas são a um tempo velhas e novas. Mas, note-se, as representações criativas da imaginação não são sem mais, a um tempo, “Einbildung” e “Imagination”; nem elas são criação e repetição; nem assim as poderia perceber o ser humano. Elas são, isso sim, “Einbildung” por um prisma, e “Imagination” por outro prisma de uma mesma questão; isto é, elas são providas de intuição sensível por uma dimensão, e ao mesmo tempo desprovidas de intuição sensível por outra; e só a compreensão da nuance diferenciadora entre estas duas dimensões nos pode ajudar a resolver a subtil visão que Kant tinha do problema.

Assim, diria Kant, as representações da capacidade de ficcionar humana, mesmo que vistas como “Imagination”, têm de ter sempre uma qualquer ligação com o passado; pois o incontornável preceito do seu passado objectual, não o podem elas transgredir. Outra coisa que não isto, aliás, e as representações nada teriam em si de humano, e que as ligasse a um fundo experiencial. Elas seriam quimeras, ou absurdos. As imagens da “Imagination”, porém, enquanto metáfora viva que são, não são meras imagens; elas não são meras palavras, nem muito menos meras palavras com uma ligação linear ao objecto que necessariamente as originou. Não. Bem pelo contrário, elas, como no engenho, ou no génio, são imperceptíveis composições de representações, ou partes de representações, entre si; representações essas que, embora advindo cada qual e por si de um fundo consabido – de uma intuição sensível em particular –, não são porém assim formadas, nem assim apresentadas à faculdade de julgar e ao entendimento, antes o são sob a forma desses mesmos novos construtos. O exemplo dá-o Kant no § 49 da Crítica da Faculdade do Juízo. A saber, a imagem de um homem perturbado, cujo espírito está toldado por ira e desejo de vingança, vale por si, o mesmo se podendo aplicar à imagem de um mar tempestuoso. Estas, dir-se-ia, são imagens da “Einbildung”, até porque a “Einbildung” subjaz no fundo a todas as imagens. Mas dizer que o espírito irado de um homem é como um mar revolto: isso é um exemplo de uma criação da “Imagination”, pois não há nenhuma representação que assim nos tenha sido dada, isto é, nem de um homem irado, nem de um mar tumultuoso enquanto uma só e a mesma coisa. Assim, o que ocorre aqui? Ocorre, sugere Kant, que a “Imagination” surge aqui como nova composição, ou recomposição, de imagens da “Einbildung”. O que significa, por um lado, que as representações po(i)éticas da “Imagination” advêm de facto do fundo experiencial da alma humana, mas também que, no acto de compor tais imagens de tal fundo, essas imagens são de tal modo revitalizadas, reformuladas, numa palavra, renovadas, que, ao surgirem estas na alma, a alma tacitamente assume, e tem de assumir, que estas nunca estiveram antes em si, e que ela nunca delas teve conhecimento prévio mediante uma intuição sensível.

Assim, conclui-se, por um prisma, todas as representações, mesmo as poéticas, já estiveram outrora no espírito humano; mesmo que disto o espírito humano apenas tenha conhecido um então irreconhecível gérmen. Mas, por outro prisma, tais representações nunca estiveram de facto, isto é, enquanto tal, sob aquela mesma forma inovadora, nova, original, no espírito humano. E, por conseguinte, poder-se-ia dizer que as imagens da “Einbildung” estiveram, e estão no espírito humano, por conta da sua não-inventividade; pois o que elas fazem, como se disse, é apenas substituir a ausência do objecto, não de todo reconfigurar, ou pôr em causa, a sua relação com este. Mas as imagens da “Imagination” – as da poesia – fazem algo diferente. Elas criam de facto novidade, e inventam, vestindo as coisas com outras roupagens, e outras cores que não as do árido quotidiano[15]. E se por um lado elas fazem jus ao objecto, e este lhes dá o cunho de verdade de que elas precisam para se manterem agarradas ao mundo, por outro lado, elas criam a ilusão (controlada pelo entendimento)[16] de que se abre com elas algo totalmente novo, despegado do objecto e por conseguinte do passado; o que faz de tais representações passíveis de serem ora fruto de “Einbildung”, se vistas pelo prisma desta, ora fruto de “Imagination”, se vistas pelo prisma daquela.

 

Bibliography

 

BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb (1739), Metaphysica, Halae Magdeburgicae: C. H. Hemmerde.

 

EISLER, Rudolf (1984), Kant-Lexikon, Hidesheim, Zürich, New York: Georg Olms Verlag. (K-L)

 

KANT, Immanuel (1901ff.), Gesammelte Schriften. Hrsg. Von der Königlich-Preussischen Akademie der Wissenschaften zu Berlin (Akademie-Ausgabe), Berlin: Georg Reimer. (AA)

 

SCHMID, Carl Christian Erhard (1798), Wörterbuch zum leichtern Gebrauch der Kantischen Schriften, hrsg. von Norbert Hinske, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1996. (W)   

 

WOLFF, Christian (1962-), Gesammelte Werke, hrsg. von Jean Ecole et al., Hildesheim, Georg Olms.     

 

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[1] O uso dos termos em pauta entre aspas, e no seu original alemão, não é de todo casual. O artifício, que será mantido sempre que possível neste texto, tem por intenção salientar as devidas diferenças linguísticas e conteudísticas entre tais conceitos na língua original e na língua do autor deste artigo, bem como, mediante estas mesmas diferenças, e sua proposta de compreensão e tradução, apresentar-se como exemplo para outros autores de outras línguas que as achem pertinentes.

[2] Porque não desconhecemos que os vários termos em questão, e especialmente o termo “Einbildungskraft”, têm na obra kantiana diferentes estatutos consoante eles sejam considerado na parte crítica, ou na parte não-crítica da mesma, e porque entendemos que diferentes estratégias de tradução têm de ser adoptadas em ambos os casos, eliminamos desde já qualquer dúvida a este respeito, e afirmamos que este texto se debruçará apenas sobre os conceitos de “Einbildungskraft”, “Einbildungsfähigkeit” e “Imagination” em um respeito antropológico e/ou estético, não devendo nem podendo as suas ilações ser estendidas a outros planos do pensamento kantiano.

[3] Cf. AA 25.2: 750.

[4] Schmid, Carl Ch. E., Wörterbuch zum leichtern Gebrauch der Kantischen Schriften, hrsg. von Norbert Hinske, Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1996.

[5] Com respeito às citações de autor, recorremos ao método (Abreviatura da obra, número de volume, número de página), sendo que a abreviatura correspondente se encontra discriminada na bibliografia. Todas as citações foram traduzidas do original alemão para língua portuguesa. A tradução das mesmas é da minha autoria.

[6] Eisler, Rudolf, Kant-Lexikon, Hidesheim, Zürich, New York: Georg Olms Verlag, 1984.

[7] Isto, porém, não negando que mesmo neste domínio Kant por vezes parece confundir os termos, ou usá-los de modo indiferenciado.

[8] WOLFF, Christian (1738), Psychologia Empirica, Pars I, Sectio II, Caput I “De differentia perceptionum formali” (GW II.5), in  Gesammelte Werke (1962-), hrsg. von Jean Ecole et al., Hildesheim, Georg Olms.

[9] BAUMGARTEN, Alexander Gottlieb (1739), Metaphysica, Halae Magdeburgicae: C. H. Hemmerde.

[10] Cf. AA 25.1: 76-78.

[11] Isso mesmo diz aliás Kant, quando sub-divide aquilo que entende por Bildungsvermögen (cf. AA 25.1: 76-78), e nela entende três secções distintas: 1. Faculdade de reimaginação, “Nachbildungs-Vermögen” (facultas refingendi), 2. Faculdade de imaginação, “Einbildungskraft” (facultas fingendi), e 3. Faculdade de preimaginação, “Vorbildungs-Vermögen” (facultas praesagiendi).

[12] Aduzimos nós: e isso, para Kant, tanto em consciência (como o demonstram os tópicos antropológicos da faculdade de poetar, o engenho, o génio ou até a perturbação mental), como em inconsciência (como o demonstram os tópicos das representações obscuras ou do sonho).

[13] Cf. AA 25.2: 868.

[14] Cf. AA 7: 246.

[15] As imagens da poesia, ou a ilusão, diz Kant, são “a verdade decorada, vestida com a veste da aparência” (AA 15.2: 906).

[16] Ao descrever este jogo da poesia, Kant diz dele que “mantém num agradável movimento o ânimo, fazendo-o como que flutuar nos confins entre o erro e a verdade, e estimula[ndo]-o admiravelmente, pois ele está consciente da sua sagacidade contra as seduções da aparência” (AA 15.2: 907).