Hölderlin, leitor
de Kant
Hölderlin as
a reader of Kant
Sílvia Bento·
Universidade do Porto, Portugal
Resumo
O
presente ensaio pretende estudar a influência da filosofia de Kant no âmbito
dos escritos poetológicos de Hölderlin sobre as tragédias de Sófocles Rei
Édipo e Antígona, Anmerkungen zum Oedipus e Anmerkungen
zur Antigone. O tratamento dos conceitos centrais elaborados por Hölderlin,
tais como Gottes Fehl e kategorische Umkehr – que forma o núcleo
deste ensaio – apresenta-se desenvolvido segundo o quadro filosófico kantiano.
É nosso propósito interpretar a especificidade da leitura hölderliniana de
Kant, especialmente do seu carácter não-reconciliatório e não-monista, e
diferenciá-la da filosofia posterior do Idealismo Alemão (principalmente de
Hegel e de Schelling). A análise de “Hölderlin et Sophocle” de Jean Beaufret e
de “Métaphrasis” de Philippe Lacoue-Labarthe constitui o nosso ponto de partida
teórico.
Palavras-chave
Hölderlin; Kant; Gottes Fehl; kategorische
Umkehr.
Abstract
This paper intends to study the impact of Kant’s
philosophy on Hölderlin’s poetological writings devoted to Sophocles’ tragedies
Oedipus and Antigone, Anmerkungen zum Oedipus and Anmerkungen
zur Antigone. The treatment of Hölderlin’s chief concepts, such as Gottes
Fehl and kategorische Umkehr, which forms the heart of this paper,
is developed according to the Kantian philosophical framework. We propose
interpreting the specificity of Hölderlin’s reading of Kant, especially its
non-reconciliatory and non-monist character, and differentiate it from the
subsequent philosophy of German Idealism (namely Hegel and Schelling). The
analysis of “Hölderlin et Sophocle” by Jean Beaufret, and “Métaphrasis” by
Philippe Lacoue-Labarthe is our starting point.
Keywords
Hölderlin; Kant; Gottes Fehl; kategorische
Umkehr.
Introdução
As seguintes
palavras de Jean Beaufret, escritas em “Hölderlin et Sophocle” (1965),
constituem o mote perfeito para o desenvolvimento do presente ensaio:
Um tel rapport de Hölderlin à Kant, resté lui-même secret à la philosophie,
est chronologiquement antérieur au développement de l’idéalisme allemand que
vont cependant porter si haut les deux compagnons de jeunesse que furent, pour
Hölderlin, Hegel et Schelling (Beaufret 1965, p.26)
Hölderlin e Kant:
eis a aliança filosófica sublinhada por Beaufret. O contexto de tal proposta
poderá, não obstante, soar estranho: trata-se de um escrito no âmbito do qual o
germanista procura delinear os fundamentos filosóficos da teoria da tragédia de
Sófocles tal como desenvolvida por Hölderlin. É, pois, no contexto das Notas
de Hölderlin em torno de Rei Édipo (Anmerkungen zum Oedipus)
e Antígona (Anmerkungen zur Antigone), as duas tragédias
sofoclianas que o poeta alemão traduziu nos primeiros anos do século XIX (e que
foram publicadas em 1804), que Beaufret encontra os vestígios de uma
aproximação filosófica entre Hölderlin e Kant. Mais do que isso: em boa
verdade, Beaufret pretende sustentar que o elemento filosófico presente em
Hölderlin é, sem mais, kantiano – e que a singularidade da influência de Kant
em Hölderlin se afigura profundamente distinta, porque cronologicamente
anterior, dos modos de interpretação de Kant segundo o idealismo que se lhe
seguiu, nomeadamente o de Schelling e de Hegel.
Este último ponto
requer especial atenção: como compreender a singularidade da influência de Kant
sobre o pensamento e a obra de Hölderlin? A resposta avançada por Beaufret
convoca a teoria da tragédia desenvolvida pelo poeta alemão, tal como presente
nos textos poetológicos que acompanham as traduções de Rei Édipo e Antígona,
as Sophokles-Anmerkungen, compostas pelas já mencionadas Anmerkungen
zum Oedipus e Anmerkungen zur Antigone. Se o idealismo de Schelling
e de Hegel seguira o rumo de uma aspiração de reconciliação, de pendor
unificador e monista, das linhas de
pensamento estruturantes da filosofia kantiana, a visão de Hölderlin em torno da
tragédia – que repousa, com efeito, sobre fundamentos filosóficos explícitos –
integra uma relevante e contínua dedicação às consequências metafísicas da Crítica
da Razão Pura, decorrentes, por sua vez, do estabelecimento da distinção
entre fenómeno e númeno e da correlativa determinação dos limites do
conhecimento humano. É, assim, a Crítica da Razão Pura de Kant – com a
devida consideração da intensidade dos seus dualismos e divisões, tal como
sublinhados por Dieter Henrich em Between Kant and Hegel (2003) – que constitui
a base filosófica das posições de Hölderlin em torno da tragédia de Sófocles e
do seu herói mais importante, Édipo. Mas, neste ponto, importaria elucidar o
seguinte: Édipo é, aos olhos de Hölderlin, o arquétipo do homem moderno,
perspectivado sob uma luz filosófica que é, toda ela, kantiana.
Também Philippe
Lacoue-Labarthe, um dos mais reputados estudiosos do Frühromantik no
contexto cultural de língua francesa, se debruça sobre a teoria da tragédia
desenvolvida por Hölderlin nas Sophokles-Anmerkungen, salientando o
quadro filosófico kantiano que a envolve e a determina. Em “Métaphrasis”, o
primeiro de dois ensaios publicados sob o título Métaphrasis suivi de Le
théâtre de Hölderlin (1998), Lacoue-Labarthe esclarece o sentido da hybris
trágica de Édipo, o mais filosófico dos heróis (o decifrador de enigmas), tal
como teorizada por Hölderlin: a falta trágica, a hybris, consiste, pois,
na transgressão dos limites da condição humana finita – num sentido kantiano,
justamente. O problema da tragédia de Édipo é um problema filosófico, e que
deverá ser compreendido à luz da “transgression des limites de la condition
finie de l’homme qu’avait établies, ou reconnues, Kant” (Lacoue-Labarthe 1998,
p.15). Trata-se, numa palavra, de uma transgressão que somente poderá ser
plenamente perspectivada como transgressão metafísica; ou, segundo a expressão
de Lacoue-Labarthe, “outrance métaphysique” (Lacoue-Labarthe 1998, p.15).
Eis o propósito do
presente ensaio: a partir da leitura dos textos de Beaufret e de
Lacoue-Labarthe, delinear uma tentativa de interpretação do elemento filosófico
kantiano nas teorizações de Hölderlin em torno de Rei Édipo e de Antígona,
tal como expostas nas Anmerkungen, escritas pelo poeta no momento em que
se dedicara a traduzir as tragédias. Uma advertência prévia, relativamente ao
hermetismo da linguagem e dos conceitos utilizados por Hölderlin, deverá ser, aqui,
formulada: este ensaio propor-se-á oferecer uma modesta análise das noções,
expressões e perspectivas hölderlinianas que poderão constituir matéria de
convocação do pensamento de Kant, não pretendendo sustentar a hipótese de um Hölderlin
kantiano nem a existência de uma afinidade teórica decisiva e absoluta
entre o poeta e o filósofo. A figura de Hölderlin, ainda demasiado velada a
nossos olhos, não se apresenta passível de tais intentos. Tal seria possível
com Schiller, sempre explicitamente kantiano, não reservando quaisquer segredos
para os seus intérpretes filósofos… mas Hölderlin parece pertencer a uma outra
constelação espiritual, que dificilmente conseguimos designar de modo claro e
definitivo.
Hölderlin, o Frühromantik
e o problema da concepção analítica da razão
A apreciação da
influência do quadro filosófico kantiano no âmbito da obra poética e teórica de
Hölderlin assume-se de crucial importância para Manfred Frank. No brilhante
estudo Der kommende Gott. Vorlesungen über die Neue Mythologie (1982),
Frank procura pensar a emergência do Frühromantik à luz de uma postura
filosófico-estética que se propunha contrária à predominância de uma concepção
analítica da razão. A tomada de consciência por parte dos Primeiros Românticos
relativa ao domínio de uma razão analítica, limitada na sua capacidade de
pensar supostos fundamentos metafísicos segundo uma lógica especulativa
substancialista, impõe-se como problemática filosófica no âmbito do Frühromantik.
O título da obra de Frank invoca, de modo explícito, Hölderlin e a sua elegia Brot
und Wein: a necessidade de uma nova mitologia – o deus que há-de vir, der
kommende Gott (tal como Hölderlin escreve no seu poema) – decorre, pois, do
confronto romântico com a filosofia kantiana e com a configuração de uma razão
limitada na sua capacidade de pensar fundamentos metafísicos enquanto
determinações constitutivas. A expressão der kommende Gott traduziria,
neste sentido, uma nova ânsia por um novo Absoluto, fundacional e legitimador
do pensamento e da vida dos seres humanos em comunidade, partindo da avaliação
crítica de um quadro cultural que o próprio Hölderlin definira como marcado
pela ausência de deus, Gottes Fehl. A crise do fundamento – eis a
temática sustentada por Frank para perspectivar a herança kantiana enquanto
problemática filosófica de Hölderlin e dos seus contemporâneos.
A proclamação da
necessidade de uma Nova Mitologia, tal como desenvolvida por Hölderlin e pelo Frühromantik,
delineia-se na sombra da velha querelle des anciens et des modernes,
reformulada no âmbito do universo cultural alemão de finais do século XVIII e
inícios do século XIX. A Nova Mitologia, tão ansiada pelos Românticos enquanto
valor supremo e fundacional do pensamento e da vida em sociedade, integra,
assim, a convocação dos Antigos e dos seus mitos, manancial cultural,
artístico, poético e, não menos importante, educador e formador do ser humano –
no sentido de Bildung, justamente. Diríamos, pois, que, no contexto do Frühromantik,
a querelle “antigos vs. românticos” desdobra-se numa problematização
crítica em torno de Bildungen distintas, a paideia grega e a Bildung
moderna; em boa verdade, o modo como o Frühromantik se pensa a si mesmo,
ao seu tempo cultural e às suas potencialidades artísticas e poéticas radica,
de modo invariável e insistente, num contínuo confronto com a Antiguidade grega[1].
Por conseguinte, e seguindo as elucidações de Frank, importaria compreender a
centralidade da temática do mito no interior do Frühromantik como móbil
de teorização acerca da modernidade enquanto tal e, correlativamente, do seu
carácter distintivo face à cultura grega antiga: o elemento mítico, tal como
teorizado pelos Românticos, alicerça-se sobre uma concepção cultural que
procuraria refundar a filosofia moderna, partindo da consciência crítica da
prevalência de uma concepção analítica da razão que delineara, por sua vez, uma
nova metafísica (ou seria mais correcto, anti-metafísica?) traçada na
ausência de qualquer fundamentação ontológica. A unidade metafísica dos antigos
– a unidade fundamental do ser –, de que a mitologia se anuncia como expressão
cultural e artística, dá lugar, no seio da modernidade, à cisão, à separação, à
divisão, ao fragmento e, por fim, à carência de um fundamento supremo, seja ele
mítico, seja ele religioso. Por sua vez, a aspiração de uma nova mitologia
traduziria, para os Românticos, a expressão utópica de um novo absoluto, que a
modernidade não se afiguraria capaz de reconhecer ou de elaborar para si mesma.
Cite-se Frank a este respeito:
“Fundamentado”
significa, aqui, derivado de algo, não no sentido de uma simples relação causal
como nas ciências da natureza, mas no sentido de uma justificação. Mas
“justificar algo” ou (como os Românticos gostavam de dizer) “legitimar algo”
significa: relacioná-lo a um valor indiscutível para os seres humanos. E entre
os seres humanos (de uma mesma população), o único elemento indiscutível num
sentido radical é apenas aquilo que é considerado sagrado – incontestável,
omnipresente, omnipotente. (Frank 2015, p.11)[2]
Tenha-se presente
o modo como Frank alude à necessidade de recusar qualquer concepção provinda
dos modos de causalidade natural enquanto quadro de pensamento passível de
acolher, integrar e desenvolver o elemento fundacional, o mito. A alusão
apresenta-se, pois, formulada sob o signo da recusa, ou da impossibilidade – o
mesmo poderia ser dito acerca da razão analítica, inexorável herança filosófica
kantiana com a qual o Frühromantik se confronta. O ensaio Iduna, oder
der Apfel der Verjüngung de Herder, publicado em 1796 na revista Die
Horen, dirigida por Friedrich Schiller, apresenta-se mencionado por Frank
como um dos primeiros textos do Frühromantik a integrar a proclamação da
exigência de uma Nova Mitologia fundacional, perspectivada por Herder à luz de uma
concepção declaradamente estética e poetológica; do mesmo modo, o enigmático
escrito Das ällteste Systemprogramm des deutschen Idealismus (ou
simplesmente Systemprogramm, tal como é corrente designá-lo nos meios
germanísticos), possivelmente escrito entre 1796 e 1797 e da autoria conjunta
de Schelling, Hegel e Hölderlin, constitui objecto de estudo por parte de
Frank, que o concebe como o texto que alia à (já existente) concepção estética
e poetológica de Herder o sentido político-comunitário que deveria sustentar a
necessidade de desenvolvimento de uma Nova Mitologia.
Não obstante, o
elemento teórico mais relevante de Systemprogramm, constituindo a
conclusão do misterioso escrito, consiste na proposta da beleza e da poesia
como solução reconciliadora de todas as separações e divisões que a modernidade
desenvolvera e reconhece como suas, expressando uma nova utopia filosófica,
estética e social que se afiguraria formulada à luz da consideração da
mitologia enquanto religião sensível – tal como acontecia com os gregos. A
poesia – sustentada numa Nova Mitologia – anunciar-se-ia, pois, na sua
possibilidade de encontrar uma fundamentação simbólica para a razão analítica,
voltando a ser aquilo que fora na antiguidade grega: a mestre da Humanidade.
Uma vez alcançado este ideal, a poesia, alicerçada num novo manancial de mitos,
recuperaria a sua maior dignidade. Eis a função fundacional da poesia, tal como
concebida pelo Frühromantik, no momento da ausência de legitimação da
razão analítica. Tal como sublinham insistentemente os Românticos, a poesia
necessita da mitologia – tal como acontecera na antiguidade grega; uma poesia
que não repouse sobre nenhuma mitologia será, tão-somente, uma poesia débil.
Tal projecto estético – ou, porventura, tal utopia estética –, assim desenhada
pelos Primeiros Românticos, concerta-se, de modo íntimo, com a teorização
cuidada acerca da modernidade, dos seus fundamentos e princípios, e das suas
potencialidades filosóficas e poéticas. Trata-se da modernidade pensando-se
a si mesma, segundo um gesto que lhe é definidor: a auto-reflexividade.
Uma filosofia da
tragédia: em torno das expressões Gottes Fehl e kategorische Umkher
Se o panorama
filosófico e cultural que sucede a Kant – nomeadamente o Frühromantik e
o designado Idealismo Alemão – se caracteriza por um intento marcadamente
reconciliador e unificador das separações e divisões presentes na filosofia
kantiana, importaria, em todo o caso, tomar em atenção uma interessante
excepção: trata-se, pois, de Hölderlin, o poeta que, em determinados momentos
da sua obra literária e teórica, procurara pensar a filosofia de Kant sem dela
fazer decorrer nenhum corpus filosófico de orientação reconciliadora ou
unificadora. É esta a proposta que a análise de Jean Beaufret das Sophokles-Anmerkungen
de Hölderlin – que poderemos ler como uma tentativa de delineamento de uma
filosofia da tragédia – pretende oferecer e sustentar.
No ensaio “Hölderlin
et Sophocle” (que acompanha a edição francesa (1965) das notas sobre Rei
Édipo e Antígona de Hölderlin), Beaufret procura reconstituir as
linhas de pensamento estruturantes de uma teoria da tragédia desenvolvida pelo
poeta alemão. Antes de avançar, haveria que ter presente que Hölderlin, aquando
da elaboração das traduções das duas tragédias mais célebres de Sófocles, se
encontrava, ele mesmo, a escrever a sua tragédia moderna, Der Tod des
Empedokles, drama inacabado que fora objecto de três versões diferentes
entre 1797 e 1800[3]. No
mencionado ensaio – cujo título salienta, de modo claro, o diálogo que
Hölderlin mantém com a obra de Sófocles –, Beaufret esclarece o carácter
excepcional das tragédias sofoclianas para o poeta alemão: é, pois, nas tragédias
de Sófocles que Hölderlin encontra a marca da ausência de deus – ou, segundo a
expressão original presente no último verso do poema Dichterberuf, Gottes
Fehl.
Neste sentido, e
tal como elucida Beaufret, a teorização sobre a tragédia desenvolvida por
Hölderlin decorre ao longo de um intenso diálogo com Sófocles, exclusivamente
Sófocles, o poeta trágico que colocara no centro da sua obra o elemento
enigmático que envolve a linha de separação, o limite, a fronteira entre os
deuses e os seres humanos – uma linha de separação em direcção à qual o herói
trágico se lança e se aventura, violando-a fatalmente, e cometendo, assim, a hybris
trágica, inteiramente derivada da tentativa (excessiva, no sentido
eminentemente trágico) de superação da sua condição mortal e de afirmação-de-si
como um deus, isto é, um ser ilimitado (pensemos em Édipo, em Antígona, em
Creonte…). A excepcionalidade que Hölderlin encontra em Sófocles – e que parece
invocar a tese de Aristóteles acerca da excelência do poeta[4]
– não poderá ser antecipada na obra de, por exemplo, Ésquilo, cujas tragédias
representam a superação ou extravasamento dos limites tendo como fim o retorno
à ordem cósmica e divina que expia toda a hybris; tal não acontece em
Sófocles, pois, nas suas tragédias, tal como lidas por Hölderlin, é o próprio
limite que se dissimula, que se eclipsa, permitindo que o herói se lance,
perigosamente, numa zona de indistinção (entre o humano e o divino) na qual
acaba por perder-se – e tal ocorre no exacto momento em que aquele, o herói, proclama
ser mais do que humano, isto é, deus. A este propósito, Beaufret cita o início
da terceira parte de Anmerkungen zum Oedipus (optamos por recorrer à tradução francesa de François
Fédier, tal como seguida por Beaufret):
La présentation du tragique repose principalement sur ceci que le
formidable, comment le dieu-homme s’accouple, et comment, dans l’effacement de
toutes limites, deviennent un, dans la fureur, la puissance panique de la
nature et le tréfonds de l’homme, se conçoit par ceci que le devenir-un
illimité se purifie par une séparation illimitée. (Hölderlin 1965, p. 63)
Uma das virtudes
do ensaio de Beaufret consiste na apreciação cuidada da elaboração filosófica –
e de toda a trama conceptual – que determina as Sophokles-Anmerkungen de
Hölderlin. Neste sentido, o germanista elege a noção kategorische Umkher,
o desvio categórico[5]
(dos deuses em relação aos humanos), presente nas Anmerkungen zum
Oedipus (Hölderlin 1965, p.65), como elemento central da teorização em torno
de Rei Édipo. O confronto entre Édipo e os deuses, no âmbito do qual o
herói se assume na sua hybris de superação da condição humana – Édipo é
o sábio, o decifrador de enigmas e, ao mesmo tempo, o herói sem deus, o herói ateu
– deverá ser lido à luz de um movimento de afastamento, de distanciamento, de
retirada dos deuses em relação aos homens, em relação ao próprio Édipo.
Trata-se do momento em que os deuses desviam o seu rosto dos humanos, deixando
de contemplá-los, e instaurando, assim, a noite, a escuridão e o luto – tal
como Hölderlin escreve na sua elegia Brot und Wein (poema em torno do
qual poderíamos debruçar-nos ad infinitum): “Quando o Pai desviou dos
humanos seu olhar” (Hölderlin 2021,
p.400). A envolvência trágica de Édipo é, sem mais, inteiramente moderna –
Édipo é o herói trágico moderno, ou, segundo as palavras de Hölderlin, hespérico,
ocidental, isto é, não-grego.
A expressão kategorische
Umkher, que marca as Anmerkungen zum Oedipus – integrando uma carga
semântica e metafísica muito próxima da de Gottes Fehl (não esqueçamos,
pois, a proximidade cronológica e, inclusivamente, temática, entre a poesia
tardia de Hölderlin e as Sophokles-Anmerkungen) – dificilmente poderá
ser lida sem pensar na possibilidade de uma alusão ao imperativo categórico
kantiano. Beaufret sublinha tal afinidade de conceitos, deliberadamente
introduzida por Hölderlin, procurando sustentar a relevância estruturante da
filosofia kantiana na teorização hölderliniana da tragédia de Sófocles. A este
respeito, Beaufret serve-se de todos os vestígios presentes na correspondência
de Hölderlin que poderiam apresentar-se passíveis de confirmação do fascínio e
da adoração do poeta alemão por Kant e pela sua filosofia. Leia-se,
primeiramente, um extracto da carta de Hölderlin a Neuffer, datada de inícios
de Dezembro de 1795: “pour l’instant, j’ai de nouveau cherché refuge auprès de
Kant, comme je le fais toujours quando je ne puis me souffrir” (Beaufret 1965,
p.17). E, de modo ainda mais enfático, importaria ler uma passagem da carta a
Karl Gock, datada de 1 de Janeiro de 1799, na qual consta a célebre expressão
hölderliniana acerca de Kant como o Moisés da nossa nação:
Kant est le Moïse de notre nation ; il l’a tirée de l’engourdissement
égyptien et l’a conduite dans le libre désert de sa spéculation, il a ramené de
la montagne sainte la loi qui est vigueur. Sans doute continuent-ils toujours à
danser autour de leurs veaux d’or et leur pot-au-feu leur manque
beaucoup ; ils devraient bien émigrer dans le plein sens du mot, gagner
une solitude quelconque pour se décider à cesser d’être les serviteurs de leur
ventre et à abandonner les costumes et opinions mortes, privées d’âme et de
sens, sous lesquelles gémit presque inaudible, et comme profondément incarcéré,
ce que leur nature vivante a de meilleur. (Beaufret
1965, pp.17-18)
Este é um dos
pontos fundamentais do ensaio de Beaufret. Segundo o germanista, a lei
kantiana, invocada por Hölderlin e tomada como análoga da lei mosaica, não
poderá deixar de ser avaliada como uma expressão que remete para o imperativo
categórico kantiano. A revelação de tal imperativo traduz um apelo à nossa
“sobriedade nativa” (Beaufret 1965, p.18), assinalando a impossibilidade de o
ser humano se servir de uma pretensa razão intuitiva, não somente no plano
epistemológico e do conhecimento da natureza (pois este mesmo conhecimento é
discursivo, repousando sobre conceitos e, como tal, privado de um qualquer sentido de intuição
intelectual ou original dos objectos), mas também no âmbito da moralidade e da
religião (no âmbito das quais o conceito de deus se afigura como um postulado
prático, nunca como entidade passível de uma visão empírica, nem sequer como
conteúdo de conhecimento teórico). As linhas de pensamento fundamentais da Crítica
da Razão Pura, assim como a Crítica da Razão Prática, deveriam ser
aqui justamente convocadas. Para ilustrar tais considerações, Beaufret recorre
à carta de Kant dirigida a Hamann, datada de 6 de Abril de 1774: a moral
kantiana destrói as ilusões humanas de “entender a linguagem da razão
intuitiva” (Beaufret 1965, p.18), uma linguagem que, tal como Kant escreve, é
própria dos deuses – é, com efeito, “a linguagem dos deuses” (Beaufret 1965,
p.18) –, e não dos “filhos da terra” (Beaufret 1965, p.18), que somos nós. A respeito
da impossibilidade do uso humano de uma razão intuitiva, ou de um modo de
intuição intelectual não vinculado à experiência empírica, recordemos as
palavras de Kant nas últimas páginas da “Estética Transcendental” da Crítica
da Razão Pura:
Não é também necessário
restringir à sensibilidade do homem este modo de intuição no espaço e no tempo;
pode acontecer que todo o ser pensante finito tenha de concordar
necessariamente, neste ponto, com o homem (embora não possamos afirmá-lo decisivamente);
apesar desta universalidade, este modo de intuição não deixa de ser
sensibilidade, justamente por ser intuição derivada (intuitus derivativus)
e não original (intuitus originarius); não é, portanto, intelectual,
como aquela que, pelo fundamento acima exposto, parece só poder competir ao Ser
supremo, nunca a um ser dependente, tanto pela sua existência como pela sua
intuição. (KrV B 72: 72.29-37; 86-87)[6]
A interpretação de
tal influência kantiana à luz da expressão kategorische Umkerh de
Hölderlin conquanto possa soar inicialmente desconcertante, não se apresenta
destituída de um certo sentido de justeza filosófica. Pois, tal como assinala
Beaufret, a moral kantiana é privada de toda a teofania: não há lugar para a
visão de Deus (eis a impossibilidade do uso de uma pretensa razão intuitiva, ou
do recurso à linguagem dos deuses por parte dos seres humanos). A lei kantiana
(o imperativo categórico) ilustraria, assim, num plano filosófico, o sentido
poético das teorizações de Hölderlin em torno do afastamento, do retraimento,
ou da retirada do divino face ao humano – o desvio categórico dos deuses
relativamente aos seres humanos. O divino, não mais passível de plena
apresentação ou revelação, somente se manifesta ao humano através da ausência,
ou da impossibilidade da “representação intuitiva” (Beaufret 1965, p.19), isto
é, da impossibilidade de uma pretensa intuição directa e imediata do divino. A
moralidade kantiana encontra-se, aqui, plenamente inscrita, ainda que de modo
obscuro: a impossibilidade de uma representação intuitiva do divino concerta-se
com a configuração de uma moralidade – fundada sobre a lei moral, perspectivada
em relação com o sentimento de respeito pela mesma, manifestação da condição
racional finita do ser humano – que não integra nem requer uma metafísica que
afirme, num sentido especulativo, a existência de um ente superior ao ser
humano enquanto ser livre, pois, como bem sabemos, toda a moralidade repousa
sobre a autoridade da razão – ou da lei. A linguagem de Hölderlin,
eminentemente poética, traduz um pathos que a filosofia crítica de Kant
não partilha – todavia, tal não parece inviabilizar nem destruir a
perspectivação acerca da existência de uma tonalidade kantiana presente nos
poemas de maturidade, assim como na filosofia da tragédia, de Hölderlin.
Mas como inserir
Édipo, o herói que Hölderlin perspectiva como sendo arquetipicamente moderno (e
já não antigo), no âmbito de tais considerações? Segundo Beaufret, a figura
mítica de Édipo assinala a transgressão dos limites do conhecimento humano – a outrance
métaphysique, como a designará Philippe Lacoue-Labarthe lendo o ensaio de
Beaufret –, desrespeitando a distinção entre fenómeno e númeno e o carácter
imaculado – porque inteiramente prático, nunca teórico – do elemento
supra-sensível. Trata-se, pois, da impossibilidade de unidade e de
reconciliação (entre seres humanos e deuses), filosoficamente compreendida à
luz de uma transgressão plenamente metafísica, cumprida pelo mais filosófico
dos heróis trágicos, o decifrador de enigmas. Tais considerações hölderlinianas
em torno de Édipo, assim lidas a uma luz kantiana, poderão parecer demasiado
insólitas, mas o centro da nossa atenção deverá deter-se nas seguintes
elucidações avançadas por Beaufret: a influência da filosofia kantiana em
Hölderlin traduz uma orientação que não se coaduna com os intentos
reconciliadores do idealismo que sucede a Kant (referimo-nos especialmente a
Schelling e a Hegel), pois, como bem observa Beaufret, a teorização de
Hölderlin, ainda que não partilhe do brilhantismo filosófico dos seus
contemporâneos, mantém-se fiel à exigência kantiana de tomar em boa
consideração os limites do conhecimento humano – eis a temática do limite,
capital nas considerações de Hölderlin sobre Rei Édipo –, não procurando
eliminar as distinções radicais que se inscrevem na e que estruturam a
filosofia de Kant. A leitura de Kant por parte de Hölderlin, conquanto se
afigure marcada pela fragilidade filosófica e pela obscuridade cifrada, quase
secreta, da linguagem e dos conceitos utilizados, traduz uma singularidade
interpretativa que merece ser considerada e compreendida enquanto tal: antes
das elaborações monistas do idealismo daqueles que sucederam a Kant, Hölderlin
apresenta-se como um dos leitores mais fieis da filosofia kantiana, aquele que
não procurara desenvolver um novo sistema filosófico dela decorrente,
mas aplicá-la – preservando as suas linhas de pensamento estruturantes – a uma
original filosofia da tragédia, a tragédia de Sófocles, concebendo-a como um
prenúncio daquilo que é a modernidade e a sua complexidade metafísica.
Neste ponto, seria
pertinente esclarecer, em jeito de breve excurso, o nosso modo de interpretação
da filosofia kantiana, que é inteiramente devedor das posições de Dieter
Henrich, tal como expostas em Between Kant and Hegel (2003): a leitura
desenvolvida por Henrich em torno do pensamento de Kant apresenta como pedra de
toque a insistência na sua dimensão dualista – não monista –, por contraste com
o idealismo dos seus sucessores (especialmente Hegel). Com efeito, segundo o
olhar de Henrich, o pensamento kantiano não partilha um sentido de afinidade
com o idealismo que se lhe seguiu e que se arrogara da pretensão de se
apresentar, a si mesmo, como modo perfeito de continuação ou resolução
filosóficas do projecto kantiano: em Kant, sublinha Henrich, deparamo-nos com
uma metafísica (expressão que Henrich utiliza, mau grado a sua
envolvência controversa) profundamente dualista e marcada pela separação entre
o elemento teórico e o elemento prático, o mundo sensível e o mundo
inteligível, e totalmente privada de um fundamento total e unitário que se
afiguraria como conceito-único de todo o pensar. O monismo dos idealistas que
sucedem a Kant, alicerçado numa paixão espinosista, não constitui um
prolongamento do pensar kantiano, mas, com efeito, uma outra metafísica que é,
em última instância, estranha ao espírito do filósofo de Königsberg.
A figura da transgressão
metafísica: em torno da modernidade de Édipo
No prefácio que
abre a colectânea de ensaios intitulada Métaphrasis suivi de Le théâtre de
Hölderlin (1998), o eminente germanista Philippe Lacoue-Labarthe dá-nos
conta da quase inexistência de estudos académicos, filosóficos ou de outra
ordem, dedicados à teoria da tragédia desenvolvida por Hölderlin. Com efeito,
se a poesia de Hölderlin se constituíra como um objecto de aturada análise por
parte dos seus leitores filósofos – pensemos nos incontornáveis comentários
heideggerianos, qual névoa que obnubila Hölderlin, e que anulam qualquer
possibilidade de perspectivar o diálogo mantido pelo poeta com a filosofia do
seu tempo –, a sua teorização em torno da tragédia, tal como delineada nas Sophokles-Anmerkungen,
permanece, por sua vez, ainda inexplorada e desconhecida.
Em “Métaphrasis”,
o primeiro ensaio da mencionada colectânea, a atenção de Lacoue-Labarthe,
leitor de Beaufret, centra-se, pois, na figura de Édipo e na sua relevância no
âmbito da teorização hölderliniana. Se, após Freud, o Ocidente se sabe
edipiano, importará esclarecer que, já nos finais do século XVIII e inícios do
século XIX, no período filosófico que convencionalmente designamos de idealismo
alemão, tal herói mítico se constituía como um arquétipo – uma Gestalt
(Lacoue-Labarthe 1998, p.10) – da humanidade moderna, ilustrando a figura
filosófica do sábio, no sentido especulativo do termo. Édipo é, assim, o herói
da metafísica – e tenhamos presentes as posições de Schelling e de Hegel[7]
a seu respeito, ambas orientadas segundo uma visão do herói sofocliano enquanto
representação da afirmação-de-si e da liberdade do humano face ao mundo objectivo
ou ao poder superior do destino, uma liberdade que se torna autoconsciente no
momento em que decifra o enigma da esfinge. O idealismo alemão, profundamente
interessado em pensar a tragédia grega, desenvolve uma perspectivação de Édipo
que tende a descrever o herói sofocliano como um arquétipo da consciência
filosófica, que se sabe a si mesma e que se afirma na sua liberdade: Édipo como
o sábio, ou o herói da metafísica. Ou, por outras palavras: Édipo como a
personificação do triunfo do espírito.
A entrada de Édipo
na filosofia é, pois, tardia, e acontece no âmbito do idealismo alemão de
Schelling e Hegel. Não obstante, e tal como adverte Lacoue-Labarthe, a
interpretação de Édipo desenvolvida por Hölderlin não poderá ser tomada como
mais uma contribuição idealista, à maneira dos seus contemporâneos, tendente a
traçar uma visão filosófica exaltante e enaltecedora do herói de Sófocles. Em
Hölderlin, tudo se passa de outro modo: pois, para Hölderlin, Édipo não é o
herói da metafísica, mas a sua “pura e simples vítima” (Lacoue-Labarthe 1998,
p.12). Como compreender tal posição de Hölderlin? Segundo Lacoue-Labarthe, a
pedra de toque da leitura de Édipo traçada por Hölderlin consiste na
singularidade da hybris edipiana, uma hybris que poderia ser
descrita, com total justeza, como uma hybris metafísica – da qual Édipo
é culpado. Segundo a expressão lapidar de Lacoue-Labarthe, a falha de
Édipo é uma “outrance métaphysique” (Lacoue-Labarthe 1998, p.15), um excesso
trágico se caracteriza pela transgressão metafísica dos limites da condição
finita do ser humano estabelecidos pela filosofia kantiana. Por conseguinte, o
sentido do trágico em Rei Édipo consiste na transgressão metafísica pura
e simples, no extravasamento (dialéctico, diríamos, usando uma linguagem
kantiana) dos limites da experiência finita, tal como perspectivados por Kant
na “Dialéctica Transcendental” da Crítica da Razão Pura a propósito do
uso transcendente das categorias sem recurso à experiência empírica, um
uso indevido que dá origem, por sua vez, às falsas aparências da dialéctica,
ou, por outras palavras, às noções fictícias e ilusórias da metafísica
tradicional. A transgressão metafísica – a hybris trágica – de Édipo
consiste, assim, na afirmação do seu “sobre-conhecimento” [sur-savoir]
(Lacoue-Labarthe 1998, p.15) – mas um sobre-conhecimento que é, todo ele,
inválido, indevido, espúrio e, em última análise, falso. A este respeito, recordemos as palavras de
Kant na introdução da “Lógica Transcendental”:
(…) corre o
entendimento o perigo de, mediante ocas subtilezas, fazer uso material de
princípios meramente formais do entendimento puro e de julgar
indiscriminadamente sobre objectos que nos não são dados, e que talvez de
nenhum modo o possam ser. Como a lógica, verdadeiramente, deveria ser apenas o cânone
para ajuizar do uso empírico (do entendimento), é abuso dar-lhe o valor de organon
para um uso geral e ilimitado, e constitui atrevimento julgar, afirmar e
decidir sinteticamente sobre objectos em geral, utilizando somente o
entendimento puro. Nesse caso, seria então didáctico o uso do entendimento
puro. A segunda parte da lógica transcendental deve ser, por conseguinte, uma
crítica da aparência dialéctica e denomina-se dialéctica transcendental, não
como arte de suscitar dogmaticamente tal aparência (arte, infelizmente muito
corrente, de múltiplas prestidigitações metafísicas), mas enquanto crítica do
entendimento e da razão, relativamente ao uso hiperfísico, para desmascarar a
falsa aparência de tais presunções sem fundamento e reduzir as suas pretensões
de descoberta e extensão, que a razão supõe alcançar unicamente graças aos
princípios transcendentais, à simples acção de julgar o entendimento puro e
acautelá-lo de ilusões sofísticas. (KrV B 88: 82.13-32;96)
Se Rei Édipo é
a “autêntica tragédia moderna” (Lacoue-Labarthe 1998, p.20), tal como escreve
Hölderlin numa célebre carta, citada por Lacoue-Labarthe, ao seu amigo
Böhlendorf, em Dezembro de 1801, importaria compreendê-la na sua especificidade
hespérica, ou ocidental – isto é, não grega, mas inteiramente moderna, segundo
a linguagem hölderliniana – relativamente à outra tragédia de Sófocles que
Hölderlin também traduziu, Antígona (a tradução de Hölderlin desta
tragédia fora recebida, como bem sabemos, com enorme estranheza e perplexidade
por parte dos seus contemporâneos – entre os quais, Schiller –, tendo em conta
que um dos intuitos de Hölderlin seria o de revelar o elemento oriental,
selvático, violento e não-olímpico, da linguagem da tragédia ática e, em última
instância, de toda a cultura grega). Neste ponto, Lacoue-Labarthe chama a nossa
atenção para a introdução do termo deus imediato [unmittelbare Gott]
por parte de Hölderlin. Leiamos
o extracto correspondente de Anmerkungen zur Antigone:
La présence du tragique repose […] sur le fait que le Dieu immédiat, tout
Un avec l’homme (car le Dieu d’un apôtre est plus médiat, est la plus haute
entente au sein de l’esprit le plus haut), que l’infinie possession par
l’esprit, en se séparant salutairement, se saisit d’elle-même infiniment,
c’est-à-dire en des oppositions, dans la conscience qui supprime la conscience,
et que le Dieu est présent dans la figure de la mort. (Hölderlin 1965, p.79)
Diferentemente de Rei
Édipo, Antígona apresenta-se como uma tragédia puramente grega, no
âmbito do qual a noção de deus imediato se constitui como determinante:
a heroína Antígona identifica-se, de modo imediato, com o divino; a possessão,
o entusiasmo, o furor místico, o delírio sagrado, a aspiração infinita de Antígona
– a sua mania – consiste, pois, na sua identificação, na sua união, sem
mediações, com os deuses; Antígona apropria-se de deus. E esta é, com efeito,
tal como Hölderlin a analisa, a experiência eminentemente grega do divino. A
falha de Antígona é, diríamos, uma falha de teor teofânico. No caso de Rei
Édipo, tudo se passa de modo diferente: Édipo não se identifica nem se
compara a deus; Édipo não se apropria de deus; a sua falta é puramente teórica,
intelectual e especulativa, pois, aqui, a imediatidade não toma forma nem
figura. Nem a imediatidade nem a possibilidade de uma afirmação especulativa,
de pendor substancialista, acerca da existência de deus, tal como Kant
sustentara na “Dialéctica Transcendental” da Crítica da Razão Pura,
particularmente no capítulo sobre o ideal da razão pura. Permitamo-nos,
a este respeito, referir a posição filosófica kantiana acerca da existência de
Deus como um postulado da razão prática, nunca enquanto objecto de experiência
sensível nem como conteúdo do conhecimento teórico, tal como o filósofo
sublinha na Crítica da Razão Prática:
Mas estende-se
realmente deste modo o nosso conhecimento por intermédio da razão prática e o
que era transcendente para a razão especulativa é imanente na
razão prática? Sem dúvida, mas exclusivamente sob o aspecto prático. Com
efeito, não conhecemos por esse meio nem a natureza da nossa alma, nem o mundo
inteligível, nem o Ser supremo, segundo aquilo que eles são em si mesmos;
reunimos apenas os seus conceitos no conceito prático do soberano bem,
enquanto objecto [Objekt] da nossa vontade e totalmente a priori,
pela razão pura, mas só mediante a lei moral e também simplesmente em relação à
mesma, em consideração do objecto que ela ordena. (KpV, A 240: 133.
23-32;186)
Tendo em conta tal
distanciamento de deus, a hybris de Édipo encontra-se totalmente
cumprida na afirmação, toda ela trágica, do seu “sobre-conhecimento” – desde
logo no momento, decisivo, em que decifra o enigma que a esfinge lhe impusera
e, posteriormente, no âmbito do “episódio I” da peça, aquando do conflito com
Tirésias, perante quem Édipo se arroga da sua “sabedoria acima do comum”
(Sófocles 2016, p.81) e da sua “intuição de espírito” (Sófocles 2016, p.81),
capazes de solucionar o mistério que lhe propusera a figura de pedra. Mas a
arrogância do “sobre-conhecimento” de Édipo, marcada pela cegueira do seu
espírito e manifesta nas suas palavras “proferidas sob o império da cólera”
(Sófocles 2016, p.81), tal como adverte o coro, toma outras proporções de
pendor igualmente grave ao longo do desenrolar da peça: recordemos o momento,
ainda no “episódio I”, em que Édipo acusa Tirésias de ser cúmplice de Creonte
no intento de derrubar o rei de Tebas, o próprio Édipo, do seu trono; e também
a passagem, no “episódio III”, em que Édipo, recebendo a notícia do Mensageiro
de Corinto que o informa de que o seu pai (adoptivo) Pólibo teria morrido velho
e de doença – e não às mãos do seu filho, tal como o oráculo de Apolo haveria
predito –, recai, em insensata glória, no mais puro ateísmo: “estes oráculos
sem valor” (Sófocles 2016, p.116), assim se regozija Édipo. A hybris de
Édipo é “a reivindicação insensata de uma forma de capacidade hermenêutica
absoluta” (Lacoue-Labarthe 1998, p.26), a arrogância da posse de uma
potencialidade de inteligibilidade total. Considerando todos estes momentos da
peça, não surpreende que Hölderlin tenha elegido para título da sua tradução a
designação Édipo Tirano.
Mas a diferença
crucial entre Rei Édipo, modelo da tragédia moderna, e Antígona,
modelo da tragédia grega, reside, aos olhos de Hölderlin, no modo como cada um
dos protagonistas encontra a morte: com efeito, a morte constitui apenas o fim,
ou a resolução, em Antígona, e não em Rei Édipo. Pois, nesta
tragédia, não encontramos a morte que recairia sobre o herói, mas um longo e
doloroso exílio, uma errância infinita, própria de um destino moderno,
hespérico, ocidental – não-grego. Assim nos narra Sófocles na sua última e
estranha tragédia, Édipo em Colono – como se a primeira, Rei Édipo,
não fosse mais do que mero um prelúdio de tal tragédia final, afirma
Beaufret (Beaufret 1965, p.21).
A “morte” lenta de
Édipo integra uma determinação moderna porquanto introduz um elemento de
mediação que escapa ao espírito grego – não se trata de morte, mas de uma
expiação (uma catharsis, justamente) sem término e sem deus, que, sob o
olhar de Hölderlin, expressa a ausência do divino, o seu afastamento ou
retraimento categóricos relativamente aos seres humanos. Édipo, vagueando,
errando, ao longo de um exílio sem fim, parece não possuir um destino –
trata-se de uma ausência de destino, que se revela, por sua vez, tão própria
dos hespéricos, ou ocidentais, que nós somos. Antígona sim, possui um destino,
morrendo enquanto heroína – como se a sua hybris, de pendor teofânico,
também encontrasse uma expiação da mesma ordem: o carácter teofânico – imediato
– que está presente em Antígona também tem lugar no final da peça, no
momento em que a heroína morre. Nada disto acontece em Rei Édipo, pois,
nesta tragédia, a relação entre os deuses e os seres humanos é marcada por uma infidelidade
[Untreue] dos primeiros em relação aos segundos (uma infidelidade divina
que se desdobra numa “infidelidade dupla” (Lacoue-Labarthe, 1998, p.35), e que
traduz no ateísmo dos seres humanos – o ateísmo de Édipo, precisamente).
Leiamos o extracto de Anmerkungen zum Oedipus correspondente a tais
considerações:
… tout cela en tant que langue pour un monde, où parmi la peste et le
dérèglement du sens, et un esprit de divinisation partout exacerbée, en un
temps de désœuvrement, le Dieu et l’homme, afin que le cours du monde n’ait pas
de lacune, et que la mémoire de ceux du ciel n’échappe pas, se parlent dans
la figure toute oublieuse de l’infidélité, car l’infidélité divine, c’est
elle qui est le mieux à retenir. (Hölderlin
1965, p.65)
Lacoue-Labarthe
termina o seu ensaio citando o comentário de Hölderlin a respeito de um
fragmento de Píndaro (que Hölderlin também traduziu), certamente escrito no mesmo
período em que o poeta alemão se dedicava a pensar Sófocles e as suas
tragédias. O comentário, profundamente ilustrativo, é o seguinte: “O imediato,
tomado em todo o seu rigor, é, para os mortais, impossível […]. Mas a mediação
rigorosa é a lei” (Lacoue-Labarthe 1998, p.42).
Considerações finais
Tendo presente as
posições de Hölderlin em torno do final de Rei Édipo, Lacoue-Labarthe,
assim como Beaufret, procura sublinhar a sua tonalidade kantiana: o desvio
categórico de deus, a fuga de deus, não significa o seu absoluto
desaparecimento, mas a sua apresentação enquanto lei – num sentido kantiano. Tal como escreve Lacoue-Labarthe : “Et la Loi, ici,
n’est rien d’autre que critique. Ou si l’on préfère, elle est la leçon même,
voire le commandement, de la Critique de la raison pure”
(Lacoue-Labarthe 1998, p.39). Com Rei Édipo, a tragédia
moderna por excelência, encontramo-nos no âmbito de uma “teofania sem teofania”
(Lacoue-Labarthe 1998, p.40). Não se trata de uma teologia negativa, nem da
consideração de um deus absconditus, mas, sim, da apresentação de deus
através da lei, na impossibilidade de qualquer experiência intuitiva do mesmo
ou da afirmação da sua existência segundo uma lógica especulativa
substancialista.
No seguimento da
interpretação de Lacoue-Labarthe, importaria, neste ponto, lançar luz sobre o
intento hölderliniano de elaboração de uma teologia subjacente a Rei Édipo,
uma teologia que se articula, de forma íntima, com a sua filosofia da tragédia.
Ou, de outro modo, talvez se afigure mais correcto afirmar que a filosofia da
tragédia desenvolvida por Hölderlin se orienta no sentido de uma teologia. De
que teologia se trata? Ora, tal teologia delineada por Hölderlin apresenta-se
profundamente inspirada pela postura kantiana de redução da religião à
moralidade, ou, se quisermos, à lei moral. A teologia moral de Kant –
decorrente da sua contestação filosófica da metafísica tradicional e dos seus
modos de tratamento do problema de Deus segundo princípios especulativos –
constitui, pois, o quadro teórico à luz do qual Hölderlin traça as suas
considerações acerca da relação entre os seres humanos e os deuses na
teorização em torno de Sófocles – e ecoando, igualmente, na elaboração do
sentido filosófico-poético das expressões hölderlinianas Gottes Fehl e kategorische
Umkerh. Citemos as ilustrativas palavras de Kant presentes no prólogo à
primeira edição (1793) do seu escrito capital sobre religião, a Religião nos
Limites da Simples Razão:
A Moral, enquanto
fundada no conceito do homem como um ser livre que, justamente por isso, se
vincula a si mesmo pela razão a leis incondicionais, não precisa nem da ideia
de outro ser acima do homem para conhecer o seu dever, nem de outro móbil
diferente da própria lei para o observar. […] Por conseguinte, a Moral, em prol
de si própria (tanto objectivamente, no tocante ao querer, como subjectivamente,
no que diz respeito ao poder), de nenhum modo precisa da religião, mas basta-se
a si própria em virtude da razão prática. – Com efeito, visto que as suas leis
obrigam pela mera forma da legalidade universal das máximas que hão-de assumir-se
de acordo com ela – como condição suprema (também esta incondicionada) de todos
os fins, a Moral não necessita em geral de nenhum outro fundamento material de
determinação do livre-arbítrio […]. (RGV 3-18; 11)
Por conseguinte,
haveria que sublinhar que a fonte kantiana de que Hölderlin se nutre para
traçar a sua filosofia da tragédia integra a consideração da necessidade de
impugnação da metafísica tradicional, temática fulcral da Crítica da Razão
Pura, assim como o delineamento de uma teologia dela decorrente, marcada
pela centralidade da lei moral que exclui a exigência de uma intuição sensível
de um ente supremo e de uma afirmação teórico-especulativa da sua existência,
de acordo com a continuidade filosófica entre a Crítica da Razão Prática
e A Religião nos Limites da Simples Razão. Ora, nas Anmerkungen
zum Oedipus defrontamo-nos com uma filosofia da tragédia que parece
integrar, mau grado o seu teor velado e codificado, uma reflexão profundíssima
acerca das principais linhas de pensamento que compõem a filosofia de Kant.
Poderá soar bizarro que tal reflexão hölderliniana se cumpra no âmbito de um
escrito em torno de uma tragédia sofocliana – mas, a este respeito, insistiria
advertir: Rei Édipo é, pois, aos olhos de Hölderlin, o prenúncio da
tragédia moderna, e Édipo o arquétipo do homem hespérico.
Bibliografia
Aristóteles (2008), Poética.
Prefácio de Maria Helena da Rocha Pereira. Tradução de Ana Maria Valente.
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Portugal.
Beaufret,
J. (1965), “Hölderlin et Sophocle” em F. Hölderlin, Remarques sur Œdipe
/ Remarques sur Antigone, précédé de “Hölderlin et Sophocle” par Jean
Beaufret. Traduction et notes par François Fédier. Paris, UGE Bibliothèque
10/18, France.
Butler,
E. M. (1958), The Tyranny of Greece over Germany. Boston, Beacon Press,
United States of America.
Frank,
M. (2015), Der kommende Gott. Vorlesungen über die Neue Mythologie. Frankfurt am Main, Suhrkamp, Deutschland.
Henrich,
D. (2003), Between Kant and Hegel. Lectures on German Idealism. Edited
by David S. Pacini. Cambridge,
Massachusetts / London, Harvard University Press, United States.
Hölderlin,
F. (1965) Remarques sur Œdipe / Remarques sur Antigone, précédé de
“Hölderlin et Sophocle” par Jean Beaufret. Traduction et notes par François
Fédier. Paris, UGE Bibliothèque 10/18, France.
Hölderlin, F. (2021), Todos os
Poemas seguido de Esboço de uma Poética. Tradução, introdução, comentários
e notas de João Barrento. Lisboa, Assírio & Alvim, Portugal.
Kant, I. (1992), A Religião nos
Limites da Simples Razão. Tradução de Artur Morão. Lisboa, Eduções 70,
Portugal.
Kant, I. (2008a), Crítica
da Razão Prática. Tradução de Artur Morão. Edições 70, Portugal.
Kant, I. (2008b), Crítica
da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
Morujão. Fundação
Calouste Gulbenkian, Portugal.
Lacoue-Labarthe,
P. (1998), Métaphrasis suivi de Le théâtre de Hölderlin. Paris,
Presses Universitaires de France, France.
Sófocles (2008), Antígona.
Introdução, versão do grego e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, Portugal.
Sófocles (2016), Rei Édipo.
Introdução, tradução do grego e notas de Maria do Céu Zambujo Fialho. Lisboa:
Edições 70, Portugal.
Szondi, P. (2004), Ensaio sobre o
Trágico. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
Brasil
Taminiaux, J. (1995), Le théâtre
des philosophes. La
tragédie, l’être, l’action.
Grenoble, Jérôme Millon, France.
· Universidade do Porto. Contacto electrónico: silviaandradebento@gmail.com
[1] A este respeito, leia-se o estudo de E.
M. Butler brilhantemente intitulado The Tyranny of Greece over Germany,
publicado em 1935.
[2] Tradução nossa. Seguidamente apresentamos o extracto original: “Begründet”
meint hier: hergeleitet von, aber nicht im Sinne eines einfachen Ursache-Bezugs
wie in den Naturwissenchaften, sondern im Sinne einer Rechtfertigung. “Etwas rechtfertigen” oder (wie die Romantiker gern
sagten) “etwas beglaubigen” aber heiβt: es auf einem Wert zu beziehen, der zwischen den
Menschen unumstritten ist. Und zwischen Menschen (einer Population)
unumstritten ist in einem radikalen Sinn nur das, was für heilig – für unanfechtbar,
für allgegenwärtig und für allvermögend – gilt. (Frank 2015, p.11).
[3] Jacques Taminiaux, no seu livro Le théâtre des philosophes. La tragédie, l’être, l’action (1995), reconstitui a evolução biográfica
e intelectual de Hölderlin até ao momento da escrita das Notas sobre Édipo
e das Notas sobre Antígona.
[4] Como é sabido, Rei Édipo apresenta-se,
aos olhos de Aristóteles, como uma das tragédias mais perfeitas do ponto de
vista da inclusão e da elaboração dos elementos trágicos. Em bom rigor, a peça
de Sófocles é mencionada três vezes e o seu protagonista é nomeado seis vezes
ao longo de toda a Poética. Uma das mais importantes passagens da Poética
dedicada a Rei Édipo diz respeito à beleza da peripécia e do
reconhecimento: “Peripécia é, como foi dito, a mudança dos acontecimentos para
o seu reverso, mas isto, como costumamos dizer, de acordo com o princípio da
verosimilhança e da necessidade. Assim, no Édipo, o mensageiro que chega
com a intenção de alegrar Édipo e de o libertar dos seus receios em relação à
mãe, depois de revelar quem ele era, produziu o efeito contrário. (…)
Reconhecimento, como o nome indica, é a passagem da ignorância para o
conhecimento, para a amizade ou para o ódio entre aqueles que estão destinados
à felicidade ou à infelicidade. O reconhecimento mais belo é aquele que se
opera juntamente com peripécia, como acontece no Édipo” (Aristóteles
2008, p.57; 1452a 22-33).
[5] No seguimento da tradução francesa do
termo, détournement catégorique, utilizamos a expressão portuguesa desvio
categórico para traduzir o complexo conceito de kategorische Umkher.
[6] Todas as referências às obras de Kant
apresentadas neste ensaio seguem a edição da Akademie, integrando, no final de
cada indicação, a menção ao número da(s) página(s) correspondente(s) das
traduções portuguesas utilizadas.
[7] É Schelling o primeiro a introduzir, nas
suas Briefe über Dogmatismus und Kritizismus (1795), a figura de Édipo –
e a questão do trágico – no âmbito da filosofia idealista. A respeito da
emergência da filosofia da tragédia desenvolvida no contexto cultural de língua
alemã, importaria ler o relevante (e canônico) estudo de Peter Szondi
intitulado Versuch über das Tragische (1961).